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"Numa altura em que devíamos estar a conter a edificação à reabilitação e à consolidação dos perímetros urbanos e proibir a construção dispersa para fora dos seus limites, em que devíamos estar a fomentar dar ao poder público a decisão de avançar com os processos de urbanização através de expropriações e deixar para o privado o acto de construção, baixando a especulação dos solos, estamos a fazer tudo ao contrário e, já nem se esconde ao que se vem. Já nem é para resolver o problema da habitação, é mesmo para permitir que uns quantos ganhem milhões com terrenos rústicos já comprados e agora, num ápice, minas de ouro. Estamos a regredir tanto que até o ex-Ministro do PSD, Jorge Moreira da Silva, veio recordar o seu discurso em 2014 quando, e bem, se tentou reverter este caminho, no rescaldo da bolha imobiliária. É um desânimo enorme ver o PS a jogar matraquilhos com Isaltino Morais enquanto se prepara para aprovar este decreto-lei. A falta que faz Gonçalo Ribeiro Telles!".
Este desabafo de um amigo e colega, a propósito de uma pequena alteração de procedimentos no sistema de planeamento, corresponde, embora na forma mais civilizada e sofisticada, ao sentimento de algumas pessoas e da generalidade da imprensa.
No entanto, vale a pena olhar para cada um dos argumentos e discutir a sua validade.
Comecemos pelo fim, com a invocação de Ribeiro Telles, em defesa de teses que ele próprio, Ribeiro Telles, nunca defendeu. É uma situação comum mas, a menos que eu esteja enganado, apesar de ao longo da vida Ribeiro Telles ter defendido muita coisa diferente (isto é uma constatação, não é nenhuma acusação, pelo contrário, uma das mais interessantes características de Ribeiro Telles era a sua capacidade de aprender e se adaptar, ou seja, de mudar), não me estou a lembrar de algum texto em que tenha perfilhado as teses de Sidónio Pardal, hoje essencialmente defendidas por Pedro Bingre, de que a urbanização deveria ser um exclusivo do Estado, como é defendido no que transcrevi.
Vamos então aos argumentos: "devíamos estar a conter a edificação à reabilitação e à consolidação dos perímetros urbanos e proibir a construção dispersa para fora dos seus limites".
Nesta frase há duas coisas diferentes, uma a de que deveríamos estar a conter a edificação à reabilitação e consolidação dos perímetros urbanos, outra a de que a construção dispersa deveria ser proibida.
Qualquer das duas ideias merece comentário e comecemos pela mais simples: a actual alteração da lei não altera rigorosamente nada em relação ao enquadramento da construção dispersa, invocar esta questão a propósito desta alteração legislativa não tem qualquer base factual.
Dito isto, a construção dispersa é um modelo de ocupação urbana tradicional, que tem muitos defeitos e algumas vantagens. Em qualquer caso, há um conjunto de instrumentos para conter a construção dispersa que não passam forçosamente, pela sua proibição, mas pela adopção de políticas de gestão do território que diminuam a sua atractividade, em especial no que diz respeito ao acesso a redes de infraestruturas (não, não deveria haver qualquer obrigação do Estado levar a infraestruturação a qualquer casa nova) ou a protecção de bens (não, os bombeiros não têm nenhuma obrigação de defender casas que os donos resolveram edificar em zonas de manifesto risco).
Quanto à questão dos perímetros urbanos, o que está escrito é uma grande falácia, porque a alteração de perímetros urbanos é o dia a dia do processo de planeamento (não passa pela cabeça de quase ninguém a defesa de perímetros urbanos ad aeternum, incapazes de responder a um futuro que desconhecemos). O que esta lei faz é, na prática, responder a um problema sério do sistema de planeamento que temos: o processo de alteração dos planos é de tal maneira complexo, longo e incerto, que os legisladores (dos vários partidos), em vez de se meter no vespeiro político que consistiria na alteração do modelo de planeamento que temos (a solução ideal num sistema de governo racional com uma imprensa mais cartesiana e menos activista), preferem lançar mão de procedimentos excepcionais para obter o mesmo efeito, como com esta lei, em que o perímetro urbano se altera de facto, sem se alterar o nome.
O que esta lei faz não é alterar nada de substancial, o que esta lei faz (como outras alterações anteriores), é alterar procedimentos que, com um sistema de planeamento eficiente e razoável, deveriam ser adoptados como procedimentos normais e não como escapatória formal para situações excepcionais.
A defesa de que com problemas como os que existem bastaria usar racionalmente o espaço urbano existente é um ponto de vista razoável (que, em grande parte, partilho do ponto de vista técnico, exactamente por isso é que digo que a alteração que dá origem a este banzé é provavelmente irrelevante) mas pressupõe a defesa de uma alteração profunda das regras de arrendamento e gestão urbana, no sentido do reforço sério da liberdade contratual e da confiança dos proprietários, coisa de que a generalidade dos defensores da tese de que não é preciso mais espaço urbano costuma fugir como o diabo da cruz.
"devíamos estar a fomentar dar ao poder público a decisão de avançar com os processos de urbanização através de expropriações e deixar para o privado o acto de construção".
Esta tese, defendida por Sidónio Pardal, Pedro Bingre e muito poucos mais, corresponde a uma situação que já existiu, mas os resultados foram tão maus, tão maus, que, naturalmente, foi abandonada. Note-se que nada impede qualquer autarquia do país (ou qualquer fundação privada) de comprar hectares e hectares de terrenos não urbanos e depois os alterar a seu favor, executando um programa como o proposto. Acontece que nem as autarquias do Partido Comunista o fizeram, nestes anos todos, por uma razão simples: é uma solução que exige capital, muito, depois capacidade de explicar aos eleitores por que razão os planos devem ser alterados em função dos interesses das autarquias e, por fim, um processo decisório de atribuição dos direitos de construção à prova de bala, ou seja, riscos financeiros e políticos elevadíssimos, para retornos péssimos: uma conflitualidade permanente, incluindo judicial, e incapacidade de produzir cidade a ritmos compatíveis com os da dinâmica social, como gostam de dizer os teóricos do urbanismo.
"é mesmo para permitir que uns quantos ganhem milhões com terrenos rústicos já comprados e agora, num ápice, minas de ouro." Este é um processo de intenções habitual que, note-se, é válido para as regras gerais: são os planos que ao atribuir capacidade construtiva alteram, artificialmente, o valor dos terrenos, a lei não mexe nessa característica do sistema de planeamento, apenas altera o processo para o fazer, simplificando-o e atribuindo essa capacidade às assembleias municipais.
Nas assembleias municipais estão representadas muitas forças políticas diferentes e as suas decisões, incluindo os seus fundamentos, são obrigatoriamente públicos.
Se, por acaso, alguma autarquia pegasse num terreno qualquer, lhe atribuísse capacidade construtiva apenas porque o dono é amigo do presidente de câmara, tenho as maiores dúvidas de que passasse na assembleia municipal e não desse origem a processos judiciais.
Partir do princípio de que esse é o objectivo da lei (que é diferente de partir do princípio de que esse risco existe) é partir do princípio de que todo o sistema de regras administrativas legais, de investigação judicial e de participação pública nas decisões da administração (seja ela autárquica ou não) é completamente inútil e não funciona de todo.
Não sei se José Sócrates terá a mesma opinião.
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