Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Púrpuro acaso (gosto imento deste trocadilho que vi num livro de quadradinhos há muitos anos), fui dar com este excerto de uma intervenção de Graça Freitas que transcrevo (retirando o coloquialismo de quem está a falar, podem sempre ouvir o original para verificar se estou a distorcer o que disse Graça Freitas):
“O risco de transmissão ao ar livre é muito menor e com 85% da população vacinada a circulação de vírus será também muito menor, aquele efeito que no interior se pode, enfim, que é a criação de aerossóis a partir de pessoas que possam estar infectadas e portanto o uso de máscara ainda é mais importante no interior a opinião da Direcção Geral de Saúde é de que com 85% de vacinação, com o que os estudos indicam e não tendo o exterior essa capacidade de concentrar aerossóis, será uma medida positiva [a alteração da regulamentação do uso de máscaras no exterior]. Mas há excepções, mesmo ao ar livre, de vez em quando, nós temos ajuntamentos e portanto durante o Inverno é de bom tom andar sempre com a máscara”.
Resumindo, ao ar livre não se podem formar os aerossóis que são o problema potencial, por isso somos de opinião de que é bom que se acabe com esta parvoíce das máscaras ao ar livre, mas ao mesmo tempo achamos de bom tom que se ande sempre de máscara no Inverno, embora não consigamos explicar porquê.
O problema da gestão da epidemia (não da epidemia, da gestão da epidemia, o problema da epidemia é ser uma epidemia, claro) é termos transferido o poder de governar comunidades a quem não pode ser responsabilizado politicamente por dizer e, sobretudo, decidir, o que lhe apetece com base em fundamentos tão sólidos como os que são evidentes nesta declaração.
Note-se que o problema não é Graça Freitas, a DGS e o Instituto Ricardo Jorge publicam uns relatórios que são lidos pelos jornalistas (penso que essencialmente os resumos feitos) que até têm informação interessante, mas da qual não se retira nenhuma consequência.
Olhemos para este gráfico:
O gráfico mostra a mortalidade ao longo da epidemia, em Portugal e o que é visível é que no fim de Dezembro/ princípios de Janeiro a mortalidade dá um salto de um nível elevado - por volta de 100 mortos por dia - para um nível brutal, chegando aos 350 mortos em cerca de três semanas.
A versão oficial é a de que foi por causa do Natal. A minha versão é a de que foi por causa de uma anomalia meteorológica que criou condições especialmente favoráveis ao contágio e à mortalidade.
Todos os fundamentos em que poderia basear a ideia de que foi o Natal - essencialmente a teoria de que o factor chave para o contágio é o número de contactos em meio fechado - foram cabalmente desmentidas pelos factos: o nível de contactos nessa altura não foi especialmente alto e ao longo do ano houve dezenas de semanas com mais contactos que no Natal.
Ao mesmo tempo, existe um facto excepcional demonstradamente presente naquele momento: a anomalia meteorológica.
O mais provável (é o que diz a teoria, de resto) é que o contágio seja o produto de um conjunto relativamente alargado de factores, o que seria normal que nos fizesse discutir o peso que cada factor na evolução da incidência. Infelizmente desde cedo a teoria foi esquecida partindo da ideia de que os factores externos não controlamos, portanto temos de nos focar naquilo que podemos controlar, os contactos sociais.
Mas como não fazemos essa discussão, aparecem umas pessoas, sabedoras, sem margem de dúvida, que dizem que o problema, neste momento é o facto da variante Delta ser 70% mais contagiosa. Essa variante entra em Portugal na primeira quinzena de Maio e é totalmente dominante a partir de meados de Maio e quando se vai à procura dos efeitos na curva da mortalidade (lembrem-se, mais contágios significam mais internamentos e mortes, dizem eles, com alguma razão), não encontramos o menor sinal do efeito dessa variante, muito menos um sinal da dimensão do que vimos em Janeiro.
Em circunstâncias normais, estariam uma série de investigadores e dizer que a hipótese mais provável para estes dados seria a de que os factores ambientais têm muito mais peso como motor da evolução da epidemia - em especial tendo em atenção que a taxa de vacinação se consegue relacionar com a taxa de internamentos e de mortalidade, mas não com a incidência - que o facto da variante ser mais ou menos contagiosa (se os factores ambientais tiverem um peso decisivo no contágio, então a variante ser mais ou menos contagiosa tem um peso menor e ser 70% mais contagiosa acaba por ter pouca importância).
E como é de mortalidade que estamos a falar, então valeria a pena ter em atenção o que diz o mesmo relatório onde fui buscar o gráfico:
“Entre as pessoas infetadas, 303 (1,0%) foram internadas com diagnóstico principal de COVID-19 e 100 foram internadas com diagnóstico secundário de COVID-19. Mais de metade (59%) das pessoas internadas com diagnóstico principal de COVID-19 tinham mais de 80 anos.
Entre os 29 373 casos de infeção por SARS-CoV-2 em pessoas com esquema vacinal completo contra a COVID-19 há mais de 14 dias, registaram-se 309 óbitos por COVID-19 (1,1%), dos quais 239 óbitos (77,3%) em pessoas com mais de 80 anos.”
Olha, olha, afinal parece que quando se discutem os efeitos das vacinas já é importante distinguir os que são internados (e os que morrem, que não são os mesmos) com diagnóstico primário e secundário de covid. E já vale a pena fazer notar que quase 80% têm acima de 80 anos. Não tarda, começam a escrever nos relatórios o que já vão dizendo por aí: além de terem mais de 80 anos, também estão em condições de saúde muito precárias.
Assim não admira que a mortalidade excessiva não se altere por aí além com esta doença, fora dos surtos de Outono/ Inverno: afinal a esmagadora maioria das pessoas que morrem com covid são pessoas cuja probabilidade de estarem vivas daqui a um ano é baixíssima, com ou sem covid.
Ou seja, Graça Freitas pode fazer as piruetas argumentativas que faz para decidir sobre a vida dos outros porque há um ambiente malsão na produção da informação sobre a epidemia que impede uma discussão racional sobre os modelos de gestão dos problemas criados pela epidemia.
Daí o título que usei, um verso de Luís de Macedo num fado lindíssimo que Amália canta, cuja parte final da letra (que inclui o verso que dá título ao post) é a última coisa que escrevi na minha tese de doutoramento.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
Perante resposta tão fundamentada, faço minhas as ...
O capitalismo funciona na base da confiança entre ...
"...Ventura e António Costa são muito iguais, aos ...
Deve ser por a confiança ser base do capitalismo q...
"que executem políticas públicas minimalistas, dei...