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Da urgência (ou da indignação?)

por henrique pereira dos santos, em 28.03.20

Decidi fazer este post depois de uma troca de comentários com André Carapinha na minha página de Facebok, no momento em que me diz: "ainda mais urgente é o que já se está a passar com milhares de pessoas neste pais, nas cidades e nos subúrbios simplesmente regressou a fome em duas semanas".

O André está nos antípodas das minhas posições políticas e sociais e foi de outra pessoa, também nos antípodas dessas posições políticas e sociais, que me lembrei imediatamente, por ter visto as suas declarações há dois dias: "“Receio que estejamos em risco de enfrentar situações de fome“, considera Isabel Jonet, acrescentando que “temos situações verdadeiramente desesperadas“. Em causa estão sobretudo pessoas com “rendimentos muito pouco estáveis, que trabalham a recibos verdes ou “de forma informal e foram dispensadas, ou a sua fonte de sustentou encerrou”. É o caso de trabalhadores de cabeleireiros ou empregadas domésticas".

No teclado do computador em que pessoas como eu, economistas brilhantes que desenham soluções para enfrentar o futuro, jornalistas em tele-trabalho que relatam números da Covid ou entrevistam médicos dos cuidados intensivos, é muito difícil vermos as vidas destas pessoas a quem simplesmente tirámos o chão de um momento para o outro, mimetizando os modos de actuação de uma ditadura brutal que precisa de se relegitimar permanente com actos heróicos.

Nem o registo histórico dessa ditadura que, com os seus "grandes saltos em frente" e "revoluções culturais", deixou um rasto de pessoas mortas de fome, nem a fragilidade da evidência científica de que a ameaça que enfrentamos seja de uma ordem de grandeza estratosférica, nem a evidência empírica de que diferentes abordagens ao problema têm resultados essencialmente semelhantes, pelo menos da ordem de grandeza da mortalidade, nem a evidência que resulta dos sistemas europeus de vigilância da mortalidade diária de que, até agora, os impactos da Covid na mortalidade estão dentro, eventualmente ligeiramente acima, do que é a mortalidade de uma gripe (escusam de argumentar que clinicamente e do ponto de vista de sobrecarga e risco dos profissionais de saúde a doença não tem qualquer paralelo com a gripe, já sei isso, a comparação não é clínica, e epidemiológica) - para os que têm dúvidas, podem ler aqui o relatório da semana de 8 a 14 de Março, a última disponível, em Itália - nos tem feito parar um bocadinho para pensar se realmente não estamos a criar mais problemas com a cura que com a doença.

Sim, estamos todos em casa, mas isso não significa o mesmo para todos: para mim, que faço parte dos protegidos e dos privilegiados, pode ser, no máximo, um incómodo; para milhares de outras pessoas significa não saber o que fazer para ter o que comer amanhã.

Detesto dramatismos e reconheço a enorme soberba de pretender que esta abordagem da doença é totalmente absurda quando tantos governos, apoiados pela melhor ciência e pelas melhores agências de gestão do problema, as adoptam.

Mas não tenho a menor dúvida do rasto de devastação social que aí está (ia escrever, "aí vem", mas na verdade não estaria a ser rigoroso, isto não é uma questão de consequências futuras, isto passa-se agora) e também me lembro de outros episódios históricos de cegueira colectiva em que a dissidência era rapidamente esmagada com grandes proclamações morais, como agora se faz ao pretender que alguém que se limita a dizer o que aqui estou a dizer é um mero darwinista social sem a menor compaixão pelos mais fracos e expostos.

Prefiro correr o risco de me espalhar ao comprido, de estar totalmente errado (volto a dizer que isso é o mais provável, é muito dificil aceitar a ideia de que tanta gente, tão qualificada e tão responsável está tão estrondosamente errada e que eu, um "pobre homem da Póvoa" aqui sentado é que estou a ver a coisa mais ou menos como  deve ser) a deixar de dizer que nos faria falta um bocadinho mais de respeito pelos deserdados da vida, ao ponto de, ao menos, avaliar os efeitos do que estamos a fazer, fora do estrito quadro da paranóia de contenção de uma epidemia a qualquer custo.

Senhores jornalistas, protejam-se, ponham máscaras se quiserem, levem desinfectante no bolso, mantenham a distância social, não toquem em nada, mas vão lá, vão ver o que se está a passar lá.

Ao menos digam-me que é falso alarme, que estou enganado, que afinal não se passa nada.


14 comentários

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De Anónimo a 28.03.2020 às 10:06

continuam a 'fuder' o rectângulo e a selecção natural continua a sua missão
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De Gabriel Mithá Ribeiro a 28.03.2020 às 11:16

Os meus parabéns por este notável pedaço de lucidez! 
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De António a 28.03.2020 às 12:40

Um dos erros comuns relativamente à gripe sazonal é não ligar muito. Devido à burocracia, muitos continuam a trabalhar, em vez de ficar uma semana em casa. Só não criam maiores problemas porque há vacinas. E morre muita gente.
Há quem não se vacine e raramente contrai gripe, e gaba-se disso, sem perceber que são os vacinados que os protegem. Também já ouvi os que tomaram a vacina para nada porque afinal não adoeceram.
Talvez a gripe sazonal mate tanta gente como o covid-19, por dia, todos os dias, sem fim à vista. A OMS coloca a taxa de mortalidade prevista num intervalo próximo de 1%. E avisa que só no final é que os números serão válidos, pode ser pior ou melhor. Mesmo assim não se compara com os 0,2% da gripe sazonal.
A política importa. Os números que vêm dos EUA mostram isso.
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De zazie a 28.03.2020 às 14:29

A dúvida: mas a gripe sazonal não é acrescento a estas mortes pelo covid?
Não existe? 
Apareceu o covid e desapareceu tudo o resto ou esta é uma estatística de mortes por grupos etários e comparando precisamente o mesmo (incluindo o covid em morte por pneumonia, como será óbvio).
Se for o 2º caso, somando tudo, partindo por isso do mesmo pressuposto, então morreram mais entre 2016-17 Naquelas terras, em Itália.
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De zazie a 28.03.2020 às 13:12

Isto pode ler-se que já morreram muito mais idosos por diversas doenças em 2016 que agora?


Genericamente, partindo do mesmo quadro observável, sem separar apenas as mortes devidas a covid?
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De zazie a 28.03.2020 às 13:18

Em Itália, como é óbvio e naquelas cidades?


Por cá pode-se fazer o mesmo com os dados oficiais.


Esse é o detalhe que me escapa.
Andei estes últimos 3 anos em urgências e internamentos hospitalares com familiar, apercebi-me da gigantesca mortalidade por efeitos de contaminação de bactérias ou vírus. A minha própria familiar apanhou, aos 98 anos, a Klebsiella, e venceu-a sem tratamento pois era "colónia adormecida". Melhor é nem acordar o bicho.


Mas vi uma quantidade de gente a morrer, sendo grande número por pneumonia. Entre Novembro e Dezembro, apenas num hospital, assisti a muitos e muitos casos.
Não duravam muito. E isto com ventiladores, com sondas, reanimação cardíaca, hemodiálise, com todo o tratamento possível, tirando o problema das escaras que não existem colchões suficientes. Levava sempre de casa, excepto desta última vez, pois tinham e era a "menina centenária" e rija que todos gostavam e cuidaram o melhor possível, até ao fim. 
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De zazie a 28.03.2020 às 15:05

O gráfico, de facto, mostra mais mortes noutros anos e agora subida súbita em menos tempo.


Se forem mesmo todas, somando tudo, sem isolar o covid das restantes, o hps tem razão.
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De Anónimo a 28.03.2020 às 17:39

Concordo consigo: sobre esse tema, do day after, ou , prever e antecipar a crise económica, recomendo vivamente o texto de AA Amaral e RA da Fonseca no Observador, e sobretudo um extraordirio excerto de um texto de CS Lewis ( vivendo sob a bomba atómica).


Cumprimentos
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De zazie a 28.03.2020 às 18:32

Pensei melhor e não. Há aqui novamente um erro, se quisermos extrapolar como dados do passado e perspectivas actuais.


Esta pandemia (não é apenas epidemia) tem uma % de mortalidade de 4,4% e ainda não acabou.


Tudo o mais que se queira retirar parte desta dupla falha- a letalidade que não tem sequer comparação com o h1n1 (0,04%) e os ciclos de gripe sazonal, que aconteceram e acabaram, porque este nem é sazonal e, muito menos acabou.
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De zazie a 28.03.2020 às 18:58

Conclusão: como também costumo falar e respondo sempre; argumento- posso dizer que sim- tem razão- espalhou-se ao comprido por ser casmurro e de ideias fixas.


Não se questionou a si próprio acerca do que achou que estava a ler nos gráficos.
Usou os gráficos para ilustrar a teima básica que nada tem de científica e nem me interessa de que ordem é.


Basta isto- a amostra de epidemia não é amostra de pandemia. Porque umas foram sazonais e esta é planetária. A capacidade de contágio desta é tremendamente maior (arranje os números por mim, que sou de letras mas gosto de questionar tudo, racionalmente).


E, principalmente, não acabou- não tem resultados estanques mas já há percentagens de letalidade por comparação com outras anteriores como o h1n1
Esse tinha uma mortalidade de 0.02% e este tem de 4,5%.


Não há parâmetros nenhuns em gráficos de coisas diferentes e já fechadas. 
Tudo o resto da fome e por aí fora é ao lado. Porque o argumento, mais uma vez, foi uma falácia cientóina por gráficos que não se sabem depois interpretar para a situação presente.
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De Fernando José a 29.03.2020 às 04:59

Não se percebe. A casa a arder e insiste-se em desvalorizar. Sim, há consequências, para muitos desastrosas para já, mas que se suger então? Assobiar para o lado? Dar dinheiro aos hospitais privados para tratarem da cena e toca de mandar tudo para a praia e para os Happy Miles? Que é preciso preparar o futuro e como se vai sair disto já a gente sabe

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