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Dizem que não está a correr nada bem

por henrique pereira dos santos, em 22.06.20

Desde o princípio da epidemia que a verdadeira discussão nunca foi entre valorizar ou desvalorizar a epidemia, muito menos enfiar toda a gente que desde o início tem dúvidas no caixote do lixo do "é só uma gripezinha" em que se tentava enfiar toda a gente com dúvidas sobre a estratégia de gestão da epidemia, evitando discutir argumentos.

O que está em casa é a discussão das melhores medidas para gerir uma epidemia.

A esmagadora maioria das pessoas e dos governos, com a Organização Mundial de Saúde à cabeça, entenderam que a melhor maneira de lidar com uma epidemia era evitar contágios a todo o custo e, face à incerteza, que se justificaria adoptar medidas que nunca foram testadas e sobre cuja eficácia existe muito pouca informação empírica de suporte, mesmo que os seus resultados negativos noutros domínios fossem bastante certos e arrasadores.

Dizer que quem tinha - e tem - dúvidas sobre esta abordagem se limita a desvalorizar uma epidemia é tão demagógico como dizer que quem defende esta abordagem desvaloriza totalmente o efeito económico e social negativo associado às medidas de contenção tomadas.

Provavelmente, tirando os extremos de uma posição e de outra, ninguém desvaloriza coisa nenhuma, a dificuldade não parece ser essa, a dificuldade parece ser a racionalização da discussão, necessária, sobre as estratégias possíveis de gestão dos efeitos da epidemia.

É aqui que, mais uma vez, aparecem os argumentos de que isto está a correr muito mal.

Confesso que não entendo o argumento.

É verdade que se olharmos para o número de casos, há sinais preocupantes.

casos mundo.jpg

Mas também é verdade que se olharmos para o número de mortes, os sinais são muito diferentes.

mortes mundo.jpg

O que se vê é uma melhoria muito relevante nas regiões temperadas do hemisfério Norte e uma estabilização no continente americano em que os ganhos da Améria temperada são anulados pelos aumentos na Améria tropical (se olharmos com mais atenção para a América tropical parece ser clara a estabilização que se verificou noutras regiões ao fim de algumas semanas de subida rápida, mas deixemos isso por agora, que é cedo para conclusões).

Estranhamente para mim, vejo pessoas a olhar para a situação na Europa e a afirmar a pés juntos que a sazonalidade da doença não existe, apesar do que se vê no gráfico seguinte que, na pior das hipóteses, dirá que a sazonalidade parece mitigada quando comparada com outras doenças pulmonares.

europa.jpg

Se olharmos para o conjunto dos países europeus, até vemos em alguns (Bulgária, Roménia, Portugal, por exemplo) alguns aumentos de casos, mas olhando para os gráficos à direita, esse aumento de casos não se traduz em aumentos de mortalidade (poupem-me ao argumento de que se vão verificar esses aumentos no futuro, em Portugal o aumento ligeiro mas contínuo de casos vem desde o princípio de Maio, já houve tempo para se reflectir em internamento e mortes, coisa que não se verifica nos números, como se vê no zoom que faço para Portugal).

paises europa.jpg

casos portugal.jpg

mortes portugal.jpg

Resumindo, se há hoje mais informação que nos permite dizer que o contágio pelo contacto próximo é mais importante que o contágio indirecto através de superfícies contaminadas, o normal seria irmos adaptando as medidas de gestão a esse conhecimento.

Tal como hoje sabemos que uma boa parte da mortalidade está associada a lares e à cohabitação, e que o confinamento generalizado não impediu a progressão da epidemia nesses meios.

Tal como sabemos que os riscos abaixo dos 60 anos são baixíssimos - existem, como existem muitos outros riscos, mas são manifestamente baixos nesta doença, não muito superiores a muitos dos outros riscos - e portanto as medidas também de se deveriam adaptar, sendo absurdo fechar creches porque há um surto num lar, ou proibir a Volta a Portugal em Viana do Castelo porque há um surto no Algarve ou em Lisboa, etc..

A questão foi muitíssimo bem colocada pelo responsável pela gestão da epidemia na Suécia há algum tempo: não se compreende como nos metemos todos neste confinamento sem termos uma estratégia de saída dele.

O que se passa em Portugal não é que o desconfinamento ou a gestão da epidemia estejam a correr mal, o que se passa em Portugal é que temos uma comissária política a fazer de Directora Geral de Saúde e uns decisores políticos completamente aterrorizados com a hipótese de lhes ser assacada qualquer responsabilidade sobre a mortalidade associada à Covid, mesmo que essa mortalidade esteja hoje completamente dentro da normalidade (e continuará a estar dentro da normalidade sem em vez de três a quatro pessoas, morrerem dez pessoas associadas à covid, por dia).

Como diz José Miguel Roque Martins no post anterior a este, aqui no Corta-Fitas, não se pode admitir que existe uma calamidade e simplesmente pretender que a calamidade não tem consequências, como se não vivêssemos no mundo real em que vivemos, convivendo com a doença e a morte todos os dias, mas sim no mundo de Walt Disney em que um rato como mais de noventa anos, não só anda em pé e fala, como continua na flor da vida, sem nunca ter estado seriamente doente.

O risco zero não existe e a gestão do risco pressupõe uma definição clara da ameaça, o que hoje, vários meses depois do aparecimento da epidemia, já pode ter uma caracterização bem mais rigorosa do que no início e não há nada que nos faça pensar que não podemos conviver com a covid de forma adulta: reconhecendo que existe, reconhecendo que não é grande ameaça para a maioria da população e reconhecendo que podemos melhorar na protecção dos mais frágeis.

A estratégia de proteger os mais frágeis pela supressão dos contágios na generalidade da sociedade, através de medidas radicais de confinamento, falhou, é tempo de abandonar essa fantasia (e já vamos tarde, muito tarde).


18 comentários

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De Anónimo a 22.06.2020 às 19:33

Um dos reparos ao texto é por exemplo onde refere "...que se justificaria adoptar medidas que nunca foram testadas e sobre cuja eficácia existe muito pouca informação empírica.". O confinamento foi testado com sucesso aquando a gripe espanhola de 1918. Nessa gripe as coisas pioraram no pós confinamento,
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De henrique pereira dos santos a 22.06.2020 às 20:45

Isso não é verdade.
O que existem são correlações estatísticas com base em dados muito pouco seguros de uma doença que para além de afectar os dois extremos da pirâmide etária, afectou adultos no seu apogeu físico.
E em 2018 nunca houve confinamentos como os actuais.

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