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Bill Clinton, provavelmente o mais inteligente e encantador malandro do Mundo, um dos mais interessantes oradores do planeta, animal político through and through, não caiu no erro em que caiu a maior parte dos intervenientes da Convenção Nacional Democrata. Durante mais de meia hora traçou a biografia privada e pública da sua mulher, a candidata à presidência dos EUA. Bill só falou da mulher e da política. «In the Spring of 1971 I met a girl», começou ele, após o que fez um retrato de Hillary como «obreira de mudança» e valor «genuíno», de uma vida de empenho e dedicação ao serviço público, à defesa de deficientes, à promoção de programas escolares para crianças desfavorecidas, à defesa do ambiente, à defesa dos interesses do país. Fê-lo lendo notas (não texto) do ponto, fê-lo com graça e com sentido político, com insuperável wit, e mesmo pura e simples classe – como quando se referiu a si próprio como um «daqueles que têm mais ontens do que amanhãs».

 

E qual foi, então, o grande erro que Bill Clinton soube evitar? Pois o de perder mais tempo e esforço a atacar o adversário do que a promover a prata da casa. Bill falou da candidata sua mulher e ignorou em absoluto o outro, em mais uma demonstração (digo eu) do seu apurado faro político. O candidato a Primeiro Cavalheiro foi quem melhor serviu a sua ex-Primeira Dama que quer ser Presidente no lugar que ele já ocupou. Melhor mesmo que ela própria.

 

Ao contrário, para a maioria dos oradores pareceu que a principal questão era mais não eleger Trump do que eleger Hillary. As notas que tocaram para dizer isso traduzem-se bem para português, e os portugueses reconhecê-las-ão: Trump, disseram os oradores democratas, é rico e só pensa em si, não tem uma política para as pessoas, quer acabar com os apoios sociais, não tem cultura nem alma, é ignorante, quer matar os pobrezinhos, espezinhar os deficientes, enforcar os imigrantes e violar as mulheres, é insensível, insolidário, quer fazer a guerra mundial, é privado e é mau. Foram discursos atrás de discursos contra Trump, politicamente mal-avisados e intelectualmente indigentes, com um pico em Bloomberg, que de Trump disse que «reconheço um vigarista quando vejo um». Nem Obama, que tanto sabe de propaganda, escapou, embora Obama tenha uma desculpa egoísta. O seu discurso no terceiro dia da convenção teve uma metade de elogio de Hillary que, afinal, era um panegírico da sua própria governação, a parte que realmente lhe interessava; e uma segunda metade de ataques destemperados contra Trump, que decerto lhe encomendaram (e ele quer lá saber do efeito ou falta de efeito que têm, digo eu).

Houve, é certo, e sobretudo a anteceder o discurso final de Hillary, discursos e presenças emocionalmente poderosos, alguns mesmo arrebatadores, de apelo à união e de alerta contra os perigos de não votar democrata. Mas de políticas, de programas, de medidas concretas anunciadas nesta convenção, pouco, pouquíssimo, para além de proclamações de que os democratas é que são progressivos, caritativos e sociais, os democratas é que são patriotas, e compassivos, e bons, e defensores da pátria, e antes eles que o dilúvio. A convenção foi sobretudo Trump, e mais Trump, matar e esfolar Trump.

 

Política mesmo, política eficaz nos termos dos seus específicos propósitos, fê-la também Bernie Sanders, num discurso inteligente em que reservou o seu capital, deu algum fôlego de futuro ao seu movimento Citizens United, o Bloco de lá, e apaziguou os próprios adeptos que prometiam apupar Hillary e comprometer a convenção, mas afinal saíram dali animados com a ideia de que a revolução continua. Animados com isso e com a notícia dada por Sanders de que Hillary subscrevera o seu programa de educação primária, secundária e superior gratuita para todas as famílias com rendimentos anuais inferiores a 125 000 dólares, cerca de 10 000 dólares por mês. Sanders ganhou a implementação desse programa; Hillary ganhou a pacificação da convenção. Se Hillary for eleita, a reforma da educação talvez se chame «Hillarygrant», mesmo que devesse chamar-se «Sandersgrant». Mas é justo: também a reforma da saúde se chama Obamacare, quando afinal todo o programa foi concebido por Hillary e adoptado por Obama em troca do seu apoio e rendição.

Também houve, no segundo dia, o discurso de Michelle Obama, com o qual os «media dos afectos» ficaram muito emocionados. Dias depois, porém, não há rasto dele. Ou, por outras palavras: talvez daqui a 10 anos Melania Trump possa plagiá-lo.

 

Apresentada pela filha Chelsea num discursinho reverente e autómato, chegou por fim a vez de Hillary Clinton, na madrugada de 6ª feira. E a ideia com que se fica é a de que as tónicas da convenção foi Hillary quem as determinou, poucos ouvidos dando a Bill Clinton, a quem no entanto agradecera por continuar a ser o «explicador de serviço». Ao contrário do que o explicador fizera, Hillary aferiu cada uma das suas vaguíssimas propostas com a personalidade e as afirmações de Trump. Ela é que conhece os problemas dos trabalhadores, porque a família dela não tem o nome em nenhum edifício; ela vai pôr cobro às desigualdades, aos baixos salários, à falta de mobilidade social, porque ela une e Trump divide; ela vai melhorar a indústria, a saúde, a segurança social, a situação das mulheres e das várias comunidades porque sim, e, diz ela, porque não ouviram isso de Trump; ela vai ajudar a financiar as famílias endividadas – pois se o Trump é financiado porque não se há-de financiar as famílias?; ela é que vai investir em infra-estruturas, e quem paga são os ricos, os grupos empresariais e Wall Street; ela é que garante a segurança social, porque é uma líder e o Trump é «apenas um entertainer»; ela é que defende a ordem porque tem décadas de serviço público, e Trump «está no bolso do lobby das armas»; ela é que pode ser comandante-em-chefe porque é valente, e o Trump é orgulhoso e promove o medo.

Foi pouco. Foi muito pouco. Foi menos em conteúdo e emoção do que muitos dos seus apoiantes, e muitíssimo menos do que na mesma convenção fez o seu marido e ex-presidente. As coisas são como são.

 

Em resumo, a convenção nacional democrata foi uma convenção afinal pacificada; com uma organização de grande profissionalismo; juntando grandes personalidades (presidentes, vice-presidentes, mayors, governadores, senadores, militares, desportistas, representantes de todos os sectores da sociedade) em quantidade e de um peso que a candidatura Trump só pode invejar; teve adornos de celebridades como o cadáver de Paul Simon cantando Bridge penosamente, ou da fauna de Hollywood, da Broadway, do disco e da TV em bicos dos pés (e a palma de ouro da palermice vai para Sarah Silverman, apoiante de Sanders que, no entanto, ia estragando a vida à convenção e ao próprio Sanders, ao dizer que os apoiantes deste que continuavam a apupar estavam «a ser ridículos»).

Mas, tendo em vista o ponto central das intervenções e a prestação baça da candidata, fica a dúvida: quem ganha? O populismo de Trump, que em resposta a problemas e anseios concretos propõe medidas concretas e que diz que está tudo mal e com ele fica tudo bem? Ou as proclamações democratas de que está tudo bem e é perigoso mudar? Basta essa tónica de mata e esfola, de diabolização de Trump, acompanhada da proclamação das virtudes e feitos próprios para dar a vitória a Hillary (de quem 68% dos americanos desconfiam) ou não basta? Talvez. Mas apenas talvez.

 

Três notas:

Melhor. Houve um momento nesta convenção que escapou a toda a dúvida: o do discurso do senador Cory Brooker, de Nova Jérsia, na 2ªfeira. Quem possa, deve procurar esse momento, cerca da 1 da madrugada (em Lx) de 3ª feira na CNN e ouvir na íntegra: surpreender-se-á com o mais brilhante e poderoso orador da actualidade, um cultor da própria língua à altura do que foi para nós o Pe. António Vieira ou para os americanos Martin Luther King. O discurso com o refrão «We will rise» (poderia ser «I have a dream») foi simplesmente admirável.

 

Igual. Será talvez módica consolação verificar que a informação enviesada tem curso internacional. Após a divulgação de embaraçosos emails reveladores de que a direcção democrata boicotara deliberadamente Sanders para favorecer Clinton, a direcção inventou que os emails tinham sido divulgados pela Rússia de Putin a pedido de Donald Trump. Obsequiosa, a CNN perfilhou imediatamente a ideia fazendo dela cavalo de batalha. A Sic não inventaria melhor.

 

Pior. Segundo a proposta de Sanders subscrita por Hillary Clinton, esta garantirá, caso seja eleita, que os filhos de famílias com rendimentos inferiores a 125 000 dólares anuais, cerca de 10 000 dólares por mês, terão educação gratuita inclusive no ensino superior. À margem, recordemos que, segundo Centeno, é privilegiado em Portugal quem tenha rendimentos mensais superiores a 1300 euros.


1 comentário

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De Anónimo a 29.07.2016 às 13:11

Já estamos a assistir à retoma da excitação jornalística com "o primeiro presidente negro", agora com "a primeira mulher presidente". Antes era a Alemanha que ia mudar, depois a Inglaterra, e depois a Espanha, que posteriormente caíram no desinteresse. Já não interessava.

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