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Depois ide cantar o "Imagine" de Lennon

por João Távora, em 15.04.22

A Rússia está a fazer uma guerra porque quer honrar a história da mesma forma que a URSS fez guerras para honrar a revolução, que, por sua vez, era a chave da história. Os soviéticos julgavam que tinham em sua posse a alquimia infalível da história humana, o marxismo, e por isso julgavam-se os Reis Midas da morte: em teoria, quando matavam, eles estavam na verdade a criar vida. Claro que, na prática, o comunismo foi a maior carta branca da canalhice humana. A ideologia que prometia a utopia humana acabou por atrair e legitimar sociopatas atrás de sociopatas. Agora, a Rússia nacionalista repete a receita soviética: trocou a revolução que mata em nome de um futuro alegadamente perfeito pelo orgulho nacional que mata em nome de um passado alegadamente perfeito. E a Rússia não está sozinha neste endeusamento do passado, quer da sua glória quer das suas feridas. Na Sérvia ou na Hungria, por exemplo, a história endeusada está à espera de nova explosão. Não se compreende o fenómeno Orbán sem olharmos para o trauma húngaro de 1920, ano em que a Hungria perdeu grande parte do seu velho território para checoslovacos, romenos, jugoslavos e até austríacos. Há aqui um padrão: incapacidade de se chegar ao perdão, à catarse, àquele momento em que se diz “há que seguir em frente”. Passa-se o mesmo na China. Os chineses não esquecem o seu trauma histórico, as Guerras do Ópio e demais intromissões ocidentais em meados do século XIX. Já passaram dois séculos, mas a cultura nacionalista chinesa mantém essa dor viva como se tivesse ocorrido no ano passado. É este o truque pestífero do nacionalismo: mantém as feridas históricas abertas, cheias de pus, recusa a sutura. E sabem quem repete a estratégia? O politicamente correto, que é uma confederação de micronacionalismos.

A quem é que interessa a perpetua­ção da ferida da escravatura dois séculos depois de termos abolido essa mesma escravatura? A quem é que interessa a perpetuação das feridas do colonialismo quando já temos quase 100 anos sem colonialismo europeu? O passado não pode ser um presente perpétuo. Na semana passada escrevi aqui que a nossa sociedade é incapaz de lidar com a fragilidade e que, por isso, não sabe rir. Através do politicamente correto, este carácter sisudo alarga-se ao passado e às tais feridas históricas. Recusa-se a cura, a catarse, o perdão, o seguir em frente.

Henrique Raposo no Expresso


8 comentários

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De Zé Onofre a 15.04.2022 às 15:19

E no meio disto tudo onde encaixa o Imperialismo Anglo-americano.
Porque fazem eles guerras?
Zé Onofre
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De Anónimo 78 a 16.04.2022 às 11:07

A necessidade de uma catarse para libertar as consciências nacionais, para marcar uma ruptura entre a geração qua conviveu com o crime e as seguintes, foi muito bem conseguida na Alemanha pós-hitleriana, em Portugal pós-inquisição ou nos Estados Unidos pós-escravatura. Nunca ocorreu na Rússia pós-soviética nem na China pós-Mao Zedong.
Talvez Henrique Raposo se tenha inspirado no excelente artigo de Gabriel Mithá Ribeiro sobre esse mesmo assunto.


Discordo do artigo em dois pontos. 
A China tem há séculos a autodesignação de Império do Meio, aquele que se situa entre o Céu e a Terra e está destinado a governar a barbárie desta última. É uma filosofia imperialista que tem sido transversal a dinastias e regimes. A brutal anexação do Tibete explica-se por esta filosofia e não tem relação possível com guerras do ópio.
(raciocínio do mesmo tipo se poderia aplicar à Rússia mas seria demasiado longo para este espaço)
A Hungria tem um passado histórico anterior ao império Austro-Húngaro. De facto foi uma única batalha de cavalaria que decidiu a supremacia do Sacro-Império Romano-Germânico e a relativa subalternização da Hungria. Parece-me (muito) simplista explicar a Hungria por 1920.


Com muitas e imensas contribuições posteriores, entendo que a base das democracias liberais é a teoria da separação de poderes de Montesquieu. Por isso Orbán inquieta e merece crítica quando restringe a independência judicial. Dito isso, não há teoria geralmente aceite que enquadre os poderes, fácticos ou difusos, na democracia. E a comunicação social não devia ser um quarto poder que já é, com a agravante, agora potenciada pela revolução digital, que quase nunca é um poder independente. Assim, quando Orbán restringe o poder mediático impondo limitações a conteúdos multi-género que proíbe nas escolas, só pode ter o meu aplauso. Orbán apenas é diabolizado porque afrontou os já poderosos "lobbies" LGBT+++.


Em análise desapaixonada, as nomeações do PS para a Justiça, e para orgãos fiscalizadores como o Tribunal de Contas, para tudo o que regula a economia; a influência descarada sobre enorme parte da comunicação social; o pouco falado facto da AR sistematicamente conceder autorizações legislativas ao governo, que faz Portugal ser muito mais governado por Decretos do que por Leis; o raramente abordado facto da incompetência geral dos governos, levar estes a subcontratar a feitura dos decretos a sociedades de advogados (os tais poderes difusos); tudo constitui uma muito maior ameaça à democracia liberal. Mas, claro, não toca nem em LGBTs nem em "wokes" nem em adeptos do cancelamento; de facto até se promove um secretário de Estado declaradamente envolvido em conteúdos desse tipo a ministro da Educação.
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De Anónimo a 18.04.2022 às 11:05

Subscrevo.
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De Jose Joaquim Miranda Almeida a 21.04.2022 às 19:13

assino por baixo
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De passante a 16.04.2022 às 15:00

Sim, mas a catarse implica a sobrevivência.


Os romanos, por exemplo, tinham uma problema cartaginês. Ao fim de três guerras, em que chegaram a estar com a corda na garganta, arrasaram Cartago e semearam o chão com sal.


"Se a violência não resolve o teu problema, não estás a usar em quantidade suficiente", como diz a piada.
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De Anónimo a 16.04.2022 às 22:41

Pensar que a mãe Rússia só acordou para a guerra quando a mostarda do comunismo lhe chegou ao nariz é conhecer muito pouco de História.
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De anónimo a 17.04.2022 às 18:42


Sim, a circunstâcia, o tempo tem o seu tempo.

Em Portugal 1/4 do eleitorado -contra o outro1/4 do eleitorado e com uma significativa abstenção de 1/2, a outra metade do eleitorado. Tudo graças a uma Lei Eleitoral óbviamente discutível, é regido (como bem se escreve aqui a cima) por um sistema que não alberga a básica, elementar, indispensável separação de poderes.
Na verdade o partido no poder além de se apresentar e agir como uma mistura de Executivo, Legislativo e Judicial, estende o seu poderoso braço à Economia, à Finança e à extremamente dependente comunicação social.



Se ainda existir um qualquer Portugal de aqui a duas ou três gerações, haverá quem muito ria de este aberrante sistema político, doentio fruto de um desejado Abril, ou já nem isso?.

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De Vasco Silveira a 18.04.2022 às 12:44

Caro Senhor


No tratado de Aigun cerca de 1860, a China cedeu ( foi forçada a ) o Nordeste exterior Chinês à Rússia com cerca de 550. 000 Km2 ( equivalente à área de frança). Ainda não foi levantado esse tema/memória,  mas será de certeza, após a China ter resolvido os assuntos com maior prioridade ( Formosa, EUA, ...) . 
A Rússia que não se esqueça disso: as amizades entre países têm prazo/ interesse de validade.


Cumprimentos


Vasco Silveira

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