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Discursos simples não servem a realidades complexas

por henrique pereira dos santos, em 28.04.25

Fui finalmente ver, sem grande profundidade, mas com um enquadramento feito por uma das pessoas que colaboraram na exposição, uma coisa chamada "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades".

A exposição vai estar no Museu de Etnologia até Novembro deste ano, portanto é natural que lá volte.

O problema começa com o objectivo da exposição: "desconstruir os mitos criados pela ideologia colonial, descolonizar os imaginários portugueses e contribuir, de forma pedagógica e acessível, para uma renovação do conhecimento sobre a questão colonial portuguesa".

É muito comum, nesta área da discussão sobre o colonialismo (a que, erradamente, se mistura frequentemente a discussão sobre a escravidão, coisas que nem temporalmente se sobrepõem assim tanto), que os investigadores abandonem a posição clássica de quem se interroga para compreender o mundo (o manifesto domínio da academia), para adoptar a posição de quem pretende contribuir para mudar a sociedade (o manifesto domínio da política).

É pacífica a ideia de que compreender o mundo pressupõe uma ideologia (por uma daquelas coincidências improváveis, o ex-marido da coordenadora da exposição era meu colega e antropólogo, conheço-o bastante bem, e lembro-me bem de ele citar um dos seus professores, penso que na Sorbonne, que insistia que não valia a pena ir para o campo sem uma boa teoria), e que a forma como tentamos compreender o mundo não é imune à ideologia que carregamos, mas reconhecer isto não é o mesmo que legitimar a interpretação ideológica do mundo que é característica da actual investigação sobre o colonialismo.

O que mais me impressiona é a simplificação da realidade a partir da chave interpretativa com que se parte, em vez de usar a chave interpretativa como reconhecimento de uma complexidade difícil de apreender sem ideias que nos permitam estabelecer padrões que possam ser discutidos racionalmente.

Um dos exemplos é a forma como tem sido usado o luso-tropicalismo na discussão académica sobre o colonialismo e os seus legados.

A mera existência do choque entre Silva Porto e Livingstone, muito antes de qualquer ideia de luso-tropicalismo (encontram-se em mil oitocentos e troca o passo, Gilberto Freyre nasce em 1900), incluindo a crítica do império britânico à ausência de ocupação real das áreas que os portugueses reclamavam como suas em África e a resposta portuguesa baseada nas suas alianças com os poderes locais, deveria ser suficiente para que a academia se deixasse de simplificações sobre uma realidade demasiado complexa para se meter numa quadro binário de interpretação colonial em que praticamente só existem colonizadores e colonizados, como se do lado dos colonizadores e do lado dos colonizados a realidade não fosse imensamente diversa e contraditória, ao ponto de invalidar qualquer chave interpretativa binária.

Se dúvidas houvesse, comparar a colonização do Congo Belga com a lenta percolação de comerciantes portugueses para o interior de Angola, com rara ou nenhuma protecção do Estado português, seria suficiente para que o discurso académico sobre a colonização europeia de África fosse um bocadinho mais complexo, para descrever realidades muito mais diversas que o esquema dominante baseado na rigidez da homogeneidade de colonizadores e colonizados.

O mesmo se pode dizer do lado dos colonizados, que estavam longe, muito longe, de ser uma mole imensa de explorados que mais tarde os movimentos anti-coloniais representaram legitimamente, pelo contrário, eram um enorme mosaico de sociedades e culturas em permanente relação, quer pacífica, quer violentamente confrontacional, que uma boa parte da investigação sobre o colonialismo trata como uma mera fonte de fornecimento de pessoas escravizadas pela violência branca.

A exposição vale a pena (não discuto a pertinência da relação entre as peças expostas, algumas muitíssimo bonitas, e os textos e ideias expressas, porque não sei o suficiente do assunto), o museu vale a pena, mas a historiografia de base (se é que se pode chamar historiografia a alguma da actividade associada à exposição, a julgar pelos resultados) é melancolicamente esquemática e encharcada pelo ar do tempo woke em que estamos.


9 comentários

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De cela.e.sela a 28.04.2025 às 11:03

«As costas da Mina e a da Guiné foram desde o século XV batidas por navegadores portugueses, que ali realizavam o comércio de ouro, prata e escravos africanos. Para proteger o dito comércio, foi ali implantada a fortaleza de São João Baptista de Ajudá, no final do século XVII, por ordem do rei D. Pedro II, ficando sob a alçada do governador de São Tomé e Príncipe. ...
Em 1961, tropas da República do Daomé (futuro Benim) invadiram Ouidah, e intimaram os dois ocupantes portugueses do forte a abandoná-lo. Sem condições para oferecer resistência, o governo de Oliveira Salazar ordenou que se incendiasse a fortaleza antes de a abandonar, o que foi cumprido na data-limite, sendo ocupada em 1 de Agosto de 1961. ...
A anexação só foi reconhecida por Portugal em 1985, tendo os trabalhos de recuperação e restauro sido desenvolvidos em 1987, com orientação e recursos da Fundação Calouste Gulbenkian. O forte é agora um Museu de História da Costa dos Escravos, de onde tantos cativos partiram para a América e para a Europa.»
compravam-se escravos a quem os vendia, mas não interesse em divulgar por parte de quem faz história a partir do que pretende divulgar.
para eles recomendo estas palavras:
«Quando o juiz perguntou a Rackham quais seriam suas últimas palavras, ele disse "Quem você pensa que é? Por acaso você é Deus para ter o direito de decidir o meu destino e de meus homens? Pegue suas palavras pomposas e as enfie no lugar de seu corpo em que o sol jamais bate. Encontro você em outra vida. Adeus."
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De Anónimo a 28.04.2025 às 11:26

Muito bem!
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De António Luiz Pacheco a 28.04.2025 às 14:51

Sobre o que diz o Henrique, com quem concordo plenamente, acrescento e aconselho a todos os interessados e aos muitos desinformados, a leitura de um excelente livro que explica de modo isento, muita coisa: "Nos caminhos de África - serventia e posse" de Maria Emília Madeira Santos. 
O papel dos "sertanejos" sendo fundamental. É um precioso livro de consulta.  
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De Anónimo a 28.04.2025 às 19:29

"desconstruir os mitos criados pela ideologia colonial, descolonizar os imaginários portugueses e contribuir, de forma pedagógica e acessível, para uma renovação do conhecimento sobre a questão colonial portuguesa".


Wokismo na sua forma mais simplista. 
Paga o contribuinte  a homilia woke
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De Anónimo a 28.04.2025 às 21:43

O Chega a gradece a máxima difusão do "evento#" e, sobretudo martelar "ad infinitum" a fraseologia que o acompanha e "enquadra"...
Juromenha
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De Pedro Oliveira a 28.04.2025 às 22:31

Ex-marido?
Ou companheiro à data do falecimento?
Provavelmente é confusão minha e não estamos a falar da mesma pessoa 
https://www.publico.pt/2010/10/26/culturaipsilon/noticia/alfredo-margarido-um-homem-dificil-268080
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De henrique pereira dos santos a 29.04.2025 às 07:14

É mesmo ex-marido que quero dizer
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De Anónimo a 30.04.2025 às 04:15

"(...) O velho Gimba sabia muito bem que o tráfico de escravos fora um negócio em que havia poucos inocentes. Além de esclarecido, era um homem alto e elegante, com as suas balalaicas engomadas e o seu cofió enfiado no cocuruto da cabeça. As cataratas denunciavam-lhe a idade física, mas não o espírito. Não precisava de falar muito para exibir a sua inteligência suave.

Ao longo dos anos seguintes, tive a oportunidade de confirmar e alargar a lição do velho Gimba. Em linguagem académica, diria que coligi vários estudos de caso, em vários países. Quando foram construídos os primeiros entrepostos esclavagistas no litoral do então Reino de Dahomey (hoje Benim), eram os Fon, poderosa tribo local, e não os portugueses, quem capturava os escravos de outras etnias, que os negreiros enviavam depois, em grandes quantidades, para o Brasil e para as Caraíbas. De resto, o maior negreiro de que há memória na Costa do Ouro, não era sequer natural de Portugal, mas sim do Brasil. Francisco Félix de Souza (mais conhecido por Xaxá) nasceu na Bahia, filho de português e de índia, e na idade adulta ocupou-se do forte português de São João Baptista de Ajudá."


(blog Nenhures - "Enquanto Vasco da Gama dormia" )
Daqui:
https://estan.blogs.sapo.pt/enquanto-vasco-da-gama-dormia-181802

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De Anónimo a 30.04.2025 às 04:34

(cont.)

"(...) No Gana, surpreendeu-me poder encontrar fortes construídos pelos suecos e, mais tarde, pelos dinamarqueses ao longo de toda a Costa do Ouro, em apoio ao comércio de escravos em grande escala, mais ainda do que a imponente feitoria de São Jorge da Mina. Afinal, aqueles que tantas vezes apontam o pecado original do império português, como inibidor de uma discussão objetiva e imparcial das modernas políticas de desenvolvimento desses países, também tiverem a sua quota-parte de responsabilidade no tráfico transatlântico.

No Togo, visitei Agbofrafo, onde John Henry Wood, um traficante de escravos escocês, construiu uma casa em estilo afro-brasileiro, suficientemente distante da orla marítima para que não pudesse ser vista pelas autoridades, numa altura em que o tráfico de escravos era oficialmente proibido (e policiado) pela Inglaterra. Wood escondia centenas de escravos em condições deploráveis, num vão com menos de um metro de altura, localizado sob o estrado de madeira da sala principal, ao qual ainda hoje se pode aceder através de um alçapão.

Na Gâmbia, explorei a minúscula ilha de Santo André (...) A ilha (hoje St James Island) tornou-se depois num pequeno entreposto dos traficantes de escravos britânicos, que para aqui os traziam, com o objetivo de os enfraquecer com um jejum forçado de duas semanas, antes de serem levados para Gorée, no Senegal, e daí para as Américas. Quanto mais fracos, menos capazes seriam de se rebelar...

Em Gorée, reencontrei uma irmã gémea da Ilha de Moçambique. Praticamente do mesmo tamanho, igualmente dividida entre uma cidade de pedra e uma cidade de adobe. Também ela património da humanidade, elevada a must see do turismo cultural africano, Gorée é basicamente uma ilha-postal com uma interessante arquitetura colonial (...) Tristemente, foram os próprios senegaleses (com o presidente Senghor à cabeça) que decidiram promover a imagem de Gorée como lugar central na história do tráfico transatlântico, com o objetivo de a vender como atração turística (...)"

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