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Desperdício alimentar

por henrique pereira dos santos, em 23.11.22

Por pura coincidência, em poucos dias, dois amigos diferentes falaram-me do desperdício alimentar como um dos graves problemas ambientais que temos de gerir, em especial por causa das emissões de gases que lhe está associada.

Eu acho que é um problema social relevante, ambiental mas não só, e tenho escrito aqui e ali sobre o assunto.

Só que é um problema muito difícil de ir resolvendo.

Por um lado depende essencialmente das opções dentro de cada família, já que a maior parte do desperdício alimentar ocorre em casa, por outro é um sector produtivo com muitos produtos de vida curta e conservação difícil e, por fim, há componentes difíceis de aproveitar, como os caroços, cascas, espinhas, ossos e por aí adiante. Ou melhor, nos países desenvolvidos, isto é, com sistemas eficientes de produção, armazenamento, transporte e comercialização, a maior parte do desperdício é na casa dos consumidores, nos países menos desenvolvidos a coisa não é bem assim e uma boa parte, provavelmente a maior parte, do desperdício ocorre entre a produção e a comercialização.

Lembrei-me deste assunto e destes meus amigos hoje de manhã, quando estava numa conferência em que se ouvia muito dizer que a ciência isto, a ciência aquilo, como se a ciência fosse uma coisa monolítica e oracular.

Como um destes amigos até me mandou três artigos científicos sobre o assunto, ou melhor, dois artigos científicos e o capítulo do relatório do IPCC sobre segurança alimentar, acho que consigo demonstrar que por uma coisa ser escrita por cientistas, estar num artigo científico revisto por pares e publicado numa revista científica, não quer dizer que seja ciência.

"The results obtained show quantitatively that reductions in food losses in developed regions decrease the number of undernourished people in developing regions by up to 63 million, leading to decreases in the harvested area, water utilization, and greenhouse gas emissions associated with food production".

Por que razão digo eu que isto não é ciência, se é escrito por cientistas, num artigo científico, revisto por pares e publicado numa revista científica?

Porque os problemas da distribuição alimentar são problemas de sociedade, isto é, sociais, políticos e económicos, e dizer que o que não se desperdiça na Suécia alimenta alguém na Somália é simplesmente absurdo.

Dito de outra maneira, se compro duas alfaces, deixando apodrecer uma no frigorífico, e depois altero o meu comportamento evitando o desperdício da segunda alface, isso não significa que a alface poupada passe a estar disponível na Eritreia.

Para que isso acontecesse, seria preciso que o sistema de produção de alimentos incorporasse a minha poupança, reconfigurasse a produção, transporte, armazenamento e comercialização para reduzir a entrega de alimentos na Suécia ou em Portugal, para aumentar a entrega na Somália e Eritreia, a preços comportáveis para os somalis e eritreus, partindo do pressuposto, não demonstrado, que no processo se tinha passado a produzir, armazenar, transportar e comercializar alimentos em que os consumidores somalis e eritreus estavam interessados.

Há muitas razões, e boas razões, para não desperdiçar alimentos - acho até que é uma das boas razões para que as escolas tenham uma disciplina curricular de cozinha - mas tenho as maiores dúvidas de que a maneira mais eficiente de o fazer não seja deixar de subsidiar toda e qualquer produção de alimentos, deixar os preços subir e estar atento ao apoio social necessário aos que ficassem para trás.

Pretender que é aumentando a consciência da urgência climática que alguém vai deixar de se esquecer de umas peras até que estejam imprestáveis, e que na verdade custaram muito pouco a quem as comprou, é esperar da humanidade aquilo que ela não pode dar.


10 comentários

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De entulho a 23.11.2022 às 22:00

quando vivia na aldeia até aos 11 anos e quando nela passava férias até ao abandono total do campo nos anos 70 não havia desperdícios de alimentos porque o que não consumiam os seres humanos eram aproveitados pelos animais, que inclusive disputavam as fezes para aproveitamento proteico.
o problema actual dos desperdícios é puramente citadino: os alimentos são colhidos verdes, mal transportados, mal expostos, mal frigorificados mexidos e remexidos. chegam às nossas casas em condições tais que apodrecem verdes ou vão directamente para o lixo. originam intoxicações alimentares.
no interior só como peixe peixe congelado ou vindo directamente da água


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De Anónimo a 23.11.2022 às 22:54

Que é que se pode esperar do inenarrável IPCC, que tanto "bom senso" tem distribuído através de gente que garantiu um emprego até à reforma?
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De Elvimonte a 24.11.2022 às 00:44

O que o post reflecte é a "sociedade da abundância", uma relação entre o que é produzido e o que é consumido que nada tem a ver com a relação primária entre produção e consumo. 


Não fora a existência de câmaras frigoríficas estáticas e móveis, cuja existência remonta aos ciclos frigoríficos de absorção (os frigoríficos "primitivos" queimavam petróleo, não eram alimentados pela energia eléctrica que popularizou os ciclos frigoríficos de compressão - e não estou à espera que a generalidade das pessoas tenha disto conhecimento, antes pelo contrário), nada do que constitui hoje a "sociedade da abundância" seria possível, nomeadamente o desperdício alimentar.


Há que agradecer ao petróleo, ao petróleo dos candeeiros a petróleo, de que ainda disponho de alguns exemplares e à luz dos quais alguns dos meus antepassados estudaram, combustível derivado do petróleo bruto, modernamente designado por combustível fóssil, mais tarde substituído pela energia eléctrica proveniente da combustão de, outra vez, combustíveis fósseis, a actual "sociedade da abundância" onde ainda vivemos. 


Sem o petróleo bruto, origem do petróleo dos candeeiros a petróleo e dos ciclos frigoríficos de absorção, de que ainda hoje a generalidade da indústria da congelação faz uso nos processos frigoríficos que usam amoníaco como fluido de refrigeração (os ultra-congelados são disso exemplo), a disrupção entre produção e consumo nunca teria acontecido.


É essa disrupção entre produção e consumo, que está na base da actual "sociedade da abundância", isto nos países ocidentais e maioritariamente no hemisfério norte, que origina o desperdício alimentar.


Fazendo-me porta-voz, que não sou, de argumentos vários contra os combustíveis fósseis, neste aspecto não posso deixar de lhes dar razão: eles são a causa remota do desperdício alimentar. Sem combustíveis fósseis ainda continuaríamos no século XVIII, onde o desperdício alimentar não existia porque boa parte das pessoas passavam fome e, cereja no topo do bolo, a esperança média de vida situava-se nos 45 anos.


Mas quem é que não gosta de passar fome e de morrer aos 45 anos? Quem não gostar é negacionista, pago pela indústria petrolífera, trumpista, eventualmente covidiota e mais recentemente putinista. Abaixo, abaixo, abaixo!


"Morra o Dantas! Morra, pim!" (Manifesto Anti-Dantas, Almada Negreiros, citado de memória porque não me apetece ir buscar o meu exemplar à estante).


 
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De Anónimo a 24.11.2022 às 10:39

Noutros tempos, nas casas antigas havia deliciosas receitas culinárias para aproveitamento de "sobras"; e uma vez que não havia frigoríficos, tudo tinha de ser confeccionado imediatamente e logo consumido num curto espaço de tempo, já que não havia forma de os conservar. (Assim nasceram os empadões, as açordas, as migas, a roupa-velha, os conhecidos e apreciados pratos de sobras de bacalhau...)  
Como não havia arcas de congelação, também ninguém armazenava alimentos em excesso, só se comprava à medida que se iam acabando e precisando. Os produtos de mercearia eram vendidos a granel e adquiria-se apenas a quantidade pretendida. Recorde-se que até nas grandes cidades a maioria das casas em pleno centro, tinham nas traseiras um quintal (o tamanho era variável), precisamente pela necessidade de fazerem a sua "criação" (de galinhas, patos, ovos, coelhos, etc.) para consumo próprio.  Além disso havia a "regra" de que a boa "dona de casa" devia ser também uma boa "gestora" do orçamento, i.e., ter  noções de economia doméstica e supervisionar tudo, porque, em geral, as famílias eram numerosas e tudo tinha de ser aproveitado, até a roupa era "reciclada",  havia horror ao desperdício, ao deitar fora. Se sobrava, repartia-se com quem necessitava. Mas isto tudo era no tempo em que os animais falavam   :-)   
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De lucklucky a 24.11.2022 às 03:44

O mundo está cheio de cientismo mas muito pouca ciência.
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De Anonimo a 24.11.2022 às 07:20

É a "ciência " social em acção. Se eu comer meio frango em vez de um frango hoje,  um etíope almoça meio frango. Se comer o frango inteiro, ele passa fome
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De Anónimo a 24.11.2022 às 10:08


Vendo cascas de batata normal e cascas de batata doce em bom estado de conservação.
Tenho também caroços de maçã, cascas de laranja e ossos de frango.


Envie PM caso esteja interessado.
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De Francisco Almeida a 24.11.2022 às 10:40

E que tal alguma boa educação.
Em minha casa, para aí há 70 anos. a cada refeição era obrigatória uma peça de fruta e apenas uma. A gestão da aquisição de fruta sem gerar desperdícios não era difícil.
Se alguém tocava no pão, tinha de o colocar no seu lugar e consumi-lo até ao fim da refeição. Se sobrava muito pão era certo e sabido que no dia seguinte um dos pratos era açorda. E por aí fora, desde a roupa que passava de uns para outros, irmãos mais velhos para mais novos, pais e tios para filhos e sobrinhos, com os prestáveis serviços de uma costureira semanal que fazia os necessários arranjos. Desde o papel higiénico de que lembro o tio Manuel a vociferar que o maior dos rabos limpa-se com duas folhas de papel. Não era sovinice nem falta de instrução - o pai e o tio Manuel eram ambos engenheiros agrónomos.- nem sequer falta de dinheiro. Era mesmo educação.
Confesso que pouco consegui transmitir aos meus filhos e suspeito que esse mal terá sido geral. Muitos que foram educados, viram-se sem tempo para serem pais e domésticos e os que ascenderam socialmente, simplesmente não foram ensinados. Tento lutar contra naturais tendência elitistas mas, falando sinceramente, o desperdício e o esbanjamento são inatos ao novo-riquismo.
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De Anónimo a 24.11.2022 às 13:26

Era exactamente assim, como descreve. E as crianças usavam bibes para pouparem a roupa que traziam por baixo e nos colégios e liceus usavam-se as batas pela mesma razão e para que não se notassem as diferenças sociais. A roupa de vestir tinha bainhas grandes para se deitarem abaixo à medida que os miúdos iam crescendo. Recordo também que em todas as casas era tão indispensável (e necessária) uma máquina de costura, como é hoje um computador! Não se falava de dinheiro, nem do que se tinha ou não tinha, que era assunto tabu, sobretudo ao pé da criançada. Por isso os petizes raramente traziam dinheiro consigo e a semanada ou mesada era um conceito que nem existia! E contudo, ensinava-se-lhes que nunca deviam desperdiçar nem esbanjar _ como o Sr.diz.
Os meninos usavam calções e era um rito quase de "passagem" começarem a usar calças compridas! 
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De Anónimo a 25.11.2022 às 09:48

Havia uma cultura diferente em relação aos gastos, ao desperdício, tudo era adquirido com parcimónia, sem esbanjamentos desnecessários. E essa noção estava generalizada, diria, "normalizada". Podia ilustrá-lo com vários exemplos, mas vou dar apenas este de que muita gente se deve lembrar: as camisas de homem já traziam da fábrica vários colarinhos suplentes (dentro da embalagem) para substituirem os que iam ficando puídos do uso e das lavagens. Olhando agora à distância, esta atitude é extraordinária, porque comprova que a noção de comedimento, de sobriedade, de não-desgoverno era quase "universal" e impunha-se quase como uma Norma, em detrimento do lucro excessivo, em todos os sectores da sociedade, inclusive no das actividades económicas.

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