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Entre as várias coisas que fiz na vida, contam-se vários anos como responsável pela gestão dos processos de pedreiras numa área protegida.
Quando lá cheguei, todas as pedreiras eram ilegais e cresciam a olhos vistos, quer em dimensão, as que existiam, quer em número.
O Parque Natural ia emitindo uns pareceres que a entidade de tutela da actividade ignorava olimpicamente e os exploradores de pedreiras iam fazendo pela vida como podiam e sabiam.
Já não me lembro bem, foi há muitos anos, mas tenho ideia de que a legislação tinha mudado qualquer coisa há algum tempo (antes apenas era precisa uma comunicação para a exploração, depois passou a ser necessária uma licença prévia à abertura da pedreira) e a equipa de guardas e vigilantes da área protegida (na altura, provavelmente a melhor e mais bem estruturada em todas as áreas protegidas) tinha propostas muito concretas para resolver o assunto, começando por estabelecer um ponto zero que permitisse saber o que era novo e era velho.
Demoraria tempo, exigiria muito trabalho e persistência e implicava algum risco, tudo coisas a que a administração pública portuguesa é, com frequência avessa (mais nas suas chefias que nos seus trabalhadores).
Parece uma questão de pormenor, mas aparecia um buraco para explorar calçada e se alguma fiscalização ali passava, as respostas eram sempre mais ou menos no mesmo sentido: isto não é meu, é do Chicolate, eu só vim aqui tirar um metro cúbico para safar uma encomenda, ou isto estava para aqui abandonado há muitos anos e eu estou só a ver se dá, ou isto não está abandonado, é do Viagens, mas ele só cá vem quando faltam os fretes, e por aí fora.
Como a legislação protegia as situações pré-existentes (bem) e como as entidades responsáveis pelo sector o que queriam era que a produção aumentasse, ninguém ligava nenhuma a questões administrativas e legais, de maneira que não havia uma ponta por onde se pegasse no problema.
Não muito tempo antes tinha sido aprovado um Plano de Ordenamento da Área Protegida, que era uma mera portaria a que ninguém ligava muito (a não ser os que lá trabalhavam e tinham de o aplicar), mas tinha uma obrigação que se veio a revelar central: a obrigação de prestação de uma caução para a recuperação da pedreira no fim da exploração (hoje é a norma geral, mas não naquele tempo).
O que fizemos, um trabalho sobretudo assente na equipa de fiscalização da área protegida, foi passar a levantar autos a todos os buracos, mesmo quando se desconhecia o explorador, de maneira a 1) ter um registo concreto de todos os buracos de pedreira existentes; 2) criar um vínculo entre um explorador e uma pedreira, de maneira a poder responsabilizá-lo e a eliminar do problemas as pedreiras sobre as quais ninguém se responsabilizava. Ao mesmo tempo era dado um prazo razoável para legalização da pedreira.
Esta actuação deu origem a braço de ferro com as entidades de tutela das pedreiras, sempre, sempre do lado dos exploradores (sempre foi mais difícil a relação com as entidades de tutela que com os exploradores) que se recusava a reconhecer a validade legal de toda a actuação da área protegida.
Aos poucos, com persistência, às vezes teimosia, e muita atenção aos problemas dos exploradores de pedreiras e dos seus trabalhadores, a situação foi-se resolvendo, foram sendo melhoradas as regras, os empresários melhores passaram verdadeiramente a procurar resolver o problema da legalidade das suas explorações (os outros tentavam oferecer bacalhau, azeite e coisas que tal para lhes resolver o problema, os mais básicos, ou tentavam adjudicar os serviços de projecto de recuperação necessários à legalização, os menos básicos, porque sempre tinha sido assim que tinham resolvido os problemas das suas explorações).
Um ou outro incidente (pneus do carro cortados à porta de casa, tiros nocturnos sobre o pré-fabricado em que trabalhávamos) e, contra a minha opinião, passámos a andar acompanhados pela GNR quando começámos a dar ordens de paragem às explorações ilegais (nós não queríamos ir com a GNR, não porque nos quiséssemos armar em heróis, mas porque sabíamos que entrar numa pedreira com a GNR atrás era considerado uma declaração de guerra e também sabíamos que os elementos da GNR não podiam ouvir, como às vezes acontecia, "se dá mais um passo na minha pedreira leva um tiro", sem considerar essas ameaças a quem fazia a fiscalização como inaceitáveis, criando-se facilmente uma situação de crispação que poderia fugir do controlo facilmente, tanto mais que do lado os exploradores parar a pedreira era retirar-lhes o ganha-pão e pôr em sério risco o emprego de muitas pessoas que não tinham alternativaa região).
No essencial, o sector naquela área protegida ficou muito melhor que no resto do país, sendo dali que eram exportadas as melhores práticas administrativas e ambientais, as que tinham dado resultados concretos, mas sempre, sempre, com as entidades de tutela do sector em contra-pé, mantendo uma prática laxista, incompetente e irresponsável (tendo eu hoje poucas dúvidas, e nenhumas provas, sobre a corrupção que oleava os processos, podendo, na altura, nomear alguns dos técnicos e dirigentes que consensualmente eram tidos como "gajos porreiros").
A gestão desta área protegida (sobre a qual eu não tinha responsabilidade, portanto não é do meu trabalho que falo neste ponto) esteve sempre entre dois fogos em todo este processo:
dos exploradores, acolitados pela administração pública de tutela do sector (dir-se-ia, facilmente, que era dos sectores da administração que nunca deram pelo 25 de Abril no que diz respeito à sua relação com a sociedade);
do movimento conservacionista que, ignorando totalmente a dura vida daqueles homens, nunca aceitaria menos que o encerramento total da actividade na área protegida.
Fatalmente, saindo do processo algumas pessoas chave, e sendo incomparavelmente mais fácil para todos não fazer ondas, o que se conseguiu teve, anos depois, retrocessos inacreditáveis, embora muita coisa já estivesse suficientemente consolidada para não poder voltar ao ponto de partida.
Lembrei-me de escrever estas memórias a propósito de Borba: sim, há responsáveis concretos sobre situações concretas, mas a altíssima probabilidade de haver, mais tarde ou mais cedo, catástrofes destas (como nos fogos, como nas cheias, como nos sismos, como na manutenção de infra-estruturas) tem a sua raiz na forma como nos organizamos como sociedade, na forma como somos pouco exigentes com o Estado, na forma como preferimos fazer leis maximalistas em vez de investir seriamente em fiscalização inflexível sim, mas sensata, próxima dos destinatários e respeitadora das pessoas, na forma como recusamos o compromisso das situações intermédias e nos entricheiramos em posições irredutíveis, etc., etc., etc..
Em qualquer país exigente, um primeiro ministro que dissesse desconhecer a situação das pedreiras de Borba/ Vila Viçosa estaria imediatamente debaixo de fogo, não porque um primeiro ministro tenha de saber tudo (é difícil alguém ignorar que havia, e há, ali um problema, o que é válido para o primeiro ministro, mas também para os jornalistas, para o movimento ambientalista, para mim, etc.), mas porque seria inadmissível que um primeiro ministro se recusasse a assumir parte da responsabilidade pelo estado miserável em que está a administração da lei e da justiça em quase toda a administração pública.
Uma coisa é haver uma circunstância em que tudo correu mal e houve uma tragédia, o que acontece em qualquer parte do mundo e em qualquer organização.
Outra coisa é o que hoje sabemos que acontece em Portugal: mesmo quando as coisas correm como seria de esperar, nada nos livra do risco de uma tragédia, porque o que esperamos deste Estado é que se concentre nas festas do concelho, que seja accionista de uma companhia aérea, dono de uma televisão, promova feiras tecnológicas e, mesmo dizendo que não, no fundo estamos dispostos a aceitar que as sarjetas não funcionem, que os equipamentos hospitalares não tenham manutenção, que a GNR não tenha combustível, para que possamos brilhar numa final de um campeonato de futebol.
Diz-se do trabalho da dona de casa que não brilha e nós gostamos tanto do brilho que estamos dispostos a fingir que não sabemos que a casa está no estado em que está.
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