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O mais forte, e mais demagógico, argumento que é usado para reforçar impostos sobre heranças é o de que se trata de uma medida que pretende diminuir a mais injusta das desigualdades, a desigualdade de nascimento.
Esquerdistas empedernidos citam a posição de Adam Smith favorável ao imposto sobre heranças, como se as desigualdades de nascimento (e a esperança de vida) do tempo de Adam Smith fossem as mesmas de hoje e ainda vivêssemos sob a influência do Antigo Regime, em que a posse da terra determinava, em larga medida, o conjunto de privilégios de um grupo social, a começar pelo privilégio da posse e uso de armas.
Uma carreira profissional e, nas nossas circunstâncias, o rendimento - ao contrário do tempo de Adam Smith, o peso dos terratenentes para quem ter uma actividade profissional remunerada era indecoroso, é hoje residual - de uma pessoa pode, simplificando grosseiramente e desvalorizando indevidamente a sorte, dizer-se que assenta em três coisas: capacidade, conhecimento e contactos.
A capacidade decorre grandemente da lotaria genética, embora não se devam desvalorizar os efeitos da experiência de vida e da educação no seu desenvolvimento (Mozart era filho de músicos, Bach era de uma família de músicos, Picasso era filho de um professor de pintura, etc.).
O conhecimento adquire-se em grande parte em sistemas de ensino organizados.
Os contactos decorrem do meio social em que se vive, sendo relativamente difícil romper esse círculo de relações (diga-se que esta é a principal razão que me fez mudar de opinião sobre o serviço militar obrigatório, passando eu a ser a favor dessa opção exactamente porque ela obriga a que gente vinda de todo o lado seja obrigada a conviver no mesmo sítio e circunstâncias durante tempo suficiente para conseguir ver o mundo para lá da sua bolha social).
Em que medida taxar heranças influencia cada uma destas dimensões que, inegavelmente, estão presentes na desigualdade de nascimento e favorecem a reprodução social, com o resultado que conhecemos em Portugal: os filhos de pobres têm uma probabilidade muito maior de serem pobres que os filhos de ricos que, por sua vez, têm uma muito maior probabilidade de serem ricos?
O argumento é o de que diminuindo a riqueza dos ricos e aumentando a igualdade, como estas dimensões são influenciadas pela riqueza de cada família, estaremos a diminuir a desigualdade de nascimento.
O argumento não tem ponta por onde se lhe pegue porque as heranças não se recebem no momento do nascimento, as heranças recebem-se (de maneira geral), no decurso da vida, pela morte de pessoas mais velhas. Uma pessoa que é taxada aos vinte anos por receber uma herança, continua a ser uma pessoa que, durante vinte anos, teve as vantagens que a riqueza da família confere, seja no trabalho sobre as capacidades de cada um, seja no ensino que recebeu e seja na rede social que lhe coube em sorte.
Ou seja, recebeu uma herança menor, ficou menos rico aos vinte anos, mas numa altura em que já tinha recebido o principal prémio da lotaria do nascimento, tendo tido muito, mas muito mais oportunidades que o tipo do lado que não recebeu herança nenhuma e, por isso, não foi taxado, mas também não conseguiu desenvolver as suas capacidades, ter o ensino que lhe convinha e apoiar-se numa rede social que lhe desse acesso a melhores oportunidades.
O facto de se transferir parte da riqueza da família para o Estado não dá nenhuma garantia de que se altera alguma coisa de essencial na reprodução social, quer porque a riqueza de cada pode contribuir para o reforço dos verdadeiros mecanismos de redistribuição de riqueza (a remuneração do trabalho e capital), quer porque se o Estado for especialista em gerar perda de valor, como também acontece, globalmente a capacidade de redistribuição de rendimento diminui, não aumenta.
Do que precisamos não é de perseguir a quimera de eliminar desigualdade no nascimento, que sempre existirá, do que precisamos é mesmo de aumentar a capacidade dos mais pobres e dos deserdados da vida poderem desenvolver as suas capacidades, poderem ter oportunidades iguais às dos ricos no ensino e acesso ao conhecimento e oportunidades para romper os círculos sociais em que nasceram, acedendo aos círculos sociais que lhes permitam o acesso a melhores oportunidades.
Contratos de associação, para que os pobres frequentem as escolas dos ricos, serviço militar obrigatório, para que os ricos conheçam os circulos sociais dos pobres, mecanismos de mistura social real (papel que os partidos políticos podem desempenhar, é certo, embora a longa permanência no poder tenda a enfraquecer essa sua função, já agora), etc., etc., etc., são imensamente mais eficientes para olear o elevador social que a criação de impostos sobre heranças e doações.
Note-se que não sei o suficiente de impostos para saber se a forma mais eficiente e justa de financiar o Estado é com base nesse tipo de impostos (a mim parece-me mais sensato taxar o consumo, isentar de taxação a remuneração do capital e do trabalho e tenho sentimentos divididos quanto à taxação da propriedade e sua transmissão), o que sei é que se o que se pretende é diminuir os efeitos da desigualdade de nascimento, taxar heranças e doações é uma maneira ineficaz, assente em argumentos morais falsos, cuja defesa é especialmente estranha num país que tem um problema de escassez de capital muito acentuada.
Isto é uma injustiça revoltante. Isto é um drama social silencioso, porque os principais prejudicados não têm voz no debate público. E, claro, isto é também a morte do slogan político “da defesa da escola pública” — é que foram os seus alegados defensores que a sacrificaram no altar das suas conveniências."-Alexandre Homem Cristo
(Um sobre o qual se deviam debruçar as Peraltas, porque este é o tema que devia estar no centro das suas preocupações)
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