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Numa conversa, aliás interessante, sobre administração pública, aparece, como habitualmente, a frase "o funcionário não interessa nada, esse faz o que lhe mandam" para defender medidas estruturais para limitar a corrupção e aumentar a transparência.
Devo dizer que esta frase me põe fora de mim, por duas razões essenciais: 1) pelo significa de desresponsabilização concreta da pessoa que, por acção ou omissão, não cumpre a lei no exercício de funções públicas; 2) pelo que significa de viés sobre a administração pública, esquecendo que (para citar uma das minhas irmãs), a negligência e o desleixo provocam muito mais danos que a maldade.
Como se chegou a uma administração pública que está cheia de gente razoável e séria, alguns muitíssimos bons e, com essa base de recursos humanos, produz resultados miseráveis?
É a pergunta que mais vezes me faço a mim próprio, quando tento saber o que se poderia fazer melhor, na administração pública.
Sem estudos, sem relatórios de consultoras, sem essas coisas todas, tendo hoje para dar uma resposta relativamente simples a esta pergunta: porque o país, a sociedade, tendem a olhar e a decidir sobre a administração pública como se fosse uma mera organização igual às outras, considerando que as técnicas e métodos de gestão empresarial são aplicáveis, com pequenas adaptações, à administração pública.
Esta visão, que junta os liberais mais radicais e os membros do governo mais esquerdistas, passando pelo jornalismo e meios empresariais que lidam com o Estado, é responsável por dezenas de decisões que partem do princípio que citei no princípio: a responsabilidade do funcionário é nenhuma, porque o funcionário faz o que lhe mandam.
No caso dos liberais mais radicais, o seu desprezo pelo Estado e pela função social do Estado estende-se, por esta via, aos funcionários que, notoriamente, desprezam, considerando-os uns inúteis que não fazem nada.
Ora a verdade é que as obrigações de um trabalhador de uma organização privada para com o seu empregador não se podem confundir com as obrigações do funcionário público, começando pelo facto das organizações privadas, mesmo aquelas cuja dimensão as leva a assemelhar-se a estados, terem um dono concreto e definido, que é directamente responsável pelas decisões da organização (mesmo que através de administrações profissionais poderosas), e as organizações públicas terem um dono abstracto: as pessoas comuns que dificilmente participam em quaisquer decisões concretas da administração pública (com a excepção dos níveis mais baixos dessa administração, em que pode haver uma grande proximidade entre quem decide e quem é o dono).
Repare-se neste artigo da lei geral do trabalho em funções públicas:
"Artigo 177.º Exclusão da responsabilidade disciplinar 1 - É excluída a responsabilidade disciplinar do trabalhador que atue no cumprimento de ordens ou instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria de serviço, quando previamente delas tenha reclamado ou exigido a sua transmissão ou confirmação por escrito. 2 - Considerando ilegal a ordem ou instrução recebidas, o trabalhador faz expressamente menção desse facto ao reclamar ou ao pedir a sua transmissão ou confirmação por escrito.".
Ao contrário da frase que motiva este post ("o trabalhador não interessa, porque só faz o que lhe mandam") a lei é tão clara, que apenas se debruça sobre a responsabilidade disciplinar por incumprimento de ordens ou instruções, para isentar o trabalhador de responsabilidade disciplinar quando elas existam (e delas o trabalhador não tenha reclamado, nomeadamente referindo a sua ilegalidade), parecendo-me evidente que, para o legislador, na ausência de instruções específicas, o trabalhador não faz o que lhe mandam, o trabalhador cumpre a lei, é essa a sua obrigação central e primeira.
Se alguém pede um documento administrativo - todos são públicos, com a excepção dos que a lei prevê que não sejam - a um funcionário e o funcionário não garante o acesso a esse documento, essa é uma responsabilidade individual e funcional do trabalhador, que escolhe não cumprir a lei (escusa-se de argumentar que tem de pedir autorizações a quem quer que seja, o código do procedimento administrativo é claríssimo "Artigo 59.º Dever de celeridade O responsável pela direção do procedimento e os outros órgãos intervenientes na respetiva tramitação devem providenciar por um andamento rápido e eficaz, quer recusando e evitando tudo o que for impertinente e dilatório, quer ordenando e promovendo tudo o que seja necessário a um seguimento diligente e à tomada de uma decisão dentro de prazo razoável.").
Se alguém emite um parecer que não cumpre a estrutura essencial de um parecer - descrição dos factos, descrição da legislação aplicável aos factos, parecer daí resultante - e, por essa razão não cumpre a lei - ou porque contraria o disposto na lei, ou porque invoca razões não previstas na lei - esse alguém é responsável por essa opção.
Claro que há uma responsabilidade dos seus dirigentes em aceitar, quanto mais não seja por omissão (a lei defende os dirigentes isentando-os de responsabilidades se seguirem o que está escrito nos pareceres, ao contrário do que acontece se resolverem contrariar os pareceres, razão pela qual os dirigentes preferem pedir, informal e ilegalmente, aos técnicos que escrevam um parecer diferente, a despachar em sentido contrário ao do parecer), mas antes dessa responsabilidade do dirigente, está a responsabilidade do funcionário que escolheu ignorar (o mais frequente) ou contrariar a lei.
O que me parece ser o problema central da administração pública é este intrincado de desresponsabilização (para o funcionário é irrelevante se mais tarde alguém demonstra que a sua acção ou omissão foi ilegal, para o dirigente o mais seguro é dizer amén aos pareceres, sem discutir a sua legalidade, até porque também para ele é irrelevante se a sua unidade orgânica cumpre ou não a lei) que tem origem no equívoco sobre a responsabilidade base do funcionário público.
São muito raros os dirigentes de topo e os dirigentes políticos, e os consultores de gestão e de reformas, que todos os dias de manhã repetem, ao espelho, o que deveria ser uma máxima posta em cima de cada porta existente na administração pública:
"O funcionário deve lealdade aos seus dirigentes, mas fidelidade só deve à lei".
E deve ser responsabilizado por cada uma das vezes que, por acção ou omissão, não cumpre a lei, mesmo que a pretexto de saber a opinião (irrelevante) do seu superior hierárquico sobre a aplicação da lei.
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