por João Távora, em 25.09.20
A maior parte das vezes são os casos que nos tocam de perto que nos despertam para determinados problemas que doutro modo nos passavam ao lado. É por isso que, de há uns anos para cá, por causa da minha mãe que sofre de uma grave doença respiratória degenerativa, a gripe sazonal e o receio de uma consequente pneumonia, me atormenta todos os invernos. Necessitada de assistência respiratória 24h por dia, com a sua autonomia física em constante degradação, viu-se ela obrigada a ingressar numa residência onde pudesse passar os seus últimos anos de vida com algum conforto, e foi assim que encontrámos um refúgio abençoado num lar de uma paróquia de Lisboa. Trata-se de uma casa com ambiente familiar e cristão com capacidade para cerca de dez senhoras de diferentes origens sociais, todas elas extremamente dependentes mas cheias de dignidade, que são assistidas com grande humanidade por uma pequena equipa incansável de profissionais e voluntários – não existem suficientes palavras para aqui expressar a gratidão que sinto.
Foi neste ambiente, que ao longo dos anos, com a ajuda da família, a minha mãe conquistou o direito de viver num quarto que em grande medida é reflexo das suas origens e interesses. Desde o retrato do Rei Dom Miguel na parede, a sua pequena biblioteca de biografias e romances, bibelots e muitas fotografias da sua família, pais, irmãos, filhos e netos; e uma decoração alegre criada em cumplicidade com a minha mulher. Tudo à sua volta existe para lhe proporcionar um ambiente acolhedor e ligação às raízes, coisa que estou certo tem contribuído para a ligar ao mundo e à vida, que apesar da sua doença amarga, merece ser desejada, em harmonia e na proximidade possível com os seus.
A epidemia do Covid19 veio abalar todos estes precários equilíbrios. Há mais de seis meses que nos tivemos de conformar e enfrentar mais este tormento, que ameaça ser fatal para a frágil saúde da minha mãe, não tanto por causa do vírus mas por causa das contingências a ele ligadas, nomeadamente ao isolamento e consequente solidão e degradação do seu estado psicológico.
Isto vem a propósito de uma reunião ocorrida ontem na dita paróquia para a qual os familiares das senhoras residentes foram convocados pelo director da residência - uma reunião de filhos, como lhe chamei. Ela serviu para nos comunicar que as nossas familiares dentro do possível se encontram bem, que a equipa de assistentes se tem desdobrado em esforço e precauções para que o ambiente se mantenha salubre, tanto psicológica quanto sanitariamente. Foi assim que soubemos da pressão a que aquele lar (é fundamental mantê-lo em anonimato para que não aumentem as represálias do Estado) tem sido submetido em constates inspecções feitas ao desafio pelas diferentes tutelas, com o aparente objectivo não de proteger os residentes, mas antes a si próprias; sempre com mais e mais exigências que colocam em causa a subsistência económica da estrutura, muitas delas contraditórias, extremamente difíceis de cumprir numa casa com aquelas especificidades. Da exigência de distanciamento físico entre as residentes dentro das instalações (são 10 senhoras por Deus!), que obrigou a criarem-se turnos para frequência da sala de estar e de jantar, do distanciamento milimétrico das camas nos quartos duplos, como se aquela pequena comunidade não fosse como uma família; a obrigação das janelas constantemente abertas, requisito que muito em breve poderá ser causa de pneumonias; e da nova e perturbadora proibição das residentes terem nos seus quartos objectos pessoais, livros, fotografias e decoração (até as cortinas foram retiradas), para a salvaguarda de um ambiente asséptico “fácil de desinfectar”. Como se não bastasse as senhoras estarem há 6 meses impedidas de sair e entrar na casa; que as visitas, retomadas em Junho, sejam feitas através dum acrílico na porta para as escadas que dificulta tremendamente a audição; como se não bastasse tudo isto, pretendem estes burocratas soviéticos, que as senhoras vivam encerradas em paredes brancas, por tempo indeterminado como se fossem presidiárias.
Pela minha parte estou convencido que, se os nossos entes queridos não morrerem por causa do Novo Coronavírus, irão morrer de desespero e solidão por causa desta sanha normativa que trata as pessoas como se fossem números de quem as brigadas do governo a qualquer preço se querem proteger. O número de mortes excessivas está aí para nos alertar das consequências da desproporcionalidade dos meios em relação aos fins. O centralismo burocrático e o fascismo higiénico matam mais que a epidemia.