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Concorrência desleal, diz ele

por henrique pereira dos santos, em 05.12.23

Ricardo Paes Mamede, um dia destes, escreveu que o Serviço Nacional de Saúde enfrenta uma concorrência desleal, sendo essa uma das razões pelas quais os médicos são empurrados para o privado.

É verdade que diz que essa é apenas uma das três razões para que faltem médicos no SNS (as outras são a sub-orçamentação do SNS e a má gestão, uma curiosa dupla de razões na medida em que a primeira depende, em grande parte, da segunda) mas vou tentar perceber que concorrência desleal é essa.

"Os hospitais privados tendem a focar a sua oferta nas valências mais rentáveis, deixando as restantes para os serviços públicos", diz Ricardo Paes Mamede, repetindo um dos argumentos mais frequentes para criticar a actuação dos serviços de saúde privados.

É naturalmente verdade que os privados se tendem a focar no que é rentável, os poucos privados que se focam no que dá prejuízo, ou vão à falência ou mudam-se para o mercado da paz de espírito, isto é, da filantropia, o que implica que o seu negócio passe a ser o fund-raising, e não a saúde dos seus doentes.

O que raramente se explica é em que medida sobrecarregar os serviços estatais com valências que os privados podem adoptar resolve um único problema para a prestação de cuidados de saúde globais à população.

Tomemos o exemplo da saúde familiar, em que o Estado tem falhado miseravelmente, como é generalizadamente reconhecido.

Em que é que os milhares de subscritores da ADSE, ou de outros seguros, passarem a engrossar as listas de espera dos médicos de família melhorava a prestação do Estado na atribuição de médicos de família?

Seria bom, para essas pessoas, que o Estado não falhasse e o acesso a médicos de família fosse fácil, eu escusava de gastar 3,5% do meu salário com a ADSE, quando já pago o Serviço Nacional de Saúde com os meus impostos.

Se continuo a gastar 3,5% do meu salário com a ADSE é exactamente porque o Serviço Nacional de Saúde não dá a resposta que eu quero (discutir se é boa ou má é irrelevante, o que interessa é o que eu acho sobre isso, para a minha decisão de continuar a entregar 3,5% do meu salário à ADSE).

Para o Serviço Nacional de Saúde é um alívio que milhares de pessoas deixem de pretender aceder aos serviços prestados, portanto uma vantagem, não uma desvantagem.

"[os privados] recrutam especialistas já formados sem terem de suportar os custos da sua formação", queixa-se Paes Mamede.

Este argumento é extraordinário.

Os privados reclamam, há anos, a possibilidade de fazer formação em medicina, quer os privados ligados à educação, quer os privados ligados ao sistema de saúde, o Estado nega-lhes (ou restringe fortemente) essa possibilidade por razões estritamente ideológicas e corporativas, era o que mais faltava que em cima disso os estatistas se queixem de que essa formação é um peso para o Estado e concorrência desleal por parte dos privados.

"[os privados] estão sujeitos a uma regulação mínima no que respeita a preços e actos médicos, o que favorece práticas de sobreprescrição de exames e tratamentos (uma relevante fonte de receitas para o negócio da saúde privada que motiva uma regulação apertada em vários países)".

Independentemente de Paes Mamede não apresentar os dados que demonstram que a sobreprescrição de exames e tratamentos é uma fonte relevante de financiamento da saúde privada, não se percebe em que medida isso corresponde a concorrência desleal em relação aos serviços estatais.

Ricardo Paes Mamede defende que os serviços estatais deveriam ser autorizados a sobreprescrever exames e tratamentos para poder aumentar a sua receita, ou acha que o facto dos privados aumentarem os preços artificialmente aumenta a sua competitividade face aos serviços estatais?

Confesso que não entendo em que medida isto, a existir, é concorrência desleal e beneficia os privados de forma relevante.

O mais extraordinário é o que se segue: "Todas estas vantagens [de financiamento mais fácil e barato por parte dos privados em relação ao Estado, de melhor gestão e de concorrência desleal] se traduzem em recursos financeiros acrescidos para a saúde privada, que permitem às empresas em causa oferecerem soluções tecnológicas, salários e condições de trabalho mais actractivos para os profissionais, com as quais o SNS não consegue competir".

Tive de ler várias vezes o parágrafo para ter a certeza de que o que está escrito era mesmo o que eu estava a ler.

O que Paes Mamede diz é que ir ao mercado buscar financiamento é mais fácil e barato que poder impor impostos, que a gestão dos privados é melhor que a gestão do Estado e que o Estado, que estabelece as regras, cria situações de concorrência desleal contra si próprio, do que resultam melhores condições de trabalho e melhores salários para os trabalhadores, o que é uma pena.

Mas uma pena para quem, Ricardo?

Para os trabalhadores, que têm melhores condições de trabalho e melhores salários?

Para os utilizadores dos serviços de saúde privados que os preferem aos que o Estado disponibiliza? Como toda a gente tem direito a serviços de saúde do Estado e mesmo assim metade da população prefere pagar a privados para obter esses serviços, só o facto das pessoas os preferirem é que pode explicar a situação, ninguém é obrigado a ir um operador privado de saúde.

Para o Serviço Nacional de Saúde que se liberta de milhões de actos médicos, sem que daí resulte qualquer diminuição do financiamento que lhe é atribuído, que pode ser concentrado naquilo que os privados não estão interessados?

Não consigo perceber como depois das conclusões que Ricardo Paes Mamede consegue escrever ainda se mantém um sólido estatista, em vez de engrossar as fileiras liberais.


21 comentários

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De Elvimonte a 07.12.2023 às 17:55

O essencial é podermos estabelecer comparações entre sistemas de saúde de vários países. E isso apenas pode ser feito com base em números de onde se podem inferir conclusões que possam fundamentar as discussões, elevando-as para além do mero esgrimir de argumentos e motivações ideológicas. Sem análise comparativa fundada na realidade das estatísticas, o alcance das discussões é forçosamente limitado, quando não mesmo estéril.


Penso ser do conhecimento geral, tal como afirma, que boa parte da população dos EUA não tem acesso a cuidados de saúde e para uma parte ainda maior esse acesso é limitado pela cobertura que os seguros de saúde fornecem. Na lógica liberal que tem vindo a defender, onde tudo se compra e tudo se vende, sendo a saúde apenas um negócio com clientes e fornecedores de serviços, nada disso deve constituir um óbice, não se percebendo porque qualifica o problema como grave ("deixando 18% da população com graves problemas de acesso a cuidados de saúde"). Já questionar-se sobre as causas do problema, percebe-se que não o faça.


No restante, a sua resposta, que agradeço, enferma dos mesmos vícios a que aludi anteriormente, primando pela ausência de análise comparativa fundada em estatísticas que permitam consubstanciar o que se afirma. Muita parra e pouca uva.



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De henrique pereira dos santos a 07.12.2023 às 18:21


É muito cansativa essa sua técnica de não discutir.
Se tem dúvidas sobre o que escrevi, informe-se, é simples pôr no google uma pergunta sobre pagamento dos trabalhadores de saúde por país e verificar se eu tenho razão ou não em dizer que os trabalhadores de saúde americanos são mais bem pagos que noutro lado qualquer.
Por exemplo, pode ler esta síntese:
"This analysis of the US health system reviews the developments in organization and governance, health financing, healthcare provision, health reforms and health system performance. The US health system has both considerable strengths and notable weaknesses. It has a large and well-trained health workforce and a wide range of high-quality medical specialists, as well as secondary and tertiary institutions, a robust health sector research programme and, for selected services, among the best medical outcomes in the world. But it also suffers from incomplete coverage of its citizenry, health expenditure levels per person far exceeding all other countries, poor measures on many objective and subjective measures of quality and outcomes, and an unequal distribution of resources and outcomes across the country and among different population groups. It is difficult to determine the extent to which deficiencies are health-system related, though it is clear that at least some of the problems are a result of poor access to care. The adoption of the Affordable Care Act in 2010 resulted in greatly improved coverage through subsidies for the uninsured to purchase private insurance, expanded eligibility for Medicaid (in some states), and greater protection for insured persons. Furthermore, primary care and public health received increased funding, and quality and expenditures were addressed through a range of measures such as financial rewards for providing higher-value care. At the same time, a change in political administration resulted in subsequent efforts to scale back the legislation. Many key issues remain, including further reducing the number of uninsured people, alleviating some of the burdensome patient costsharing requirements, and considering some new cost-containment methods such as allowing the government to negotiate drug prices with pharmaceutical manufacturers. The direction of future health policy will almost certainly depend on which political party is in power."
Tem dúvidas? Vai ler as 479 páginas do relatório de onde as tirei, não me pede a mim que faça posts de um blog, e muito menos comentários, como se tivesse de fazer um tese de doutoramento à volta de cada assunto.
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De Elvimonte a 08.12.2023 às 23:20

Não se trata de "técnica de não discutir". Sem dados objectivos discute-se o quê? Afirmações que carecem de demonstração, tal como muitas das suas e das que figuram no excerto do relatório que apresenta? 


A exigência de rigor, de estar tanto quanto possível próximo da realidade sem peias ideológicas, esbarra na ausência de dados, de estatísticas comparativas, sem as quais uma discussão séria se torna impossível. 


E não são necessárias teses de doutoramento: com apenas três links de gráficos e um pouco mais de parágrafos, em comentário anterior tracei um quadro fundamentado do sistema de saúde dos EUA, comparativamente a outros países. É um quadro completo? Não, mas pelo menos não carece de demonstração.

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