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Então e o risco?

por henrique pereira dos santos, em 29.09.23

O título do post é uma das perguntas que me fazem sobre a minha defesa de que nos próximos dias é melhor deixar deixar arder (num grupo de pândegos que frequento, a administração recusou publicar a ligação para o post, julgo eu que seja por achar inadequada o que considera propaganda do fogo, uma boa demonstração de como ainda há muito caminho a fazer no combate ao obscurantismo na gestão do fogo).

Comecemos pelo princípio: todos os dias se fazem cirurgias, e nem todas correm bem, chegando a haver mortes completamente inesperadas em cirurgias que são pouco mais que rotina.

Significa isto que a medicina deve deixar de fazer cirurgias, ou que antes de qualquer cirurgia deve criar procedimentos de tal modo exaustivos, que na prática torna impossível, ou muito difícil, para não referir extraordinariamente cara, qualquer cirurgia?

Não, qualquer pessoa de bom senso responde que não.

Porque não existe risco?

Não, mais uma vez, não, apenas porque os benefícios esperados dos milhares de cirurgias que existem são incomparavelmente maiores que os que se conseguem obter perseguindo políticas de risco zero.

Não há nenhum cirurgião que não tenha consciência dos riscos, não há nenhum que não se prepare para os reduzir ao máximo, quer investindo na sua formação, quer concentrando-se no seu trabalho, quer adoptando procedimentos padrão que reduzem riscos com custos operacionais e financeiros baixos, como desinfectar as mãos, quer treinando procedimentos de equipa que permitam responder a situações inesperadas da forma mais eficiente possível.

Há alguns anos, a minha mulher resolveu fechar uma janela teimosa empurrando o vidro, em vez de empurrar a estrutura de madeira da janela. O resultado foi que a mão avançou para onde se pretendia, mas a estrutura da janela ficou parada e o vidro adaptou-se, partindo, o que deu origem a um corte profundo na palma da mão da minha mulher. Quando está nas urgências do hospital, já pronta para que lhe cosam a mão, ouve a conversa dos médicos atrás da cortina: "coses tu", diz uma voz mais velha, "mas nunca cosi a palma de uma mão", responde uma voz mais insegura, "pois, mas alguma vez tem de ser a primeira", e assim foi, correndo muito bem, felizmente.

Se a minha mulher fosse da linha dos que gritam "e o risco? e o risco?", ainda hoje estaria nas urgências com a ferida aberta e a perder sangue, recusando-se a correr o risco de ser a primeira palma de mão a ser cosida pela jovem cirurgiã, e a cirurgiã ainda hoje continuaria a responder ao médico mais velho: "mas nunca fiz".

Gestão de risco, com certeza: investir em conhecimento - não há dúvida de que, a manterem-se as previsões dos próximos dias, as condições são perfeitas para queimar matos a Norte do Tejo, e são boas (chamam-me a atenção para o facto de ser preferível esperar mais um bocado para queimar povoamentos, a secura dos combustíveis mortos ainda é excessivamente elevada, mais vale esperar por mais chuva e menos temperatura) para queimar em povoamentos a Norte do Tejo -, adoptar abordagens prudenciais em relação aos riscos de probabilidade média a elevada, criar mecanismos de gestão de contingências e avançar, com preparação mas sem medo.

Um dia correu mal?

Felizmente na natureza não há danos irreversíveis como a morte nas cirurgias, é possível repor a situação inicial, de maneira geral, pagar prejuízos económicos, se existirem bem documentados, e aprender para a vez seguinte.

É extraordinário que o Estado invente sempre mecanismos, ou pelo menos anúncios de mecanismos, para compensar prejuízos de grandes fogos e tenha tanta dificuldade em ter uma política clara e bem definida de assumir o custo dos raros prejuízos que possam decorrer se alguma coisa que corre mal num fogo de gestão.

Os fogos dos próximos dias, controlados ou não, seja qual for a sua origem, funcionam como uma espécie de vacina da gripe, que tem de ser usada todos os anos porque é uma vacina recorrente, funcionalmente igual aos fogos em condições favoráveis em relação aos fogos destrutivos de Verão.

A diferença fundamental é que o Estado investe recursos imensos na promoção da vacinação da gripe - sim, também tem riscos e contra-indicações - por reconhecer os custos sociais de não ter uma política de gestão da gripe, enquanto aceita que ataques iniciais musculados para extinguir qualquer coisa que arda agora, com custos inacreditáveis, sejam usados para contrariar os efeitos benéficos da vacina recorrente contra os fogos destrutivos.

Tudo porque há uma hiper-valorização do risco associado ao uso do fogo em condições favoráveis e uma brutal desvalorização dos riscos sociais da acumulação de combustíveis que está a ocorrer.

E também porque há demasiada gente com demasiada influência para o conhecimento que tem dos assuntos: recentemente, quando questionado na Assembleia da República sobre fogos controlados, o senhor presidente da liga dos bombeiros respondeu misturando fogos controlados com contra-fogos em situação de combate, numa demonstração de como ainda há muito a fazer no combate ao obscurantismo na gestão do fogo, para repetir um frase que usei lá em cima.


5 comentários

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De urinator a 29.09.2023 às 09:56

neste, como noutros governos de citadinos e em muitos outros temas
'não deve o sapateiro ir além da chinela' 
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De Anónimo a 29.09.2023 às 13:47

é o outro coser, o cozer é o da cozinha. 
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De G. Elias a 05.10.2023 às 23:16

Mas há aqui uma coisa que me faz confusão: considerando que a segunda vaga de incêndios mortíferos de 2017 aconteceu em Outubro, faz sentido deixar arder neste mês?
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De henrique pereira dos santos a 06.10.2023 às 08:30

As circunstâncias entre uma e outra situação são abissais.
Actualmente os combustíveis o solo têm humidade (a Norte do Tejo), a humidade atmosférica recupera à noite e o vento é geralmente fraco, depois de uma primeira quinzena de Sstembro muito chuvosa.
Em Outubro de 2017 estava-se no fim de uma época de grande secura, não chovia há meses e o vento foi fortíssimo (um dos problemas foi que a tempestade Ofélia passou um bocado mais ao largo do que se previa, portanto a previsão de chuva não se verificou, mas muita gente, depois de meses à espera, considerou que era uma boa altura para queimar o que havia a queimar, à espera dessa chuva que não veio).

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