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Mafalda Pratas, que não conheço e acredito que seja uma pessoa estimável e brilhante, resolveu fazer um panegírico de Mário Soares, igual a vários que por estes dias foram publicados, embora, neste caso, envolvido em muita tralha académica.
Quando li o título, "Mário Soares, o talento democrático", passei à frente por calcular que não valia a pena perder tempo com o assunto.
Como escreve alguém nos comentários do Observador, "“Soares teve o talento político de ajustar a sua estratégia ao mundo com que se deparava:” Eu chamar-lhe-ia o oportunismo em vez de talento… pontos de vista!".
Ou, mais acidamente, como escreve Jaime Nogueira Pinto, "O Dr. Soares esteve na frente comum anticolonial; no 28 de Setembro continuou no governo de Vasco Gonçalves e não pareceu muito incomodado com as centenas de presos sem culpa formada, então nas prisões da jovem democracia. Também aprovou as nacionalizações do 11 de Março e alinhou no discurso antifascista, até que, ao ver chegar-lhe à porta a procissão, se deve ter lembrado de Kerensky na revolução russa e de Jan Masaryk em Praga, em 1948. A ele não o defenestrariam".
Resumindo, não me interessa por aí além o que se diz ou escreve sobre Mário Soares, e não faria este post se a questão da descolonização não tivesse vindo atrelada a ele.
Mafalda Pratas, sobre esta matéria, diz umas valentes asneiras que são placidamente aceites porque coincidem com o mito da descolonização feita por Portugal.
Que a descolonização feita tenha sido a possível, parece-me pacífico e não tenho nenhuma tendência para copiar a wokaria que pulula por aí, procurando julgar moralmente os factos históricos, esquecendo de os contextualizar no tempo em que ocorreram.
Mas isso não nos deveria permitir substituir a avaliação histórica do processo pela repetição insensata de mitos, sobretudo quando esses mitos esquecem as principais vítimas do processo de descolonização português, tal como foi feito, os povos dos novos países (citando um comentário lúcido aqui no Corta-fitas "a catástrofe que foi para os angolanos, moçambicanos, guineenses e timorenses - e, numa medida incomparavelmente menor, para os retornados (como eu).").
Dizer que as principais vítimas da descolonização, tal como foi feita, foram os povos dos novos países não tem nenhuma relação com a defesa de que teria sido melhor (independentemente de ser possível ou não) manter o domínio colonial, são duas questões completamente autónomas.
A descolonização seria sempre uma inevitabilidade histórica, o que não era uma inevitabilidade histórica era a forma de a fazer e a forma como a fizemos (não, não foi Mário Soares, fomos nós, enquanto povo) foi trágica para os povos dos novos países.
Tiveram de engolir governos despóticos, guerras civis, cleptocracias, corrupção endémica, miséria e, quando cinquenta anos passados tentam garantir uma coisa tão simples como uma contagem decente de votos, o resultado, cinquenta anos depois, é o que vemos em Moçambique (e veremos o que acontecerá em Angola, quando o MPLA tiver de entregar o poder, espero que o MPLA aprenda alguma coisa quer com o processo moçambicano, quer com o Príncipe de Salina).
Naquela forma académica que caracteriza o texto de Mafalda Pratas, diz-se que os parcos dados que temos "indicam que a maioria dos portugueses europeus não se consideravam membros da mesma comunidade nacional dos Portugueses de origem africana". Só lendo um texto anterior de Mafalda Pratas se percebe que se refere a um inquérito de 1978 (como se o que as pessoas pensavam em 1978 fosse o mesmo que pensavam em 1973), com perguntas manifestamente tendenciosas e apenas realizado em Portugal, esquecendo que mais de 50% do exército português, pelo menos em Moçambique, era recrutado localmente, que a taxa de deserções, insubordinação, fuga à incorporação e outras coisas que tais, dificilmente suportam a tese que se pretende defender.
De resto, a própria discussão da famosa lei da nacionalidade racista do tempo do gonçalvismo, e escrita por Almeida Santos, um fidelíssimo de Soares, inclui a justificação dada na altura: era preciso impedir que quisessem vir muitos para Portugal, o que implicava retirar a nacionalidade a todos os que não tivessem ascendência europeia (ou goesa), incluindo, para vergonha nossa, os que combateram às ordens da hierarquia militar que os abandonou à perseguição dos regimes que os liquidaram, sem sequer fingir "suma piedade".
Como é que esse medo de que Portugal europeu ficasse submerso por nacionais vindos dos territórios que iriam ser os novos países se justifica, se não pela consciência clara de que se estava a sacrificar milhares de pessoas, contra a sua vontade, para garantir a tranquilidade dos europeus?
A descolonização era inevitável, a forma como foi feita provavelmente era a possível a partir do momento em que nós, como sociedade, nos recusámos a usar a força das armas para garantir um processo democrático de descolonização.
Escusamos é de negar que o resultado foi trágico, mais que para muitos retornados, para os povos dos novos países e a recusa em usar a força que de facto tínhamos para impor processos democráticos de descolonização é uma vergonha que devemos reconhecer, não para andar com desculpas e parvoíces que tais, mas porque as coisas são o que são e é bom que tenhamos a grandeza de saber reconhecer os nossos erros históricos.
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