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Fogos urbanos, florestais, água e aviões

por henrique pereira dos santos, em 23.08.24

"Sim, estou convencido que o fogo não gosta que molhem sua base de sustentação. Combustível molhado não arde ou arde muito mal. O fogo não gosta que molhem aquilo que ele irá comer/devorar nos próximos segundos".

Com base em raciocínios simples deste tipo, e na ideia de que o terreno era impossível para o combate a pé, o que implicava a imprescindibilidade de meios aéreos, a resposta técnica pode ser um bocadinho mais complexa.

"Que tempo permanecem no ar (e já agora em terra também) sem efetuar qualquer descarga por não haver condições mínimas de segurança ou tão somente de visibilidade? Onde é que os meios aéreos efetuam as descargas (provavelmente a densidade de descargas coincide com locais onde todos os outros recursos também chegam - o que até é relevante porque sem consolidação em terra as descargas de pouco valem, mas cai por terra o argumento da necessidade dos meios aéreos para os espaços inacessíveis por meios terrestres)? Qual a eficácia dessas descargas nestas condições? E mais, em territórios acidentados como aqueles, é muito improvável que os aviões tenham mais chances de sucesso que os helis. Servem para apaziguar almas atormentadas, mas com uma relação custo/ benefício excessivamente desfavorável. Em Portugal insiste-se num combate com a cabeça enfiada nas chamas, direto, com água. Nestas condições havia que ter sido estabelecido o perímetro máximo que o incêndio poderia alcançar com base na progressão potencial, nas oportunidades existentes para combate direto, nos locais onde pudessem ser criadas novas oportunidades (para combate direto e indireto) diferenciando os recursos a utilizar (mecânicos ou manuais, com e sem o apoio de pinga-lume), e nos valores em presença (humanos, materiais, ecológicos). O meio aéreo quanto muito procuraria retardar a progressão onde fosse possível e/ou onde fosse mais necessário ganhar tempo para que as equipas implementassem as estratégias de ataque indireto ou trabalhassem no sentido de criar essas condições para ataque direto. O resto é folclore".

E pode ainda aumentar-se a complexidade da resposta.

"Em Espanha, não há qualquer limitacao de utilizar água salgada, nem nas Baleares, nas Canarias ou Galiza! Porque é que ca fizeram essa limitações? Onde há esta evidência técnica ou cientifica? Usar água doce limita a operação, já de si pouco eficaz e nada eficiente, pois as largada de água, pela orografia da Madeira, têm que ser muiot altas. ... O Canadair não é o meio aéreo adequado para a complexa orografia da Madeira. Tivesse havido planeamento adequado e por protocolo com Governo das Canarias, podiam usar outros meios (helicópteros medios, por exemplo)".

Eu escrevo pouco sobre combate a fogos porque sei pouco do assunto.

Partindo do que vou ouvindo a terceiros, no entanto, gostaria de fazer um comentário sobre doutrina de combate ao fogo florestal, para o que o fogo da Madeira me é útil como ilustração.

A ideia com que começo o post é uma ideia de senso comum: a água é um bom instrumento de combate aos fogos florestais.

Sendo inegavelmente senso comum, não é necessariamente bom senso.

O fogo urbano, de maneira geral, ocorre num espaço relativamente curto, consome combustíveis disponíveis de forma concentrada e tem um tempo de residência muito elevado, progredindo com relativa lentidão em extensão.

Por outro lado, por causa dos inúmeros fogos urbanos ao longo da história, com consequências terríveis, as cidades passaram a ter bocas de incêndio por todo o lado.

Ou seja, há fogos concentrados e água disponível, quase sem limitação, no ponto em que o fogo ocorre.

Um fogo florestal não é nada disto, é uma chama em movimento rápido (os fogos florestais ocorrem mais complicados ocorrem com ventos fortes) num território em que a disponibilidade de água para o combate é quase inexistente.

Isto significa que combater um fogo florestal com água implica andar de um lado para o outro atrás do fogo com depósitos de água que serão sempre insuficientes.

Não admira, por isso, que bombeiros urbanos acabem a fazer o que fazem em Portugal: esperam pelo fogo junto a origens de água relativamente abundantes.

E confiam em meios aéreos para transportar rapidamente água para onde anda o fogo.

O problema é que os meios aéreos, no combate a um fogo florestal, podem ser úteis, mas raramente isso acontece quando são usados como meios de transporte de volumes brutais de água que seriam necessários para ter um efeito real num fogo (um canadair pode transportar seis mil litros de água, dizia um jornalista entusiasmado, sem perceber bem, acho eu, que isso é um depósito de 3 metros de comprido, por dois de largo e um de altura, o que, evidentemente, não é suficiente para ter um efeito decisivo e duradouro numa frente de fogo, mesmo que seja possível despejar nas melhores condições, coisa que raramente acontece na Madeira).

Os meios aéreos são muito úteis para deslocar pessoas de um sítio para outro rapidamente, e podem ser úteis como apoio complementar a combate terrestre, mas não apagam fogos, por si só, isto é, sem ser em complementaridade com combate terrestre por sapadores.

Enquanto não for claro, em Portugal, que o trabalho de bombeiros urbanos e o de bombeiros florestais é radicalmente diferente, ao ponto da água ser um instrumento ineficientíssimo no combate a incêndios florestais e, consequentemente, estas funções não derem origem a uma separação institucional, com profissionalização dos bombeiros sapadores florestais, a doutrina de combate ao fogo florestal continuará a ser paupérrima, assente em pensamento mágico sobre a eficácia dos meios aéreos, como exemplarmente ilustrado pelo fogo da Madeira.

E os meios aéreos continuarão a ter o papel que hoje têm no combate ao fogo florestal em Portugal: tranquilizar as pessoas e desresponsabilizar os responsáveis pelo combate, sem que tenham grande efeito real no combate aos fogos florestais.


7 comentários

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De Guilherme F Onofre Silva a 23.08.2024 às 16:37

Além dos argumentos directos apresentados, os meios aéreos têm um custo  elevado, e, são também, ao que parece, um bom negócio para interesses instalados, e consequentemente para certos políticos a eles ligados (aliás um dos  sérios problemas do país  e das actuais democracias liberais na generalidade.
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De Silva a 23.08.2024 às 17:16

Obviamente que um fogo florestal deve ser evitado, por borregos e cabritos que sabem limpar bem as florestas.
Obviamente, esses tais borregos e cabritos devem ser grelhados e/ou assados no forno e tendo por combustível a lenha das florestas.
Compensa também haver pessoas por perto, alguns milhares nas aldeias, mas para isso é preciso haver condições para a manutenção das famílias nas aldeias e no interior em geral. Ora isso, só com a implementação, rápida e em força de reformas estruturais, a começar pela abolição do salário mínimo, liberalização dos despedimentos e abolição dos descontos seguindo-se outras reformas estruturais.
Seriam milhares de pessoas a residir no interior e que muitos passariam muito tempo junto às florestas bem limpas por cabritos e borregos e cortadas por pessoas para grelhar/assar esses cabritos e borregos.
E se mesmo assim, houvesse algum fogo, qualquer cão pastor sabe muito bem o que se deve fazer, basta levantar a pata e extinguir o fogo.
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De G. Elias a 23.08.2024 às 18:06

O facto de haver pessoas nas aldeias, por si só, não representa qualquer tipo de "garantia", uma vez que mesmo as pessoas que ainda lá moram já não limpam a vegetação como faziam há 50 anos. Na maioria dos casos deixou de ser necessária lenha para aquecimento e ninguém vai andar a roçar mato 
(trabalho fisicamente exigente) só por passatempo.
Quanto à manutenção de famílias "no interior em geral", é importante ter presente que o interior não é sinónimo de ruralidade e que o facto de, por exemplo, dez mil pessoas se mudarem de Lisboa ou Porto para irem viver para as cidades de Portalegre, Castelo Branco, Covilhã, Guarda ou Bragança não altera absolutamente nada em matéria de ocupação do mundo rural.
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De Pedro Oliveira a 24.08.2024 às 13:32

G. Elias,
Se se mudassem 10 000 pessoas de Lisboa e Porto para as zonas rurais das cidades que refere faria diferença.
Um casal de ingleses e dois casais de holandeses que se mudaram para uma zona rural (a uma hora e tal de Lisboa por auto-estrada) fizeram toda a diferença numa dinâmica do recordar e retomar o "antigamente" desde construções à antiga, à pastorícia do tempo do Soeiro Pereira Gomes, o "know-how" existe, basta despertá-lo.
Se resultou com estrangeiros, resultaria melhor ou igual com portugueses.
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De G. Elias a 24.08.2024 às 22:06

Pedro Oliveira, eu tive o cuidado de distinguir entre cidades do interior (que são ambiente urbano) e zonas rurais do interior. As pessoas mudarem-se para cidades do interior não faz diferença nenhuma.
Quanto ao exemplo que refere: é certo que há casos de pessoas que, talvez movidas por uma ideia romântica ou por uma certa nostalgia sobre um determinado modo de vida, decidem mudar-se para uma aldeia. E uma opção dessas pessoas. perfeitamente legítima. Mas sejamos realistas: tirando essas pessoas que acham piada a esse modo de vida, porque é que alguém há-de querer mudar-se para uma aldeia e para uma vivência rural? O que é que ganha com isso e, acima de tudo, vai viver de quê?
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De Pedro Oliveira a 25.08.2024 às 08:57

A vivência rural permite uma qualidade de vida superior, estamos a falar de um local a pouco mais de uma hora de Lisboa, não de uma cabana na Amazónia a quatro dias de viagem da civilização.
"Viver de quê" da mesma forma que os urbanos depressivos vivem, teletrabalho, mas com um enquadramento familiar muito mais favorável, principalmente, se existirem crianças pequenas.
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De G. Elias a 25.08.2024 às 14:27

Não digo o contrário. Mas viver numa aldeia em teletrabalho não contribui para a prevenção de incêndios.

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