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De chaga social a direito fundamental, inquestionável

por henrique pereira dos santos, em 05.07.25

Sobre o aborto, como sobre muitas outras coisas que acho demasiado complexas para ver um caminho único, falo raramente.

Andava há tempos a pensar escrever qualquer coisa sobre como de uma discussão sobre um problema social real e relevante, se passou para a conversa sobre direitos fundamentais, ódio às mulheres, masculinidade tóxica e coisas semelhantes.

"Se todo o aborto é um mal, afir­mava, o aborto clan­des­tino é uma «ca­tás­trofe», ex­pla­nando de forma do­cu­men­tada a re­a­li­dade do aborto clan­des­tino em Por­tugal quanto ao tipo de prá­ticas e suas con­sequên­cias para a saúde das mu­lheres: a uti­li­zação de «mé­todos pri­mi­tivos e bru­tais, prin­ci­pal­mente entre as ca­madas da po­pu­lação eco­no­mi­ca­mente mais des­fa­vo­re­cidas»; a su­jeição a con­sequên­cias gra­vís­simas que, «com uma alar­mante frequência, vão até à morte»; as he­mor­ra­rias, in­fla­ma­ções do útero ou do­enças per­ma­nentes, a in­ca­pa­ci­dade de tra­balho du­rante meses ou anos e mesmo a es­te­ri­li­dade. «A vida se­xual e as fun­ções re­pro­du­toras da mu­lher so­frem um duro choque», acres­cen­tava.

Que ra­zões le­va­riam então tantas mu­lheres a «en­frentar a morte, a es­te­ri­li­dade, as do­enças e ainda a re­pressão legal para evitar ter fi­lhos», ques­ti­o­nava Álvaro Cu­nhal. Como res­posta adi­an­tava a mi­séria e a an­gus­tiosa si­tu­ação eco­nó­mica das classes tra­ba­lha­doras, mar­cada pelos baixos sa­lá­rios, o de­sem­prego mas­sivo, a im­pos­si­bi­li­dade de ter amas para tomar conta dos seus fi­lhos, as con­di­ções bru­tais de ex­plo­ração do tra­balho e a parca ali­men­tação que não per­mitia uma ma­ter­ni­dade sau­dável. Sendo assim, como podem elas «an­siar a vinda ao mundo do pro­duto do seu ventre, como podem de­sejar que a carne da sua carne venha para o so­fri­mento e para a dor?»".

A citação é deste artigo do Avante, já com mais de dez anos, sobre a tese académica de Álvaro Cunhal, discutida em Julho de 1940, com o título «O Aborto: Causas e So­lu­ções» (a tese foi muito bem classificada, de acordo com as teses do PC, porque era tão boa que até o júri fascista foi obrigado a reconhecer-lhe esse valor, de acordo com a lógica, porque o júri era mais justo do que o PC gostaria de admitir).

Pareceu-me útil para assinalar o ponto de partida da discussão sobre a legalização do aborto: o aborto é um mal, mas independentemente do que diga a lei, muitas mulheres fá-lo-ão, em condições mais precárias se for ilegal, especialmente no caso das situações de maior fragilidade social e económica, frequentemente com graves efeitos de saúde para as mulheres, incluindo riscos acrescidos de mortalidade precoce.

A tese que fundamenta a oposição a esta legalização, desde sempre, é a de que não é apenas um mal, é uma violação do direito à vida, pelo que a lei não pode acolher essa possibilidade.

As duas posições, irreconciliáveis em grande medida, foram evoluindo, quer por parte dos que se opõem ao aborto pelas razões citadas, mas reconhecem os graves problemas sociais (incluindo de injustiça social) resultantes da sua proibição total, quer por parte dos que defendem a legalização do aborto, que deixou de encerrar, para muita gente, uma questão moral de primeira grandeza, ao não reconhecer qualquer direito antes do nascimento.

As duas posições encerram, forçosamente, contradições e dificuldades (por exemplo, a legítima defesa e a guerra justa são consideradas circunstâncias que podem derrogar o direito à vida de terceiros, mas situações igualmente limite relacionadas com a gestação não são vistas com a mesma ponderação de direitos, no caso dos opositores ao aborto, ou a defesa de limites aos tempos de gestação para a realização legal do aborto, descartando a possibilidade de abortar até à véspera do nascimento, no caso dos defensores da ideia de que não há direitos antes do nascimento), mas na verdade parece-me relativamente fácil encontrar largas matérias de acordo, no que diz respeito à preocupação de resolver os problemas sociais relacionados com gravidezes indesejadas (ou desejadas, mas que o futuro vem a revelar como muito mais problemáticas que o esperado).

A minha incompreensão vai para a radicalidade woke que pretende afastar qualquer discussão, moral, política, social, sobre as melhores soluções associadas à gravidez indesejada, sob o argumento de que o aborto é um direito fundamental das mulheres que nem sequer pode ser questionado.

O que me preocupa não é a possibilidade de ver pais a eximir-se às suas responsabilidades argumentando que o nascimento de uma criança é uma decisão inteiramente livre da mãe, razão pela qual os pais não têm qualquer responsabilidade na criação dos filhos, o que me preocupa é mesmo a tendência para substituir por adjectivos pesados qualquer argumento a favor ou contra o que cada um pensa, ou andar a tentar perseguir pessoas que simplesmente afectam recursos à defesa das suas ideias, por mais que essas ideias sejam diferentes das minhas.

O aborto não faz parte dos direitos fundamentais declarados pela ONU, mas o direito à propriedade faz.

Isso, e bem, não impede que haja pessoas, e partidos, que consideram que propriedade é roubo, ou que achem adequadas imensas restrições ao direito à propriedade (veja-se, em toda a discussão sobre habitação, a posição de grande parte da esquerda).

Já era tempo de compreender que a interupção voluntária de uma gravidez (usei esta expressão, desta vez, para vincar o voluntária) tinha um contexto social, económico, científico e tecnológico no tempo em que Álvaro Cunhal apresentou a sua tese (nem a pílula tinha sido, sequer, inventada, quanto mais o resto), que a tornava uma chaga social para a qual faltavam respostas, e que hoje, apesar do contexto ser muito diferente e haver muitas mais respostas sociais e tecnológicas para gerir gestações, continua a ser relevante perguntar: onde está o ponto de equilíbrio da lei que assegure razoabilidade social e a melhor a ponderação de tudo o que está em causa, para as mulheres, claro, para os potenciais filhos, evidentemente, mas se não for pedir de mais, para os outros implicados em cada gestação?


4 comentários

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De passante a 05.07.2025 às 12:55

As ecografias deram cabo do aborto.
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De cela.e.sela a 05.07.2025 às 15:17

há mais de um século só engravida quem quer: inicialmente os óvulos, a utilização do termómetro e os preservativos; depois as pílulas: mensais e do dia seguinte. 
pagam os contribuintes a despesa do sns e do estado social sempre na corda bamba
«-¿ES VERDAD QUE "LO QUE IMPORTA ES LA ECONOMÍA ¡¡ESTÚPIDO!!"? 

Uno de los persistentes lemas de la campaña de Clinton de 1992 aún perdura: si "Es la Economía, estúpido", entonces ¿Por qué no ha recibido el presidente Clinton el reconocimiento público que merece por nuestra gloriosa recuperación económica? De ahí la conclusión de que la rotunda derrota Demócrata de Clinton de noviembre de 1994 se debió a su fracaso a la hora de "transmitir el mensaje" al público, siendo el mensaje la buena nueva de nuestra actual prosperidad económica.

Murray NRothbard in POR UNA ECONOMÍA CON SENTIDO 
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De henrique pereira dos santos a 05.07.2025 às 15:33

Era bom que as coisas fossem tão simples e, se calhar, são, desde que se deixe da lado a natureza humana.
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De Fernanda Lemos Damásio a 05.07.2025 às 18:51

O problema do aborto está bem equacionado.
A vida e a saúde da mãe que seria colocada em causa através do aborto clandestino.
E a eutanásia?
Qual é a lógica de ser o SNS a financiar psicólogos, médicos, música clássica e velas com cheiro para quem se quer matar?
Nada contra a eutanásia desde que não seja financiada pelo Estado, os hospitais e clínicas privadas podem prestar esse serviço.
O SNS devia focar-se em salvar vidas.

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