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"Os migrantes – mesmo no período de expansão e consolidação da administração colonial – tinham consciência de que se iam instalar num espaço de desigualdade, no qual estariam em situação permanente de superioridade relativamente à restante população. Devido à sua inserção no estrato dominante da sociedade colonial, era-lhes garantido acesso privilegiado ao poder político, social, económico e simbólico. As oportunidades acrescidas de promoção social, a abundância de mão-de-obra barata e subjugada, a certeza de um estatuto inquestionável perante o conjunto da população africana – largamente maioritária – terão influenciado na decisão de migrar".
Este parágrafo extraordinário está num artigo científico da autoria de uma investigadora, mas de ciência não tem o menor vestígio, é puro preconceito.
No essencial, o artigo faz um processo de intenções "os migrantes ... tinham consciência", a partir do qual faz a afirmação de que essa consciência "ter[á] influenciado a decisão de migrar" que remete para uma generalização acusativa de que os brancos que migraram para as colónias portugueses eram movidos pela existência de "abundância de mão-de-obra barata e subjugada" e "certeza de um estatuto inquestionável perante o conjunto da população africana".
Fundamentação, nomeadamente quantificada, para o que é dito, simplesmente não existe, reconhecimento das imensas diferenças sociais inerentes a sociedades complexas, incluindo a multiplicidade e diversidade de grupos sociais dentro dos dois grupos a que se reduzem essas sociedades (brancos e não brancos), zero, zero, zero.
Falemos da Maria do Céu, uma das migrantes que, de acordo com a investigadora, foi influenciada pela consciência de se ir instalar num espaço de desigualdade (parece que antes teriam consciência que viviam num espaço de igualdade, nas suas terras de origem, a acreditar no que está escrito).
A Maria do Céu era uma mulher inteligente, sensível e naturalmente sofisticada que nasceu numa família de agricultores de uma aldeia minúscula, tendo saído da escola depois da terceira classe, para poder ajudar a mãe a tratar dos irmãos.
Aos 16 anos (não sei em que ano) foi servir de criada interna para casa da minha avó (não me incomodem com o termo criada, era o termo usado na altura e não tem nada de ofensivo e depreciativo, era um trabalho como outro qualquer).
Acontece que por volta de 1957 ou 1958, calculo eu (não vou andar a fazer perguntas à minha família para aumentar o rigor das datas) uma das minhas irmãs teve poliomielite, penso que no Lobito que, sendo talvez a segunda cidade de Angola, era, nessa altura, uma cidade sem grandes infraestruturas de saúde.
Por essa razão, os meus pais mandaram a sua sexta filha para Lisboa, de barco, para casa da minha avó, na esperança de que tivesse os melhores cuidados possíveis para limitar as consequências da doença. Para a acompanhar no barco (ela teria dois anos de idade), mandaram o seu terceiro filho, com uns dez anos de idade, porque apesar da visão da investigadora sobre a vida dos brancos em Angola nessa altura sugerir que eram só nababos, a verdade é que não havia dinheiro nem capacidade dos meus pais, ou pelo menos de um deles, vir a Lisboa com a filha.
Durante anos, até 1966, a minha irmã viveu com a minha avó, a minha tia e a Maria do Céu, razão pela qual eu só conheci a minha irmã quando eu teria os meus cinco ou seis anos, e a minha irmã dez ou onze (eu nasci mais tarde, já agora, na lavandaria do hospital da então Nova Lisboa, tinha faltado a luz e era o único sítio onde havia luz para fazer o parto no hospital, cara senhora investigadora, noutra das principais cidades de Angola, portanto pode-se imaginar o que seria Teixeira de Sousa uns doze anos antes, hoje Luau, e ainda hoje um fim do mundo com 30 mil habitantes, onde a minha mãe teve o seu terceiro filho e onde o meu pai estava colocado, na alfândega, ou Cabinda, onde teve o quarto filho).
Durante esses sete ou oito anos, a minha irmã, que a partir de certa altura já tinha nove irmãos, foi uma filha única, passando grande parte do tempo ao colo, em tratamentos e afins, indo para a escola, etc., sempre com a Maria do Céu presente (ao ponto da minha irmã dizer que teve três mães, a nossa mãe comum, a minha tia e a Maria do Céu).
Em 1966 os meus pais, que viviam em Angola há uns vinte anos (onde nasceram 9 dos seus 10 filhos, havendo um que nasceu em férias), mudaram para Moçambique para poder ter consigo também esta filha, porque a África do Sul era mais perto e tinha melhores cuidados de saúde dos que era possível ter em Angola e porque um dos irmãos, médico, casado com uma médica fisiatra, tinha migrado (para usar a terminologia do artigo científico, que está certa) para a então Lourenço Marques (não, não era por ter consciência de que iria para uma situação de privilégio num contexto de desigualdade, nem por haver mão de obra barata e subjugada, era mesmo porque o investimento em hospitais novos abria oportunidades de carreira mais aliciante nesses hospitais que nos velhos hospitais com quadros preenchidos que havia em Portugal), o que aumentava muito a confiança dos meus pais num contexto que lhes permitisse ter a filha com eles.
Para além de, entretanto, a minha irmã ter começado a andar autonomamente com aparelhos ortopédicos, o que permitia uma gestão completamente diferente da situação.
E a Maria do Céu?
A Maria do Céu foi com a sua menina, naturalmente, por muitas razões, mas também para suavizar a transição de uma situação de filha única e centro das atenções de três mulheres (a minha avó, entretanto viúva, a minha tia, solteira e a Maria do Céu) para uma casa onde havia mais nove irmãos, para ela praticamente desconhecidos, maioritariamente rapazes, em que passava a ser mais uma entre iguais.
Está a ver a distância entre a sua generalização abusiva e a situação concreta que descrevi, cara investigadora, sobre as razões dos que migravam para África?
Dir-me-á que uma andorinha não faz a Primavera e eu concordarei consigo, portanto passemos ao meu pai, esse sim, um funcionário colonial pertencente às classes dominantes.
O meu pai era dos mais novos dos muitos filhos da minha outra avó, uma agricultora analfabeta de outra aldeia próxima da da Maria do Céu.
A minha avó, apesar de tudo, era das privilegiadas na aldeia, era a dona de uma das suas melhores casas agrícolas da aldeia, o que naquele mundo de pequenos produtores de milho, feijão e couves quer dizer muito pouco em termos absolutos, mas com diferenças relevantes em termos relativos: o irmão formou-se em Coimbra (o meu pai dizia que este seu tio era a pessoa mais inteligente que conheceu, mas o próprio dizia que a pessoa mais inteligente que ele tinha conhecido era a dita irmã analfabeta, minha avó) e os filhos tiveram recursos para emigrar para o Brasil (os homens penso que todos, com as excepções que vou referir, as mulheres nem todas).
Uma das excepções foi o filho mais velho, criado noutra aldeia vizinha na casa dos tios padres (nessa época era frequente ir distribuindo os filhos por outros familiares para aliviar o fardo de todos, os que tinham muitos com meios escassos para os alimentar, os que não tinham filhos e acediam a criar os dos outros), que entrou na carreira militar e acabou por ser um dos tenentes do 28 de Maio, mais tarde inspector colonial, e a outra excepção foi o meu pai, destinado a padre, razão pela qual teve uma educação formal mais extensa que os irmãos, enquanto andou no seminário.
Mais tarde completou o sétimo ano do liceu, a rebolar na parada do quartel de Viseu enquanto estudava para os exames, como me disse uma vez e, provavelmente, teria emigrado também para o Brasil, onde tinha vários irmãos (a maior parte dos quais nunca voltou a ver), não se desse o caso da crise económica dos anos 20 ter tornado o Brasil num destino de migração pouco interessante.
No princípio dos anos 40, aos vinte e poucos anos, sem um centavo no bolso e com vontade de casar com a minha mãe, uma menina de um meio relativamente mais favorecido que o seu, acabou por primeiro ir trabalhar com o irmão mais velho (então governador de Cabo Verde), voltar a Portugal para casar e seguir para Luanda (onde o irmão entretanto tinha sido colocado, penso que como governador de Luanda).
Daí terá entrado numa carreira de funcionário público na Alfândega, independente do percurso profissional do irmão, que o levou às fronteiras de Angola durante uns tempos até estabilizar (mais ou menos, os cinco filhos mais novos nasceram todos entre Lobito e Benguela, com a minha excepção) em torno do caminho de ferro de Benguela e do porto do Lobito.
Cara investigadora, do que o meu pai tinha consciência é de que precisava de alimentar uma família, foi para África porque surgiu essa oportunidade, como os irmãos foram para o Brasil quando era mais favorável e parte dos meus primos foram para França quando achavam que era melhor (alguns também para África).
De resto, se África fosse o paraíso automático para brancos, o normal seria que o grande surto migratório do pós segunda guerra mundial fosse para esse paraíso, mas a realidade não corrobora essa hipótese, a esmagadora maioria dos migrantes portugueses preferiram ir viver para os bairros de lata parisienses, a trabalhar nas fábricas europeias e onde fosse, na base social das sociedades desses países, a ser uns nabados protegidos em África.
Como vê, cara investigadora, a variação das motivações é enorme, como enorme é a diferença de estatuto dos migrantes em África, quer entre os brancos (entre uma e outra história estão milhares de outras com milhares de outras motivações, o meu sogro, por exemplo, foi para África para se livrar da confusão de saias em que se meteu), quer entre os não brancos, como os milhares de migrantes asiáticos que, especialmente em Moçambique, virado ao Índico, têm um peso enorme.
Tal como entre as populações africanas (independentemente de eu nunca perceber quanto tempo é preciso estar em África para se poder considerar africano, eu, por exemplo, vivi relativamente pouco tempo em África, até aos 14 anos, que comparam com os 50 na Europa, mas diga o meu cartão de cidadão o que disser, eu identifico-me como africano, só que é mais fácil obrigar o Estado a reconhecer-me como mulher que como africano, por razões que não entendo) há diferenças enormes, é completamente absurdo falar em subjugação a propósito do engenheiro agrónomo Amilcar Cabral ou do médico Agostinho Neto, pelo menos com a ligeireza e a generalização abusiva com que essas diferenças são tratadas no parágrafo que citei.
Sim, eram sociedades com grande estratificação social, sim, parte dessa estratificação social estaria relacionada com fenómenos de racismo, mas é de uma pobreza intelectual confrangedora olhar para estas sociedades, complexas e diversas, com a preocupação única que ressalta do parágrafo citado: o racismo é tudo e tudo explica.
Não, não é, e não tem o direito de fazer generalizações abusivas que ofendem a memória de muita gente que simplesmente tratou da sua vida, o melhor que sabia e podia, sem procurar tirar partido de situações de ilegítima superioridade de raça ou estatuto.
Para mim, isso é discurso de ódio.
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