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Espantalhos

por henrique pereira dos santos, em 18.07.23

Um comentário no meu post em que, pela enésima vez, defendo uma política de pagamento directo da gestão de áreas florestais como forma de obter um resultado socialmente útil para a gestão do fogo, parece-me óptimo como resumo dos entraves à discussão dessa hipótese.

Comecemos pelo princípio: a proposta não surge do nada, surge como alternativa à política dominante, que tem conduzido ao aumento da despesa pública com prevenção e combate aos fogos florestais, portanto, quaisquer críticas sobre o seu custo, avaliação e fiscalização deveriam estar centradas na comparação com a situação existente em matéria de custo, avaliação e fiscalização, e não em abstracções genéricas como se hoje a política de gestão do fogo não fosse cara, ineficiente e opaca.

Infelizmente, apesar da radicalidade da crítica à proposta, não é nessa base que a proposta alternativa ao que existe é criticada, mas sim usando um modelo retórico corrente: tira-se uma conclusão, e depois logo se vê que argumentos de arranjam para a sustentar.

No caso, a conclusão aparece no fim, mas na verdade é o ponto de partida: "posso afiançar que os modelos marcianos não têm aplicabilidade terrena, a menos que se pretenda concluir que a realidade está errada".

Isso é muito claro na forma como se organiza a crítica, começando por redefinir a proposta, evitando discutir a proposta tal como ela é, discutindo-se antes uma interpretação da proposta cuja contestação é mais fácil.

"Ora eu (e outros), para me limparem terrenos pago cerca de 100 Euros por cada 1000 m2. Como 1 hectare corresponde a 10 000 m2, não me importo de pagar 150 Euros por hectare, mesmo que não receba os tais 100 Euros de subsídio".

O valor de referência aqui usado, de mil euros por hectare, é um valor realista para gestão de combustíveis moto-manual, com recurso a sapadores florestais, omitindo-se, no entanto, outros valores de referência, nomeadamente com recurso a fogo controlado ou pastoreio, valores que realisticamente poderemos admitir que sejam um quinto do valor de referência usado na contra-argumentação.

A deturpação central da proposta feita está aqui implícita, ao pretender-se que a proposta pretende espatifar dinheiro em gestão sem outro objectivo que não a gestão de combustíveis e o controlo do fogo para resolver os problemas dos proprietários.

Explicitamente, e por isso se estranha o esforço em contestar a proposta a partir de outro ponto de partida, a proposta feita pretende ser um incentivo às actividades que já hoje fazem gestão de combustíveis: produção de resina, pastoreio, caça, conservação da natureza, produção florestal, etc., ou seja, a proposta não pretende resolver o problema dos proprietários que querem gerir combustíveis nas suas propriedades sem esperar qualquer retorno dessa gestão.

O que se pretende é que os produtores de resina passem a ter um rendimento complementar, que os pastores passem a ter um rendimento complementar e por aí fora, tornando essas actividades mais atractivas, isto é, criando condições para que se expandam e, consequentemente, se expanda a gestão de combustíveis que já hoje fazem para exercer a sua actividade.

As respostas que agora vou dar à lista de argumentos que se andou a juntar para fundamentar a conclusão prévia devem ser lidas com esta base: não vou responder com base na proposta tal como descrita pelo comentador, vou responder com base na proposta, tal como a apresentei, sem a distorção fundamental usada pelo comentador.

"I) Como se vai fazer prova da limpeza do terreno?"

Declaração formal do interessado, apresentada directamente aos organismos do Estado responsáveis pela aplicação da proposta, ou intermediada pelas organizações florestais que estabeleçam acordo com o Estado para executar essa tarefa.

"II) Como se vai fiscalizar se a limpeza foi efectuada?"

Com deslocação ao terreno, por amostragem, que é exactamente o mecanismo de fiscalização de aplicação das ajudas na agricultura (e em muitos outros lados).

"III) Como se vai verificar se a área limpa corresponde à declarada?"

Ver resposta anterior

"IV) Como se vai processar o pagamento do subsídio?"

Da mesma forma que se fazem devoluções de retenção dos impostos, ou pagamentos de ajudas da política agrícola, por transferência bancária.

"V) Existe algum estudo sobre o assunto (semelhante a um estudo de mercado) em que se esclareça:
a) o universo potencial de área abrangida;
b) o universo potencial de proprietários abrangidos;
c) a percentagem estimada de aderência em termos de área e número de proprietários;
d) a percentagem estimada de aderência entre os proprietários que já limpam os terrenos e a correspondente área percentual;
e) a percentagem estimada de aderência entre os proprietários que não limpam os terrenos e a correspondente área percentual;
f) a área média dos terrenos referentes a d) e e);
g) a rentabilidade média anual dos terrenos referentes a d) e e)."

Não havendo qualquer indicação da utilidade desse estudo (que não existe para a política actual também), ainda assim procurarei responder a cada uma das alíneas.

a) O universo potencial é o país, dentro do país, as áreas florestais, separadas em 3 milhões de hectares de matos e 3 milhões de hectares de povoamentos florestais;

b) O universo potencial de proprietários abrangidos é a totalidade dos proprietários existentes no país;

c) É irrelevante saber qual será a percentagem de aderência dos proprietários (prever o futuro é uma actividade arriscada e, frequentemente, inútil), a proposta prevê um mecanismo de adaptação progressiva do valor do incentivo de maneira a que se a área a ser gerida for insuficiente, o valor do incentivo aumente, se for excessiva, diminua. O que se sabe é que cerca de 20% dos tais seis milhões de hectares deveriam ser sujeitos a operações de gestão de combustíveis de cinco em cinco anos, ou seja, dever-se-ia ter como primeiro objectivo gerir combustíveis anualmente em torno dos 200 mil hectares. Este objectivo deve ir sendo revisto em função da avaliação que for sendo feita da aplicação da medida, tendo como KPI a diferença entre área ardida (seria preferível usar os prejuízos causados pelo fogo, mas é bastante mais complexo) verificada e a estimada sem quaisquer medidas, para as condições meteorológicas verificadas no ano.

d), e) e f) Irrelevante, pelas razões explicadas no comentário anterior;

g) Irrelevante, esse é um assunto que diz respeito ao proprietário.

"VI) Relativamente ao destino a dar ao material combustível resultante da limpeza:
a) foi equacionada a sua entrega a centrais de bio-massa?
b) foram equacionadas as hipóteses de produção de briquettes de bio-massa, pirólise e produção de briquettes de carvão vegetal com aproveitamento do gás pobre resultante para alimentação de caldeira ou forno?
VII) Considerando a utilização de cabras sapadoras, quem toma conta delas?"

Questão completamente irrelevante para a proposta, são tudo matérias que dizem respeito ao proprietário, e que nem sequer se coloca, nas duas primeiras questões, se a gestão de combustíveis for feita com fogo ou com gado, por exemplo.

Espero que fiquem claras as razões pelas quais o assunto é politicamente impossível de tratar: a generalidade da sociedade não está interessada em discutir vantagens e desvantagens de qualquer soluções potencial, está muito mais interessada em demonstrar a sua superioridade intelectual.

E esta atitude é ainda mais marcada na tecnoestrutura que forçosamente tem de ser chamada a pronunciar-se sobre estas matéria, razão pela qual nada se resolve: a generalidade dos técnicos e dirigentes da administração pública estão-se completamente nas tintas para o que se passa no terreno, concentrando-se na gestão das suas carreiras.

O que, numa administração pública reaccionária  e intelectualmente indigente, como a portuguesa, quer sobretudo dizer uma gestão ultra-prudencial do risco, isto é, "viver como habitualmente" e evitar, a todo o custo, qualquer inovação que possa pôr em causa as relações de poder existentes e consolidadas.


6 comentários

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De balio a 18.07.2023 às 11:00


O que se pretende é que os produtores de resina passem a ter um rendimento complementar, que os pastores passem a ter um rendimento complementar



Não entendo: então os 100 euros por hectare seriam entregues ao proprietário do terreno, ou ao produtor de resina (ou ao pastor) no terreno?


Quem é que se candidataria a receber os 100 euros - o proprietário, ou o pastor ou o resineiro?
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De henrique pereira dos santos a 18.07.2023 às 11:49

Questão completamente irrelevante: o aumento de rendimento vai sempre parar a quem faz a gestão.
O proprietário só recebe se alguém fizer a gestão e quem faz a gestão negoceia o acesso à terra em função das expectativas de rendimento.
Há quem chame a isso mercado.
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De balio a 18.07.2023 às 11:58


Não, a questão não é irrelevante, porque pode haver falhas de (transmissão de) informação.
Por exemplo, uma pessoa que me pede para usar uma propriedade minha para pôr lá umas cabras a pastar, não sabe se eu depois irei pedir ao Estado um subsídio por a propriedade ficar limpa, nem sabe se (nem quando) o Estado me pagará esse subsídio. Eu até poderei nem conhecer essa pessoa.
Ainda recentemente me telefonou um indivíduo que eu não conheço a dizer que era de uma associação de caçadores e que queria limpar uma propriedade minha. Eu dei-lhe autorização, mas não sei se ele já limpou ou se ainda não limpou, se limpou bem ou limpou mal. Nem ele sabe se eu pedi, ou algum dia irei pedir, subsídio por ele ter limpado.
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De henrique pereira dos santos a 18.07.2023 às 12:50

Completamente irrelevante.
Se pede para pôr as cabras é porque tem interesse nisso, mesmo sem rendimento complementar.
Se o proprietário depois resolve ir buscar esse dinheiro para si, passa a ter mais interesse em manter o acordo, esforçando-se por não perder esse parceiro que pode ser tentado pelo proprietário do lado que lhe diz que se ele quiser mudar as cabras para os seus terrenos, podem dividir o apoio entre os dois.
Este segundo proprietário passa a ter interesse em não perder esse parceiro para um terceiro proprietário que pergunta ao pastor se não quer pôr as cabras no seu terreno e ainda ficar com o apoio por inteiro.
No fim, a coisa equilibra-se.
Agora discutir uma proposta que é desenhada para reforçar a expandir as actividades que já fazem gestão do território com base em casos individuais de situações hipotéticas, a mim parece-me um exercício ocioso: com certeza a proposta não é 100% eficiente, como nenhuma proposta será, o que me interessa é apenas saber se é mais eficiente que a situação actual.
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De Zé raiano a 18.07.2023 às 11:19

A RÃ E O ESCORPIÃO Conta-se que há muitos milhares de anos – ainda no tempo em que os animais falavam – um escorpião queria atravessar o rio de Fanhões em pleno Inverno e com o caudal intenso, porém, como não sabia nadar, fazê-lo seria morte certa. Enquanto o perigoso animal andava por ali, impaciente e hesitante, apercebeu-se de uma rã, acabada de sair de um tufo de ervas, que se preparava para transpor aquele curso de água. Com muito boas maneiras, o escorpião aproximou-se dela e pediu-lhe que o transportasse sobre as costas, de modo a que pudesse chegar à outra margem, sem se afogar. Mas a rã, conhecedora do perigo que tal pedido representava, logo lhe respondeu: _ Não, porque quando já estivermos na água espetas-me o teu ferrão e matas-me! 
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De Elvimonte a 20.07.2023 às 01:27


Ao que parece, este seu post será, entre outras coisas, uma resposta a este meu comentário:
https://corta-fitas.blogs.sapo.pt/20-milhoes-e-menos-que-70-milhoes-7966181?thread=39609061#t39609061


Agradeço que se tenha dado ao trabalho de elaborar mais sobre o assunto e tentado dar uma resposta, que considero honesta, às minhas questões.


Apesar de ter ficado esclarecido relativamente a algumas das questões, constato que não sabe rigorosamente nada sobre o "mercado" da sua proposta - quem e estimativa de quantos serão os "clientes", qual a rentabilidade média anual por unidade de área e qual o valor que estão dispostos a pagar por unidade de área de terreno limpo.


Permita-me que o esclareça que, por amostragem entre pessoas minhas conhecidas proprietárias de terrenos florestais, a aderência à sua proposta é nula - todas foram da opinião que o subsídio proposto é ridículo e muitas das vezes não paga sequer o trabalho de submeter o pedido de comparticipação. E cabras em terrenos florestais foi algo que nunca viram, tal como eu, por mais quilómetros que tenhamos percorrido de carro, de moto e a pé.


Trata-se de uma amostra pequena que unicamente contempla proprietários que apenas fazem limpeza dos terrenos aquando de cortes ou repovoamentos. Admito que outros proprietários que façam habitualmente limpeza dos seus terrenos, tais como as empresas de celulose e outros, possam ter opinião diversa e defendam fervorosamente a sua proposta. A realidade é esta e outra coisa não seria de esperar de quem já faz a limpeza dos terrenos.


Não duvidando das boas intenções da sua proposta, penso que saberá que "de boas intenções está o Inferno cheio". Ademais, posso garantir-lhe que em Marte a sua proposta teria adesão e eficácia de 100% revelando-se um estrondoso sucesso sem sombra de espantalhos.


Um sucesso que pessoas que colaboravam num projecto de investigação de incêndios florestais e outras que traziam ideias complementares ao projecto não tiveram. Nomeadamente o veículo de pequenas dimensões, inspirado nas ceifeiras mecânicas e destinado ao corte e recolha de bio-massa arbustiva, de que nunca foi construído um protótipo. E também o explosivo seguro e barato destinado a criar uma onda de choque, tal como é feito nos incêndios de poços petrolíferos, capaz de extinguir a frente de chama do incêndio e do qual apenas resta a patente.


Nota final. Os combustíveis, nomeadamente a bio-massa, têm um valor intrínseco que não deve ser negligenciado; toda a "gestão de combustíveis finos" tem que ter em conta esse valor. Em tempos conheci uma empresa que produzia cerâmica de alto valor acrescentado (azulejos estilo século XVII  e peças similares) e briquettes de carvão vegetal, alimentando o forno com o gás pobre resultante da combustão incompleta. Quase toda a produção tinha como destino a exportação. 

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