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Sobre o aborto, como sobre muitas outras coisas que acho demasiado complexas para ver um caminho único, falo raramente.
Andava há tempos a pensar escrever qualquer coisa sobre como de uma discussão sobre um problema social real e relevante, se passou para a conversa sobre direitos fundamentais, ódio às mulheres, masculinidade tóxica e coisas semelhantes.
"Se todo o aborto é um mal, afirmava, o aborto clandestino é uma «catástrofe», explanando de forma documentada a realidade do aborto clandestino em Portugal quanto ao tipo de práticas e suas consequências para a saúde das mulheres: a utilização de «métodos primitivos e brutais, principalmente entre as camadas da população economicamente mais desfavorecidas»; a sujeição a consequências gravíssimas que, «com uma alarmante frequência, vão até à morte»; as hemorrarias, inflamações do útero ou doenças permanentes, a incapacidade de trabalho durante meses ou anos e mesmo a esterilidade. «A vida sexual e as funções reprodutoras da mulher sofrem um duro choque», acrescentava.
Que razões levariam então tantas mulheres a «enfrentar a morte, a esterilidade, as doenças e ainda a repressão legal para evitar ter filhos», questionava Álvaro Cunhal. Como resposta adiantava a miséria e a angustiosa situação económica das classes trabalhadoras, marcada pelos baixos salários, o desemprego massivo, a impossibilidade de ter amas para tomar conta dos seus filhos, as condições brutais de exploração do trabalho e a parca alimentação que não permitia uma maternidade saudável. Sendo assim, como podem elas «ansiar a vinda ao mundo do produto do seu ventre, como podem desejar que a carne da sua carne venha para o sofrimento e para a dor?»".
A citação é deste artigo do Avante, já com mais de dez anos, sobre a tese académica de Álvaro Cunhal, discutida em Julho de 1940, com o título «O Aborto: Causas e Soluções» (a tese foi muito bem classificada, de acordo com as teses do PC, porque era tão boa que até o júri fascista foi obrigado a reconhecer-lhe esse valor, de acordo com a lógica, porque o júri era mais justo do que o PC gostaria de admitir).
Pareceu-me útil para assinalar o ponto de partida da discussão sobre a legalização do aborto: o aborto é um mal, mas independentemente do que diga a lei, muitas mulheres fá-lo-ão, em condições mais precárias se for ilegal, especialmente no caso das situações de maior fragilidade social e económica, frequentemente com graves efeitos de saúde para as mulheres, incluindo riscos acrescidos de mortalidade precoce.
A tese que fundamenta a oposição a esta legalização, desde sempre, é a de que não é apenas um mal, é uma violação do direito à vida, pelo que a lei não pode acolher essa possibilidade.
As duas posições, irreconciliáveis em grande medida, foram evoluindo, quer por parte dos que se opõem ao aborto pelas razões citadas, mas reconhecem os graves problemas sociais (incluindo de injustiça social) resultantes da sua proibição total, quer por parte dos que defendem a legalização do aborto, que deixou de encerrar, para muita gente, uma questão moral de primeira grandeza, ao não reconhecer qualquer direito antes do nascimento.
As duas posições encerram, forçosamente, contradições e dificuldades (por exemplo, a legítima defesa e a guerra justa são consideradas circunstâncias que podem derrogar o direito à vida de terceiros, mas situações igualmente limite relacionadas com a gestação não são vistas com a mesma ponderação de direitos, no caso dos opositores ao aborto, ou a defesa de limites aos tempos de gestação para a realização legal do aborto, descartando a possibilidade de abortar até à véspera do nascimento, no caso dos defensores da ideia de que não há direitos antes do nascimento), mas na verdade parece-me relativamente fácil encontrar largas matérias de acordo, no que diz respeito à preocupação de resolver os problemas sociais relacionados com gravidezes indesejadas (ou desejadas, mas que o futuro vem a revelar como muito mais problemáticas que o esperado).
A minha incompreensão vai para a radicalidade woke que pretende afastar qualquer discussão, moral, política, social, sobre as melhores soluções associadas à gravidez indesejada, sob o argumento de que o aborto é um direito fundamental das mulheres que nem sequer pode ser questionado.
O que me preocupa não é a possibilidade de ver pais a eximir-se às suas responsabilidades argumentando que o nascimento de uma criança é uma decisão inteiramente livre da mãe, razão pela qual os pais não têm qualquer responsabilidade na criação dos filhos, o que me preocupa é mesmo a tendência para substituir por adjectivos pesados qualquer argumento a favor ou contra o que cada um pensa, ou andar a tentar perseguir pessoas que simplesmente afectam recursos à defesa das suas ideias, por mais que essas ideias sejam diferentes das minhas.
O aborto não faz parte dos direitos fundamentais declarados pela ONU, mas o direito à propriedade faz.
Isso, e bem, não impede que haja pessoas, e partidos, que consideram que propriedade é roubo, ou que achem adequadas imensas restrições ao direito à propriedade (veja-se, em toda a discussão sobre habitação, a posição de grande parte da esquerda).
Já era tempo de compreender que a interupção voluntária de uma gravidez (usei esta expressão, desta vez, para vincar o voluntária) tinha um contexto social, económico, científico e tecnológico no tempo em que Álvaro Cunhal apresentou a sua tese (nem a pílula tinha sido, sequer, inventada, quanto mais o resto), que a tornava uma chaga social para a qual faltavam respostas, e que hoje, apesar do contexto ser muito diferente e haver muitas mais respostas sociais e tecnológicas para gerir gestações, continua a ser relevante perguntar: onde está o ponto de equilíbrio da lei que assegure razoabilidade social e a melhor a ponderação de tudo o que está em causa, para as mulheres, claro, para os potenciais filhos, evidentemente, mas se não for pedir de mais, para os outros implicados em cada gestação?
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