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Desde o princípio da epidemia que procuro perceber uma coisa: as medidas de gestão da epidemia que adoptamos são razoáveis, proporcionais e resultam em maiores benefícios que prejuízos?
Todas as discussões em que me envolvi sobre a epidemia procuravam responder a uma pergunta, o que sempre me interessou foi saber: estávamos a tomar as decisões certas, nas circunstâncias que conhecíamos, o que inclui a incerteza inerente a processos deste tipo?
O meu pressuposto base, que mantenho ao fim deste tempo todo, é o de que uma epidemia não é controlável com medidas não farmacêuticas, é um processo natural que está para lá da nossa capacidade de gerir os processos naturais.
Esta é a minha discordância radical em relação ao que se tornou a abordagem dominante da gestão da epidemia, assente na ideia de que é possível, com medidas não farmacêuticas, controlar epidemias, controlando contactos sociais (curiosamente, ao fim de quase dois anos disto, continua sem haver evidência sólida do êxito da opção tomada, um ou outro estudo com evidência empírica insuficiente, uma ou outra meta análise cheia de dúvidas e problemas metodológicas, e muita modelação cuja base se engana sistematicamente quando projectada para o futuro).
As reacções absurdas, histéricas e evidentemente ineficazes de isolar uma série de países por causa da comunicação da descoberta de uma nova variante, pelos sul-africanos, deveriam ser suficientes como demonstração de como a irracionalidade tomou conta dos decisores.
O facto de gente muito responsável, como a generalidade dos governos europeus e a comissão europeia, concordar com uma parvoíce, não transforma a parvoíce numa coisa razoável.
Infelizmente, continuamos a achar que foi uma reacção proporcional e adequada, com a informação existente. Se mais tarde viemos a saber que não valia a pena isolar esses países porque a variante já estava disseminada, isso resulta da informação entretanto produzida.
Só que não é verdade, logo no momento da comunicação sul-africana foi explicado que a variante não parecia produzir efeitos relevantemente negativos, parecia ser mais transmissível, mas menos problemática do ponto de vista da evolução para sintomas graves e mortes.
O problema é que a generalidade dos decisores, pressionados por opiniões públicas que continuam histéricas, sobrevalorizam, de forma sistemática, o contágio da doença e desvalorizam, de forma sistemática, os efeitos secundários das medidas adoptadas para "quebrar cadeias de contágio" e outras fantasias que tais.
É exactamente o que se passa em Portugal, com a DGS informalmente comprometida com a estratégia Covid Zero, com particulares efeitos negativos em meio escolar, onde o que se passa é completamente absurdo.
"Um garoto de três anos testou positivo no infantário. Resultado TODA a família de TODOS os outros garotos ficam isolamento até dia 24 de Dezembro." leio num mural (e eu tive o pudor de citar a conclusão final) e logo alguém responde: "A minha irmã é cirurgiã pediátrica. Contou-me hoje que têm o serviço pejado de miúdos internados com COVID. Crianças. Internadas com COVID. O que nunca aconteceu antes. Levem isto a sério, sff".
Vejamos, desde o princípio da epidemia deverão ter sido internadas cerca de 300 crianças covid (não fui verificar com cuidado suficiente este número, há vários números a circular, mas seguramente não serão milhares de crianças internadas com covid), das quais uma boa parte - seguramente pelo menos um terço - por "quadros clínicos não compatíveis com a covid", mas que testam positivo, e uma outra parte, mais difícil de avaliar com os dados que conheço, com quadros clínicos compatíveis com a covid, mas sobre as quais não existe qualquer garantia de que a razão do internamento seja a covid (como os níveis de internamento de crianças não me parece que tenham aumentado assim tanto em relação a outras épocas de doenças respiratórias noutros anos, estou pessoalmente convencido de que a covid não terá tido um impacto por aí além no internamento de crianças, mas não tenho dados para ter mais que uma opinião não fundamentada).
Logo, a informação da irmã médica é a típica história de quem conta um conto e acrescenta um ponto, e isso de haver serviços pediátricos pejados de crianças internadas por causa da covid não passa de uma ilusão sem tradução nos dados objectivos sobre o assunto.
No entanto, o nível geral de informação veiculado pela imprensa não ultrapassa, de maneira geral, este nível, que é o nível do boato (com certeza existe boa informação sobre o assunto, só que sendo uma parte muito pequena, perde-se na informação geral que é passada para a sociedade).
Só que isto é o normal numa epidemia, o pânico social.
O que é grave não é isto, mas sim a gestão política assente nisto, de que a prática do que se passa nas escolas é talvez o exemplo mais grave.
A opção política, até agora, tem sido a de dar força à opção de "quebrar cadeias de contágio" quase a qualquer custo (o quase diz respeito às decisões políticas que contrariam a opinião da DGS e da sua corte de especialistas especiais, porque o governo tem a percepção de que a opinião pública aceitaria mal algumas opções).
Por isso as regras nas escolas continuam a ser absurdas em si e absurdas na forma como é tomada cada decisão concreta, atribuindo ao delegado de saúde um poder que não lhe devia caber (uma das minhas primeiras divergências com André Dias, cuja visão global do que deveria ter sido feito inicialmente com a informação existente me continua a parecer essencialmente adequada, foi exactamente por eu divergir da ideia de que as decisões sobre a epidemia deveriam ser tomadas por entidades técnicas e não pelos poderes políticos).
Quando um miúdo de três anos, num infantário, testa positivo, qual é o benefício social associado à decisão de confinar 14 dias toda a família e a de todos os outros miúdos?
O delegado de saúde que toma a decisão dirá que está a "quebrar cadeias de contágio" e não lhe cabe a ele avaliar se os prejuízos escolares e de desenvolvimento das crianças, bem como os que resultam de ter não sei quantas pessoas confinadas em casa, são maiores ou menores que os que resultam do desenvolvimento (acompanhado) de um surto.
Mas admitindo que quebrar cadeias de contágio está na mão do delegado de saúde, qual é o benefício de o fazer face a uma doença que afecta muito marginalmente as crianças em causa, e afectará marginalmente os adultos vacinados com que contacta, incluindo os mais velhos, com excepção dos muito mais velhos e com problemas que podem ser agravados por esta doença.
Excepção essa que pode ser gerida pela quebra de contacto dos mais mais velhas, nestas circunstâncias (por amor de Deus, não me venham com a conversa da falta de meios, sai muito mais caro ao Estado pagar baixas a 100% a toda esta gente que pôr os poucos potenciais afectados em hoteis de cinco estrelas durante três semanas).
Ou seja, o potencial ganho social (diminuição de contágios de vacinados) é completamente marginal face ao risco que a doença cria, mas as perdas sociais são brutais.
E não, o problema não é a DGS, o problema é a opção política e o facto de não haver oposição política consistente a parvoíces como estas ou como a suspensão de vôos para Moçambique.
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