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Gosto de coisas com um mínimo de rigor

por henrique pereira dos santos, em 29.01.23

"Estado laico? "São dez estádios do Euro em versão religiosa""

Este é o título de uma peça do Público de ontem.

A pergunta é dos jornalistas do Público, as aspas dentro das aspas dizem respeito às declarações de Viriato Soromenho Marques: "As jornadas são os dez estádios do Euro em versão religiosa" que mais à frente explica que o pecado reside "na ostentação".

Estas têm sido duas linhas de argumentação na discussão dos custos para o Estado da realização das Jornadas Mundiais da Juventude em Agosto próximo.

A primeira, a de que a laicidade do Estado consiste em não dar um tostão a actividades religiosas, que é usada pelo jacobinismo mais radical, como se laicidade não fosse o facto de tratar qualquer outra religião tal como trata a religião do futebol, e a que não vale a pena responder.

A segunda, usada por católicos como Viriato Soromenho Marques, anda à volta do pecado da ostentação (esta argumentação tem depois uma declinação que anda à volta da maior utilidade do dinheiro se entregue aos pobrezinhos, mas neste momento não é esta noção errada do que é o custo de oportunidade e das origens da pobreza, que se relacionam mais com a justiça que com a caridade, que me interessa tratar neste post).

O que me interessa é deixar claro como esta forma de ausência de rigor, de respeito pelos factos, é prejudicial ao debate público.

Claro que no caso de Viriato Soromenho Marques isso não decorre da sua incapacidade para ser rigoroso - mau seria se um doutorado em ética não soubesse avaliar argumentos numa discussão desse tipo - mas sim da vontade de obter uma adesão emocional das pessoas a uma tese, esquecendo o rigor dos factos.

As jornadas, aparentemente, estão orçamentadas em cerca de 180 milhões de euros a dividir em partes iguais pelo Estado e Igreja.

Não faço a menor ideia se vão custar isso ou o dobro (nesse caso será a igreja a custear as despesas que ultrapassem os limites com que o Estado se comprometeu), nem faço a menor ideia sobre se é muito ou pouco, não estudei o assunto, e nem me interessa nada se custam mais por causa do pecado da ostentação e se a igreja está, ou não, a ser fiel aos seus princípios.

Por mera curiosidade, gostaria de ouvir algumas destas pessoas a dissertar sobre o pecado da ostentação da Igreja na contratação de quem contratou, aos custos que isso implicava, para pintar a capela Sistina. Ou no caso da celebração da Paixão Segundo São Mateus, encomendada por outra igreja que não a católica, a um compositor muito caro para a época.

O que me interessa aqui é o rigor da analogia: "As jornadas são os dez estádios do Euro em versão religiosa".

O euro 2004 terá custado qualquer coisa como seis mil milhões de euros - inclui uns mil milhões em melhorias em hospitais e aeroportos, por exemplo - dos quais uns seiscentos mil em estádios, ou seja, os dez estádios do Euro (e eu estou a esquecer deliberadamente os custos de manutenção posteriores), custaram três vezes mais que as jornadas no seu todo (admitindo que em vez de 180 milhões acabam a custar duzentos milhões), incluindo as partes infraestruturais de melhoria de acessos, recuperação de uma área degradada da cidade, etc.. Para se ter uma noção, a realização do Euro 2004 custou ao Estado, segundo o tribunal de contas, um pouco mais de mil milhões de euros, mais um menos um terço do que custou recentemente a TAP aos contribuintes e um bocado mais do que custou a Ponte Vasco da Gama.

Por exemplo, só no Estádio da Luz, uma infraestrutura privada em que só se entra através da compra de um bilhete, o Estado terá gasto qualquer coisa como vinte milhões de euros que são, para todos os efeitos, um financiamento a fundo perdido à religião do futebol e de uma das suas igrejas privadas, o Benfica.

Resumindo, dizer que as jornadas são a versão religiosa dos estádios do Euro tem um problema de fundo: a dimensão do envolvimento do Estado, do ponto de vista orçamental, é completamente diferente (as jornadas, no seu todo, são um décimo do Euro 2004, do ponto de vista do dinheiro dos contribuintes, os estádios, que grosseiramente poderemos equivaler ao tal altar (embora o altar seja um equipamento público, ao contrário de boa parte dos estádios), será 1% do que foi gasto nos estádios e talvez uns 10% do que o Estado gastou nos estádios).

Por mim, como escrevi num post anterior, o Estado deveria abster-se de se meter nestas confusões, sejam elas religiosas, desportivas, culturais, científicas e etc., que defina políticas, que as financie na medida do que resulte das eleições, mas que não se meta em grandes realizações pontuais com argumentos manhosos de retorno económico abstracto.

Mas para criticar este envolvimento do Estado, nem o argumento jacobino interessa alguma coisa - um Estado laico tratar qualquer religião como qualquer outra actividade - nem me parece muito útil andar a empolar argumentos para dar ao assunto uma dimensão que, na verdade, dificulta a discussão racional das opções do Estado.

Seja neste exemplo do Euro 2004, seja em exemplos como a Expo 98, cujos custos globais ninguém conseguiu apurar, mas foram seguramente muito maiores que os previstos, variando as contas entre um mínimo de seiscentos milhões a estimativas a rondar os 4 mil milhões, para resultados deprimentos: dois terços dos visitantes previstos e o financiamento público de uma operação de loteamento privado a uma dimensão estratosférica (ainda se fosse para fazer uma nova capital em Castelo Branco, mas andar a despejar mais dinheiro público em Lisboa para aumentar a macrocefalia do país, para mim é incompreensível).

Há quem tenha esperanças de que tudo isto, e a discussão à volta do envolvimento do Estado nas jornadas, fortemente potenciada pela perda das eleições em Lisboa por parte de Medina e pelo amor cristão que José Sá Fernandes dedica a Moedas, resulte num maior escrutínio das despesas do Estado.

Eu não tenho ilusões sobre isso, sem o aguilhão jacobinista, o Estado vai continuar a candidatar-se a campeonatos mundiais de futebol e o povo vai chamar traidor a Ronaldo por ser um dos embaixadores de uma das candidaturas concorrentes.

Por mim, devíamos era estar a fazer uma subscrição pública para duplicar o envolvimento de Ronaldo em candidaturas concorrentes da nossa à realização das Jornadas Mundiais do Futebol.


6 comentários

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De entulho a 29.01.2023 às 10:27

sou Anarca, Agnóstico, Pedreiro-livre
somos pobres devido a 25 anos de socialismo marxista. e a bosta continua.
Alguém disse ontem numa tv «não foi o Vaticano que se convidou a vir» à republiqueta
com ironia disse MJA 'construam o Altar com contentores'
como sempre o PR foi ele próprio
guardem o dinheiro dos contribuintes para os bóis e vamps do ps
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De balio a 29.01.2023 às 11:10


o Estado vai continuar a candidatar-se a campeonatos mundiais de futebol


Sim, mas neste caso fá-lo conjuntamente com a Espanha, o que implica que somente uns três ou quatro estádios em Portugal serão utilizados, e fá-lo com os estádios e os acessos a eles já construídos. Pelo que, de facto, mesmo que a candidatura portuguesa seja a escolhida, os gastos serão bem mais modestos do que o que foram no passado.
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De balio a 29.01.2023 às 11:16


dois terços dos visitantes previstos


Eu tenho a impressão de que também as Jornadas Mundiais da Juventude irão ter um número de visitantes dececionante. Fala-se de um milhão e meio de pessoas, mas eu não estou a ver de que forma tanta gente se porá em Portugal - não há aeroportos nem ligações ferroviárias ou mesmo estradas que arquem com tanta gente. Ainda para mais tendo em conta que isso é para ser feito logo no princípio de agosto, quando também os emigrantes estão a querer vir para Portugal e quando tantos turistas demandam Lisboa. Não estou sinceramente a ver de que forma milhão e meio de pessoas vão arranjar forma de se pôr em Portugal nessa altura. Se as Jornadas Mundiais da Juventude tiverem dois terços disso, já irão com muita sorte.
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De Anonimo a 29.01.2023 às 16:35

Expo, web summit, rock no rio, feijoada da ponte, euro, GP f1 ou motociclismo, jmj.
Por vezes penso que Portugal realmente não passa de uma qualquer república das bananas em constante procura de (suposta) legitimidade internacional para esconder a sua verdadeira natureza.
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De O apartidário a 30.01.2023 às 18:52

O altar pode obrigar a mexer no falo do Cargaleiro
https://grandefantochada.blogspot.com/2023/01/o-altar-obriga-mexer-no-falo-do.html
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De O apartidário a 30.01.2023 às 18:53

O altar pode obrigar a mexer no falo do Cargaleiro
https://grandefantochada.blogspot.com/2023/01/o-altar-obriga-mexer-no-falo-do.html

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