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Covid, alterações climáticas e constituição

por henrique pereira dos santos, em 08.12.22

Declaração de interesses: conheço António Araújo por me ter convidado a escrever um ensaio para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, agradeço-lhe não só o convite mas as leituras e sugestões que foi fazendo de maneira a que o resultado final do ensaio seja muito melhor do que o ponto de partida.

Dito isto, sirvo-me da ideia de um livro que estou a acabar (Caçadores, Camponeses e Combustíveis Fósseis, a tradução possível do título original, Foragers, Farmers and Fossil Fuels) em que o autor (Ian Morris) diz a determinada altura que a crítica é a melhor forma de elogio entre académicos (estou a citar de cor, na verdade o texto fala na melhor forma de lisonja, não vi o original para saber se é a tradução que se afasta da ideia que me interessa, se é o original que tem lisonja onde prefiro ver elogio) e, mesmo não sendo eu académico (penso que António Araújo também não), gostaria de deixar clara esta ideia do que representa o que vou escrever.

António Araújo escreveu um artigo muito interessante, como são na generalidades as crónicas que escreve no Diário de Notícias, e o que me interessa não é discutir se a etimologia do vento Fohen é mesmo a adoptada no artigo ou a adoptada na wikipedia, mas sim a sua parte final:

"O Dust Bowl e os seus ventos foram um trágico exemplo, mais um, daquilo a que podem conduzir a cupidez e a estupidez humanas. Estupidez que ainda hoje em dia persiste naqueles que ainda teimam em negar as alterações climáticas e a sua origem humana. Alguns, por ignorância ou má-fé, vão ao ponto de invocar a História e convocar o passado, com isso pretendendo dizer que outrora também houve mudanças do clima, pelo que as de hoje não serão certamente diferentes, seja na sua gravidade e alcance, seja na ausência de responsabilidade humana na sua génese. Há um par de meses, um terço do Paquistão ficou submerso pelas cheias, que causaram de imediato 800 vítimas mortais, esperando-se muitas mais, devido às epidemias e às doenças. António Guterres afirmou nunca ter visto uma "carnificina climática" semelhante. Por cá, perante uma tragédia daquelas, alguns imbecis (sem surpresa, os mesmos imbecis que questionam os confinamentos e as vacinas da Covid, que salvaram 19,8 milhões de vidas) não acharam melhor do que caricaturar Guterres e os seus insistentes alertas, alertas que, note-se, são partilhados de forma esmagadora pela comunidade científica: um estudo de 2021, publicado na revista Environmental Research Letters, concluiu que 99% dos trabalhos publicados sobre a matéria reconhecem que as actuais alterações climáticas têm origem humana. De um lado, 99% de cientistas; do outro, 1% de idiotas. Parole al vento, dizem os italianos. E nós também."

Esta forma simplista de pôr a discussão de assuntos complexos e sobre os quais é preciso tomar decisões colectivas parece-me muito pouco razoável e, pior, limitadora de discussões abertas que permitam ir aferindo as melhores soluções (de que é exemplo o que foi feito depois de identificados os problemas associados ao Dust Bowl), procurando identificar grupos que são desqualificados à priori e cujos argumentos nem sequer devem ser tidos em atenção.

E o que me preocupa é que este parágrafo não corresponde a uma ideia isolada, mas a uma tendência social a que mesmo intelectuais sólidos como António Araújo, acabam por ceder.

Comecemos pela afirmação "sem surpresa, os mesmos imbecis que questionam os confinamentos e as vacinas da Covid, que salvaram 19,8 milhões de vidas".

O artigo em causa, de António Araújo, tem uma ligação para a fonte da afirmação de que as vacinas Covid salvaram quase vinte milhões de vida. Embora seja questionável que essa ligação seja feita para um artigo da revista Visão, e não para o artigo original da Lancet, a verdade é que com mais um clique facilmente se chega ao artigo original que, sem surpresa, como tem sido uma constante na informação sobre a Covid, é mais um artigo de modelação matemática com estimativas impossíveis de aferir empiricamente.

O que é pena, porque sendo a estimativa de mortes Covid, até hoje, anda à volta dos seis milhões de mortos, sendo certo que uma percentagem altíssima dessas mortes corresponde a pessoas acima dos 60 anos e com problemas de saúde. Parece-me evidentemente necessário saber como pode a estimativa de mortes evitadas ser três vezes maior que o valor das mortes verificadas (em rigor, a estimativa é de 14 milhões, só sobe para os 19,8 milhões quando se considera que tudo o que é mortalidade excessiva se deve à Covid), quando ainda por cima, durante fases muito agudas da doença, com processos de gestão muito incipientes, como transferir doentes dos hospitais para lares de terceira idade, como foi feito em Itália e nos EUA, pelo menos, não havia vacina nenhuma?

Ou seja, o uso de números tremendistas, com base em modelações matemáticas que toda a gestão da epidemia demonstrou serem muito pouco fiáveis, não é uma opção racional fora da vontade de esmagar quem pensa de maneira diferente.

De resto, é a OCDE que vem, explicitamente, falar dos problemas associados aos efeitos negativos das medidas não farmacêuticas associadas à gestão da Covid como uma das causas do excesso de mortalidade, infelizmente misturando efeitos diretos da doença com efeitos indiretos, isto é, que não resultam da doença, mas das opções que fizemos na sua gestão, exactamente sem ponderar devidamente os efeitos positivos e negativos dessas opções, numa altura em que estávamos completamente cegos pelo medo - absolutamente natural - que resulta da emergência de uma epidemia associada a uma doença desconhecida.

Dois bonecos do relatório da OCDE Health at a glance Europe 2022 ajudam a perceber como é legítimo ter dúvidas sobre os efeitos reais no controlo da epidemia que se obtiveram com base em medidas maximalistas (que agora achamos legítimo contestar na China, quando chegámos a criminalizar o mesmo tipo de contestação por cá).

Sem Título.jpg

Um mapa com um evidente padrao geográfico, mas sem qualquer relação com as diferentes estratégias de contenção da epidemia adoptadas nos diferentes países.

Sem Título 2.jpg

Um gráfico que relaciona (relaciona?) mortalidade covid e excesso de mortalidade, que não permite qualquer relação com as medidas não farmacêuticas tomadas pelos diferentes países, embora, mais uma vez, tenha um evidente padrão geográfico (sim, os suecos foram alterando a sua abordagem da Covid, por pressão pública, mas mesmo sendo o país da Europa com maior esperança de vida, não viram aparecer nenhuma mortalidade excessiva relevante, apesar das previsões catastróficas baseados nos mesmos modelos matemáticos que nos garantem que a vacinação salvou três vezes mais vidas que aquelas que a covid conseguiu abater).

Mais difícil de aceitar é a explícita associação dos que criticam as afirmações igualmente tremendistas de Guterres, sobre alterações climáticas, com os pequenos grupos minoritários anti-vacinas.

Não há nenhuma razão para fazer essa associação a não ser, mais uma vez, liquidar qualquer discussão racional sobre problemas complexos. É verdade que uma boa parte dos grupos anti-vacinação também negam a existência de alterações climáticas, por serem grupos que facilmente adoptam teorias de conspiração. Mas há muito mais gente a criticar afirmações tremendistas de Guterres sem qualquer ligação quer a grupos anti-vacinas, quer mesmo aos que negam a existência de alterações climáticas, quer ainda aos que, não negando alterações climáticas, apenas se recusam a aceitar que só exista um caminho para lidar com o problema e, se não o adoptarmos, vamos todos morrer dentro de oito anos.

António Araújo escreve: "Há um par de meses, um terço do Paquistão ficou submerso pelas cheias, que causaram de imediato 800 vítimas mortais, ... . António Guterres afirmou nunca ter visto uma "carnificina climática" semelhante. ..., alertas que, note-se, são partilhados de forma esmagadora pela comunidade científica".

Há vários problemas nesta afirmação que, mais uma vez, pretende liquidar qualquer discussão racional sobre um assunto muitíssimo complexo.

O menor desses problemas é dizer-se que os alertas de Guterres são partilhados pela esmagadora maioria da comunidade cinetífica, fazendo-se uso de uma evidente falácia: o facto da esmagadora maioria da comunidade científica partilhar a ideia de que estão a ocorrer alterações climáticas influenciadas pelo consumo de combustíveis fósseis não quer dizer que partilhe uma patetice como a que foi dita por António Guterres.

É que a generalidade da comunidade científica que estuda estes assuntos sabe perfeitamente dos 35 mil mortos em 1999 nas cheias da Venezuela, dos dois milhões de mortos em 1959 nas cheias (e fome subsequente) da China, do meio milhão de mortos nas cheias de 1939 na China, dos 3,7 milhões de mortos nas cheias de 1931 na China, para não falar dos 20 mil mortos pela seca na Somália, em 2010, dos 450 mil mortos na Etiópia em 1983, também por secas, dos 1,5 milhões de mortos na Índia pelas mesmas razões, em 1965, para falar de muitos outro mais em tempestados ou ondas de calor (75 mil mortos na onde de calor europeia de 2003, ou 141 mil mortos em Myanmar por causa de um ciclone, em 2008, por exemplo).

A mim parece-me muito pouco provável que quem conheça estes números, e muitos outros, diga que nunca via uma carnificina climática tão grande como a que resultou de uma cheia com menos de mil mortos (sim, é uma tragédia, e tratá-la com respeito, e com respeito pelos mortos e pelas suas famílias, aconselharia a que não se usasse esta tragédia de forma absurda para fazer avançar uma agenda política, por mais justa que seja essa agenda política).

Não se trata de ridicularizar alertas, trata-se sim de ponderar devidamente toda a informação, para que as decisões colectivas não tenham os efeitos brutais negativos das medidas não farmacêuticas para gestão de uma epidemia, sem que os avisos que podem ajudar a tomar melhores decisões sejam desconsiderados como conversas de imbecis.

O facto é que já estamos no ponto em que estamos de relativização da liberdade individual e de baixar a guarda em relação ao potencial abuso do Estado na restrição de liberdades individuais, que aceitamos pacificamente os termos em que se está a desenvolver a discussão sobre a alteração da constituição.

Ter dúvidas sobre esse caminho não me parece uma imbecilidade, eu chamar-lhe-ia prudência "a razão para discernir em todas as circunstâncias o verdadeiro bem e a escolher os justos meios para o atingir. Ela conduz a outras virtudes, indicando-lhes a regra e a medida"


1 comentário

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De anónimo a 08.12.2022 às 17:48

"Too little attention has been paid to the fact that politics lures disordered, Messianic personalities into positions of power”.

— Rees-Mogg & Davidson, The Sovereign Individual

Na verdade "... lure disordered...". " a política (o poder)" "atrai, cativa" "desequilibrados, insensatos"

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