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O debate que Nuno Palma lançou na convenção do MEL tem sido excelente, mesmo que pelo meio haja muita treta, como acontece em qualquer polémica mais alargada.
Ontem era Reis Torgal, no Público, mais uma vez, mas como não percebi nada do que escreveu, não tenho nenhum comentário a fazer.
Fernando Alexandre chamou a atenção para a resposta de Nuno Palma a Fernando Rosas que o Público publicou no Domingo, e na troca de comentários que se seguiu, apareceu, mais uma vez, o mito da emigração dos anos sessenta como um processo social forçado pela natureza do Estado Novo.
Sobre o mito da vontade de manter a pobreza no país acho que não tenho grande coisa a acrescentar, tal como o mito do analfabetismo como objectivo político do Estado Novo (para já não falar do mito do contributo positivo do Marquês de Pombal para a educação em Portugal, diminuindo em 90% a população escolar).
Mas sobre o que parece ser o terceiro mito mais frequente associado ao Estado Novo, o da emigração como consequência do regime, talvez eu já tenha escrito aqui alguma coisa, mas ainda assim gostaria de fazer alguns comentários, já que tive de olhar minimanente para isso quando estudei a evolução da paisagem portuguesa ao longo do século XX.
Em primeiro lugar gostaria de dizer que a emigração pode ser um drama pessoal, é um excelente tema para ser tratado na literatura e restantes artes, como todos os temas que sejam emocionalmente fortes, mas como processo social é um mero processo de reposição de equilíbrios entre a oferta e a procura do trabalho (na impossibilidade de haver emigração quando existem desequilibrios estruturais entre procura e oferta de trabalho, a alternativa é a pobreza, o desespero e a desvalorização do trabalho).
O que se passou em Portugal nos anos sessenta tinha-se passado em todos os países desenvolvidos pelo menos desde o sécuo XVIII, de forma mais rápida ou mais lenta, com a transferência do trabalho dos campos para as fábricas e as cidades. Que essas fábricas e cidades estejam no país ou fora dele, é mais ou menos irrelevante.
Esse processo é fortemente impulsionado pela descoberta da síntese da amónia, isto é, pela capacidade de criar fertilidade a partir de fábricas em vez de a colectar nas terras marginais através do pastoreio, o que vem permitir a revolução verde que nos alimenta a todos (Carlos Aguiar dizia, há tempos que não o ouço dizer isso mas duvido que tenha mudado de ideias, que a agricultura biológica consiste em colocar um animal, ou uma cultura e um animal, entre o saco de adubo e a produção, não sendo por isso uma alternativa à agricultura moderna).
Com a capacidade de produzir muito mais alimentos a partir de muito menos terra, e com a possibilidade de manipular a terra mais eficientemente para obter a produção que o mercado mais valoriza, o remuneração do trabalho aumenta muito, a da terra diminui em termos relativos, mas ainda assim o trabalho nas fábricas e cidades continua a ser mais compensador que no campo, sendo possível ver sair milhões de pessoas do campo para a cidade sem perda substancial, pelo contrário, com ganho de produção de alimentos e fibras (no princípio do século XX, 60% da população activa rm Portugal estava no sector primário e hoje deve andar pelos 5% e produz-se incomparavelmente mais que no princípio do século XX).
Ora em Portugal, este processo é forte desde o fim do século XIX, com emigração para o Brasil e toda a restante América (todos os meus tios paternos, incluindo o meu pai, emigraram da aldeia onde viviam os pais, a maioria para o Brasil, e a minha avó teve treze filhos. Não aconteceu o mesmo a todas as tias, apenas a algumas. Na casa dos meus pais andava um legítimo seis tiros smith and weston trazido por um tio que foi para a América e lá morreu, em condições não completamente esclarecidas), emigração que é bruscamente interrompida no fim dos anos 20 (provavelmente alguém se lembrará de um crash bolsista por essa altura) e até aos anos 50, isto é, durante toda a primeira fase do Estado Novo.
Em metade do Estado Novo a emigração foi historicamente baixa, e na outra metade foi historicamente alta.
Porque na primeira metade as pessoas viviam bem e na segunda metade a miséria as obrigou a emigrar?
Não, evidentemente, a miséria era incomparavelmente maior na primeira metade do Estado Novo, o que acontecia era apenas que não havia destino de emigração, primeiro por causa da crise económica dos fim dos anos 20, depois por causa da segunda guerra mundial, por razões que sem qualquer ligação ao regime que existia em Portugal.
Tal como na segunda metade do Estado Novo, apesar de, em Portugal, ser o período de maior convergência económica e social com os países mais desenvolvidos dos últimos 200 anos, houve um pico histórico da emigração, não apenas para fora do país, mas também do mundo rural para os centros urbanos do país, por razões que dificilmente se podem atribuir ao regime, como a disparidade de rendimento entre Portugal e a Alemanha, como se demonstra pelo facto de ainda hoje essa disparidade, em grande medida, existir, quase cinquenta anos depois da queda do regime anterior (e também existir muito antes do Estado Novo).
Sendo isto tão manifesto quando se olha para os números, seja qual for a perspectiva, o que justifica a presença tão forte do mito da emigração como resultado do Estado Novo, na historiografia dominante?
Não tenho uma resposta sólida e segura sobre isso, mas pelo menos uma parte da explicação só pode ter uma origem, que é consistente com a forma lamentável como boa parte dos bonzos da historiografia dominante reagiram à intervenção de Nuno Palma: a história contemporânea em Portugal parece ter ideologia a mais e objectividade a menos, estando muitas vezes mais perto do manifesto político que da produção científica.
A crítica aos regimes políticos é essencialmente política, prende-se com a legitimidade das fontes de poder, o respeito pelas pessoas comuns e outras coisas deste tipo, factores em que o Estado Novo não tem qualquer hipótese de ser classificado como um regime benigno, não sendo aceitável a desqualificação destes aspectos por troca com resultados sociais e económicos positivos.
Por mim, prefiro uma democracia de pobres a uma ditadura de ricos, quanto mais não seja porque posso livremente criticar a pobreza na democracia e defender mudanças de política sem correr riscos pessoais por isso, dito de outra maneira, a liberdade é um valor em si, não é preciso torcer a realidade para contestar a legitimidade de qualquer ditadura e não é seguramente esse o papel que as sociedades maduras e livres reservam à historiografia.
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