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Ricardo Paes Mamede, um dia destes, escreveu que o Serviço Nacional de Saúde enfrenta uma concorrência desleal, sendo essa uma das razões pelas quais os médicos são empurrados para o privado.
É verdade que diz que essa é apenas uma das três razões para que faltem médicos no SNS (as outras são a sub-orçamentação do SNS e a má gestão, uma curiosa dupla de razões na medida em que a primeira depende, em grande parte, da segunda) mas vou tentar perceber que concorrência desleal é essa.
"Os hospitais privados tendem a focar a sua oferta nas valências mais rentáveis, deixando as restantes para os serviços públicos", diz Ricardo Paes Mamede, repetindo um dos argumentos mais frequentes para criticar a actuação dos serviços de saúde privados.
É naturalmente verdade que os privados se tendem a focar no que é rentável, os poucos privados que se focam no que dá prejuízo, ou vão à falência ou mudam-se para o mercado da paz de espírito, isto é, da filantropia, o que implica que o seu negócio passe a ser o fund-raising, e não a saúde dos seus doentes.
O que raramente se explica é em que medida sobrecarregar os serviços estatais com valências que os privados podem adoptar resolve um único problema para a prestação de cuidados de saúde globais à população.
Tomemos o exemplo da saúde familiar, em que o Estado tem falhado miseravelmente, como é generalizadamente reconhecido.
Em que é que os milhares de subscritores da ADSE, ou de outros seguros, passarem a engrossar as listas de espera dos médicos de família melhorava a prestação do Estado na atribuição de médicos de família?
Seria bom, para essas pessoas, que o Estado não falhasse e o acesso a médicos de família fosse fácil, eu escusava de gastar 3,5% do meu salário com a ADSE, quando já pago o Serviço Nacional de Saúde com os meus impostos.
Se continuo a gastar 3,5% do meu salário com a ADSE é exactamente porque o Serviço Nacional de Saúde não dá a resposta que eu quero (discutir se é boa ou má é irrelevante, o que interessa é o que eu acho sobre isso, para a minha decisão de continuar a entregar 3,5% do meu salário à ADSE).
Para o Serviço Nacional de Saúde é um alívio que milhares de pessoas deixem de pretender aceder aos serviços prestados, portanto uma vantagem, não uma desvantagem.
"[os privados] recrutam especialistas já formados sem terem de suportar os custos da sua formação", queixa-se Paes Mamede.
Este argumento é extraordinário.
Os privados reclamam, há anos, a possibilidade de fazer formação em medicina, quer os privados ligados à educação, quer os privados ligados ao sistema de saúde, o Estado nega-lhes (ou restringe fortemente) essa possibilidade por razões estritamente ideológicas e corporativas, era o que mais faltava que em cima disso os estatistas se queixem de que essa formação é um peso para o Estado e concorrência desleal por parte dos privados.
"[os privados] estão sujeitos a uma regulação mínima no que respeita a preços e actos médicos, o que favorece práticas de sobreprescrição de exames e tratamentos (uma relevante fonte de receitas para o negócio da saúde privada que motiva uma regulação apertada em vários países)".
Independentemente de Paes Mamede não apresentar os dados que demonstram que a sobreprescrição de exames e tratamentos é uma fonte relevante de financiamento da saúde privada, não se percebe em que medida isso corresponde a concorrência desleal em relação aos serviços estatais.
Ricardo Paes Mamede defende que os serviços estatais deveriam ser autorizados a sobreprescrever exames e tratamentos para poder aumentar a sua receita, ou acha que o facto dos privados aumentarem os preços artificialmente aumenta a sua competitividade face aos serviços estatais?
Confesso que não entendo em que medida isto, a existir, é concorrência desleal e beneficia os privados de forma relevante.
O mais extraordinário é o que se segue: "Todas estas vantagens [de financiamento mais fácil e barato por parte dos privados em relação ao Estado, de melhor gestão e de concorrência desleal] se traduzem em recursos financeiros acrescidos para a saúde privada, que permitem às empresas em causa oferecerem soluções tecnológicas, salários e condições de trabalho mais actractivos para os profissionais, com as quais o SNS não consegue competir".
Tive de ler várias vezes o parágrafo para ter a certeza de que o que está escrito era mesmo o que eu estava a ler.
O que Paes Mamede diz é que ir ao mercado buscar financiamento é mais fácil e barato que poder impor impostos, que a gestão dos privados é melhor que a gestão do Estado e que o Estado, que estabelece as regras, cria situações de concorrência desleal contra si próprio, do que resultam melhores condições de trabalho e melhores salários para os trabalhadores, o que é uma pena.
Mas uma pena para quem, Ricardo?
Para os trabalhadores, que têm melhores condições de trabalho e melhores salários?
Para os utilizadores dos serviços de saúde privados que os preferem aos que o Estado disponibiliza? Como toda a gente tem direito a serviços de saúde do Estado e mesmo assim metade da população prefere pagar a privados para obter esses serviços, só o facto das pessoas os preferirem é que pode explicar a situação, ninguém é obrigado a ir um operador privado de saúde.
Para o Serviço Nacional de Saúde que se liberta de milhões de actos médicos, sem que daí resulte qualquer diminuição do financiamento que lhe é atribuído, que pode ser concentrado naquilo que os privados não estão interessados?
Não consigo perceber como depois das conclusões que Ricardo Paes Mamede consegue escrever ainda se mantém um sólido estatista, em vez de engrossar as fileiras liberais.
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