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Falhas de carácter

por henrique pereira dos santos, em 23.09.24

Um dia destes fui entrevistado durante quase uma hora por Vítor Gonçalves sobre fogos.

Para além de muitos comentários simpáticos (por exemplo, um dos meus irmãos disse-me que o entrevistador era tão bom que eu até parecia inteligente, sensato e sabedor) e palmadinhas nas costas, houve bastantes comentários contestando a entrevista, como é normal numa matéria controversa.

Frequentemente não se contestam os argumentos que usei, e uma hora dá para bastante por onde pegar, eu próprio sou capaz de identificar meia dúzia de erros (alguns lapsos evidentes) e imprecisões, o que se contesta são as falhas de carácter que me fazem dizer o que digo, de que é exemplo este artigo, no Expresso, escrito por  uma especialista em fogos que desconheço mas sei que é "residente em Lisboa, 50 anos [esta informação não deve estar actualizada], licenciada em Relações Internacionais pelo ISCSP e pós-graduada em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação pelo ISCTE. Foi professora, jornalista, assessora de imprensa e atualmente exerce funções de representação internacional no setor das telecomunicações (ANACOM)".

Onde eu cito Paulo Fernandes (um dos cinquenta cientistas mais influentes do mundo em ecologia do fogo), José Miguel Cardoso Pereira, Tiago Oliveira, António Salgueiro, Nuno Gracinhas Guiomar e outros, com sólido e incontestado curriculum relacionado com o estudo e a gestão do fogo, Marta Leandro cita Jorge Paiva (que não tem uma linha de investigação científica relacionada com ecologia do fogo), Helena Freitas (que desconheço que alguma vez tenha publicado uma linha de trabalho científico ou técnico sobre fogo, a sua gestão e o seu papel ecológico) e a minha colega Manuela Raposo Magalhães que, essa sim, foi coordenadora de um projecto relacionado com fogo (Scapefire), que se distingue por uma grande originalidade: envolve dezenas de investigadores e técnicos, mas nenhum deles tem qualquer curriculum, trabalho e investigação sobre ecologia do fogo.

Os comentários mais divertidos são os dos "corações muito grandes cheios de fúria e amor" (parafraseando Jorge de Sena), que escrevem inflamadas acusações e teorias de conspiração sobre a simultaneadade das ignições detectadas por satélite, sem fazerem a mínima ideia de que essas ignições são registadas pelo satélite em simultâneo, não porque ocorram ao mesmo tempo, mas porque é a hora que o satélite passa.

Tudo visto e ponderado, as grandes críticas não são ao que eu digo mas, por falha de carácter que me leva a ser um vendido aos interesses, ao facto de eu não alinhar com teorias de conspiração sobre ignições (leiam Cristina Soeiro, caramba) e dizer que muito mais importante que a composição do coberto florestal, é a quantidade e estrutura dos combustíveis finos (argumento que é simplificado, por quem se empenha na demonstração pública das suas virtudes, na afirmação falsa de que eu digo que arde tudo por igual).

Sobre este último assunto, durante esta entrevista, mandaram-me as fotografias abaixo que ilustram o que qualquer pessoa que estude o assunto diz, mais assim ou mais assado.

alferce fogo eucalipto.jpg

alferce fogo sobreiro.jpg

alferce fogo sobreito.jpg

O que temos então nestas fotografias?

Na primeira, eucaliptal gerido, com pouca afectação de fogo, numa matriz de vegetação autóctone , e provavelmente não autóctone, (incluindo as áreas de vegetação natural mantidas na plantação ao longo das linhas de drenagem natural), sobreiral mediana a severamente afectado na segunda e sobreiral com combustíveis finos completamente incinerados na terceira, mantendo a biomassa de maior diâmetro, todas as fotografias provenientes do mesmo fogo, o fogo de Alferce/ Monchique de 2018.

Resumindo a sequência de imagem, não é por falha de carácter que passo o tempo a contestar ideias românticas sobre o efeito do fogo na vegetação, é porque tenho amigos que sabem muito mais que eu e passam o tempo a mostrar-me que o que eu pensava, e tinha aprendido na escola, não se verifica na realidade.

Seja em coisas mais complexas, como este artigo fundamental do Paulo Fernandes, já com uns valentes aninhos, seja em fotografias que me mandam durante um programa de televisão, para me ajudar a ilustrar as teses que vou repetindo a partir da investigação e criação de conhecimento de quem realmente estuda o assunto.

Dou de barato que eu seja um pulha vendido aos interesses, discutir isso não interessa a ninguém (se nem a mim me interessa, imaginem aos outros), mas não é seguramente a negar infantilmente que a terra anda à volta do Sol, porque é óbvio que qualquer pessoa pode verificar que é o Sol que anda à volta da terra, que se consegue demonstrar que os cálculos de Kepler não têm validade.


17 comentários

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De Susana V. a 23.09.2024 às 10:17


“essas ignições são registadas pelo satélite em simultâneo, não porque ocorram ao mesmo tempo, mas porque é a hora que o satélite passa.”



Muito bom!!!



  o que eu pensava, e tinha aprendido na escola, não se verifica na realidade.”


É exactamente este o meu sentimento relativamente ao fogo e a tantos outros assuntos que são papagueados pelos meios de informação. Obrigada pelo excelente e incansável trabalho de divulgação que faz.

Tenho uma dúvida. Os sobreiros regeneram. 

Passado um ano estarão outra vez verdes, ou não? Suponho que depende da energia do fogo… 
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De Joao soares a 23.09.2024 às 11:14

Se os sobreiros tiverem sido muito recentemente desboiados o destino normal apos um fogo é morrerem ( porque o cambio é irreversivelmente atingido). Se tiverem cortica na arvore já com 5/6 ou mais anos importa remover essa cortica ( sem danificar o cambio) e a arvore tenderá a permitir um novo descortiçamento legal 9/10 anos depois. 
O estado sanitario previo e a maior intensidade e duração do fogo podem diminuir a probabilidade desta “predição”…
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De Anónimo a 23.09.2024 às 14:27

predição ou previsão?
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De Anónimo a 23.09.2024 às 14:29


<i>desboiados</i>


???


Será que queria dizer "descortiçados"?
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De Susana V. a 23.09.2024 às 19:59

Desbóia - extração da primeira  cortiça.
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De Anónimo a 23.09.2024 às 22:24

A desbóia é a 1ª extração da cortiça. Poderá generalizar para os restantes descortiçamentos. A mortalidade dos sobreiros pós-fogo depende ainda da severidade do fogo. Mesmo alguns dos que apresentam rebentação epicórmica poderão morrer tempo depois (ficam muito vulneráveis a outras perturbações, como secas e/ou pragas).
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De Susana V. a 23.09.2024 às 19:57

Obrigada pela resposta, João Soares.
É mais ou menos o que eu imaginava. O sobreiros podem sobreviver a um incêndio que este não seja muito intenso. 
Num pinhal/ eucaliptal dos meus sogros, onde os pinheiros arderam totalmente (até a raiz ardeu) os eucaliptos rebentaram de touça e alguns sobreiros velhos sobreviveram. Passado um ano estavam verdes outra vez. 
Cumps
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De M.Sousa a 23.09.2024 às 11:35

“essas ignições são registadas pelo satélite em simultâneo, não porque ocorram ao mesmo tempo, mas porque é a hora que o satélite passa.”


Para estas almas iluminadas um satélite não passa; "está"; sempre no mesmo sitio, como que pendurado num poste. Tipo câmera de segurança...
Só isto demonstra a colossal ignorância de todas esta gente

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De Anónimo a 23.09.2024 às 13:30

Ha satelites que estão. os geoestancionarios, mas não sao usados para varrimento da superfcie, sao os de comunicacoes que estao a 36 000km de distancia e nao "veem" nada.
O que tiram fotos e detectam fogos estão orbitas polares mais baixas e de facto passam
Pensar que "estão" não é um erro crasso.
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De lucklucky a 23.09.2024 às 20:13

36000km é muito distante para ópticas e cameras térmicas. Até 1000km altitude é o normal. Logo já não são geoestacionários.
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De M.Sousa a 23.09.2024 às 20:19

Bem, mesmo os satélites geoestacionários, não estão parados. Estão em órbita síncrona com a velocidade de rotação equatorial da Terra. Logo, não são usados para este fim, como muito bem diz. 
Mas, dado que o post trata de afirmações proferidas por "especialistas", trata-se de um erro crasso sim. Pois para muitos destes "especialistas" do comentário, os satélites (estes que vêm os incêndios) não "passam" ; "estão" 


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De Anónimo a 23.09.2024 às 23:11

Eu estou a aprender imenso aqui. Os especialistas usam dados de incêndios ativos provenientes de 3 instrumentos:
a) SEVIRI a bordo do Meteosat (satélite geoestacionário): óptima resolução temporal (15 m), baixa resolução espacial (3 km) - não é fácil associar dados de potência radiativa do fogo a fogos específicos em dias como os da passada semana;
b) MODIS a bordo dos satélites Aqua e Terra, com órbita heliossíncrona: extraem informação em dois momentos por dia, com resolução espacial de 500m (FRP) - a associação do FRP/ocorrência é fácil, mas a resolução temporal não permite associar com precisão o momento a partir do qual o incêndio se desenvolve;
c) VIIRS a bordo dos satélites Suomi NPP e NOAA-20, com órbita polar: extraem do mesmo local em dois momentos por dia, mas tem melhor resolução espacial que o MODIS (permite, no momento da passagem, estimar a extensão da frente ativa o que já é muito bom).
A deteção depende da energia libertada (há muitos outros fatores limitantes). São muito bons instrumentos, têm imensa utilidade, mas é pura fantasia associar o momento da ignição com a deteção do satélite.
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De Anónimo a 24.09.2024 às 13:43

Muito aprendi sobre as imagens dos satélites bem como do ambiente que suponho ser Académico de especialistas do fogo contudo … as questões essenciais continual por esclarecer/resolver ou estarei enganado?
1posse da terra / floresta ou mata é ou não é a 1a grande questão ? Só depois de resolvida é que será possível passar para a 2 fase - gestão florestal 
Solução? Atualização compulsiva do cadastro com atualização do valor patrimonial com bonificaçoes a quem cuida e penalização a quem abandona ! 
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De henrique pereira dos santos a 24.09.2024 às 15:52

Não vejo nada por esclarecer nessa matéria, o que escrevo é muito claro a dizer que não, não acho a questão da propriedade nada central e sim, acho que as questões de gestão se podem resolver já, parcialmente, para que os que já a fazem ganhem mais dinheiro com isso.
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De Elvimonte a 24.09.2024 às 22:24

E quando a madeira é furtada que os anónimos paguem as indemnizações aos proprietários, porque não são estes os culpados do número insuficiente de guardas florestais.


"Atualmente, a GNR conta com cerca de 400 guardas-florestais ao serviço e têm como missão fiscalizar e investigar os ilícitos nos domínios florestal, caça e pesca."
(https://www.portugal.gov.pt/pt/gc22/comunicacao/noticia?i=portugal-devera-ter-mais-de-500-guardas-florestais-ate-2023)



Patrulhamento e prevenção não parece constar da missão. Aliás, sobre este aspecto o cenário é tão ridículo que, na sequência de uma chamada para a GNR lá do concelho a pedir que viessem identificar alguém que andava a roubar madeira, o autor da chamada, dono do prédio rústico e meu conhecido, ficou surpreendido quando do outro lado lhe perguntaram se eram os L****, publicamente conhecidos na zona por essa prática recorrente, como vim a saber.


E quando os L**** me furtaram a madeira de um prédio meu e eu apresentei queixa, porque houve testemunhas que me contactaram, o MP arquivou o processo. Nem mesmo com a abertura de instrução que posteriormente requeri foram acusados. Perante este autêntico mistério público e instrutório, é claro que já não recorri. 


Sic transit gloria mundi. 


PS - O mês passado vi um dos L**** ao volante de um SUV topo de gama, de marca premium alemã. Não tenho dúvidas que paguei uma parte do veículo. Afinal, o negócio mais rentável continua a ser o furto.
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De Eduardo Cardoso a 24.09.2024 às 14:05

Obrigado 
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De anónimo a 24.09.2024 às 18:54


Muito bom, como usualmente. 
"...muito mais importante que a composição do coberto florestal, é a quantidade e estrutura dos combustíveis finos...". 
Os "ignorantes" arborígenes para obterem uma fogueira esfregam com as mãos um pauzinho numa base de madeira e ajuntam combustíveis finos....

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