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"Estamos completamente organizados com o promotor, há meses, há um ano e tal, em que eles têm sete módulos, desses estão a construir dois, foram isentados de avaliação de impacte ambiental. Já está resolvido, percebes? Há um compromisso do promotor que depois fará uma avaliação de impacte ambiental para o resto da coisa (...), portanto está tudo feito, tudo tranquilo".
...
"Aquilo tem lá umas espécies e uns habitats prioritários."
...
"E tu não consegues fazer uma espécie de compensação ali perto?"
...
"Aquela merda é quase intocável, tás a ver? Vou ter de dar um parecer desfavorável".
Isto é uma conversa que está nos jornais entre dois directores gerais da administração pública que conheço muito bem, Nuno Lacasta, o que fala primeiro e que conheço há anos, e Nuno Banza, o das falas intercaladas, de quem sou amigo e que é o meu actual superior hierárquico.
O facto de ser amigo de Nuno Banza, e de ele ser o meu superior hierárquico, nunca me impediu de dizer o que penso, em privado, quando se trata de assuntos com que contacto em consequência da minha actividade de funcionário público, em público quando me parece relevante e não há nada que eu diga ou escreva que não resulte de informações que são públicas, não havendo assim qualquer violação do meu estatuto de funcionário tal como definido na lei, que é um estatuto bem diferente do que está na cabeça da esmagadora maioria de funcionários e decisores.
Devo dizer que se tive problemas com muitos superiores hierárquicos e decisores políticos por usar da minha liberdade de expressão liberalmente, apoiando-me na lei, esse não é seguramente o caso de Nuno Banza com quem nunca tive nenhum problema desse tipo, quer o meu presidente concordasse ou não com o que eu tivesse dito ou escrito. E não me parece que seja por eu ser seu amigo, estou convencido de que é mesmo convicção.
Sendo essa atitude rara nos altos dirigentes da administração pública (já volto aos custos sociais que resultam da estúpida cultura de controlo da liberdade dos funcionários que é esmagadoramente dominante), aproveito este post para a pôr em destaque.
Voltando às citações com que começo o post, remeto para um artigo que escrevi em 5 de Novembro de 2019, sobre um parecer favorável ao aeroporto no Montijo, com base na definição de medidas compensatórias, em que tento explicar, sucintamente, que o licenciamento ambiental, de acordo com a lei, não pode ser confundido com "uma descrição eufemística de uma parte dos processos de decisão pública que na verdade são pouco mais que “venda de licença”, justificada com fracas alegações de conservação do património natural".
As citações com que começo o post correspondem bem à ilustração do que é a posição dominante nos meios políticos (do PS, seguramente, mas também dos outros partidos, das ONGs, dos altos quadros da administração e dos jornalistas), verbalizada por Nuno Lacasta, e a posição de quem conhece os limites da lei, mas também tem consciência dos custos pessoais e profissionais de simplesmente responder o que seria normal responder: a lei é esta, o procedimento é este, dentros dos limites estabelecidos, podemos discutir o que se quiser.
Se o Ministério Público pusesse todos os directores gerais da administração pública sob escuta, o número de conversas de teor semelhante a esta que encontraria faria com que engavetasse pelo menos metade da alta administração pública.
E não, esse não é um problema do Estado, esse é um problema da sociedade, por exemplo, o Observador faz uma peça extraordinária (eu acho a peça bem ordinária, mas isso são as idiossincrasias da língua) sobre a avaliação de impacte ambiental do centro de dados, em que acha normal não ouvir ninguém que alguma vez tenha trabalhado no assunto, ouvindo Francisco Ferreira (que nunca tomou nenhuma decisão na vida sobre o que quer que seja de um processo de AIA, tanto quanto sei, a não ser que o tenha feito no breve tempo em que foi funcionário ou colaborador da Reserva Natural do Estuário do Sado, no século passado, se não me falha a memória que reconheço que não é grande coisa), ouvem a LPN, ouvem mais uns quantos ambientalistas, mas ninguém, ninguém, que saiba alguma coisa a partir de "honesto estudo com longa experiência misturado".
É por isso que Nuno Banza fala numa coisa quase intocável e Galamba, noutra escuta, diga um disparate jurídico monumental "O ano passado aquilo foi classificado como zona especial de conservação que proíbe a construção, proíbe!... E portanto aquilo inviabiliza o Startup de Sines".
Note-se que nem o facto de isto ser um disparate jurídico completo, impede que seja a visão dominante da questão, quer do lado de quem quer fazer os projectos, quer do lado de quem os quer chumbar "“À partida, esta ocupação seria proibida numa ZEC. É discutível se pode ser dispensada [a AIA] ou não. Teria de ser averiguado. Mas é uma ocupação de território. É como se fosse um centro comercial, uma situação semelhante à do Freeport”, aponta o ambientalista [Francisco Ferreira, neste caso, mas podia ser qualquer um dos 99% de ambientalistas que existem em Portugal, a dizer isto]".
Como explicam os manuais de aplicação do artigo 6º da directiva habitats, as coisas não são assim e são bastante claras, embora deva haver uma dúzia de pessoas no país que tenham isto claro na sua cabeça, de tal forma é esmagadoramente dominante a visão que citei acima, largamente adubada pelo medo (mais que justificado, posso garantir com a minha experiência) de funcionários e dirigentes serem prejudicados por responderem a soliticitações ilegítimas com a resposta mais simples: essa solicitação é ilegítima, portanto não lhe vou dar seguimento.
Quando um projecto ou acção tem impactos potenciais negativos sobre os valores protegidos pela directiva habitats (note-se que, como raramente sucede em diplomas legais, não é a um facto que aplica a norma, mas à mera possibilidade de materialização desse facto, o que baralha inúmeros juristas que pela primeira vez se debruçam sobre o diploma para tentar responder aos pedidos que lhes são feitos), seja o projecto ou acção localizada dentro ou fora das áreas classificadas (o segundo aspecto que baralha muito gente, considerando que estar dentro ou fora das áreas classificadas é relevante para aplicação da norma, ao contrário do que diz a lei), é necessária uma análise de incidências ambientais (terceiro aspecto que baralha os que se confrontam com esta legislação e conhecem mal a avaliação de impacte ambiental, pensando que a única forma de fazer uma avaliação de incidências ambientais é através dos processos de avaliação de impacte ambiental).
No fim desse processo de avaliação, pode concluir-se que o projecto ou acção tem impacte relevante sobre um qualquer valor protegido (quarto aspecto que baralha muita gente, não basta que tenha impacte, é preciso que o impacte seja relevante, ou seja, por exemplo, no caso do centro de dados, não basta que o projecto afecte um ou quatro charcos temporários, é preciso que a afectação desses um ou quatro charcos temporários seja relevante para a conservação desse habitat, existindo mais de uma centena de charcos cartografados, em diferentes condições de conservação).
Se o projecto tem impacte relevante sobre um valor protegido (neste ponto é irrelevante se o valor é prioritário ou não), o projecto não deve ser autorizado.
Ao contrário do que disse ontem António Costa, não é preciso o governo para conciliar os diferentes interesses públicos que possa haver, porque a legislação reconhece o potencial conflito de outros interesses públicos com o interesse da conservação, definindo de que forma devem ser ponderados.
É a forma como o Governo trata os funcionários públicos, que são funcionários do Estado e não do Governo, que devem fidelidade a lei, mas ao Governo apenas lealdade, que faz com que os Governos acabem envolvidos na resolução de problemas que não compete ao governo resolver. Tivessem os governos mais respeito, e mais exigência, em relação à administração pública, e o país funcionaria muito melhor, com muito menos riscos que acontecer ao primeiro-ministro o que aconteceu esta semana a António Costa.
O Governo só é chamado a definir o interesse público (para o que não precisa de andar com conversetas de treta com este e aquele, basta-lhe formalizar essa decisão com uma declaração formal do reconhecimento desse interesse) e, nessas circunstâncias, o projecto pode ser executado, com algumas limitações.
O Governo tem de fundamentar esse interesse, naturalmente (caramba! não há aqui nada de relevante, o Código do Procedimento Administrativo diz que a ausência de fundamentação de qualquer decisão da administração a torna nula ou anulável, depende dos casos, mas o certo é que fundamentar as decisões do Estado é das mais triviais obrigações do Estado) e pode fundamentá-lo em razões sócio-económicas (aqui é o único ponto em que é relevante o valor em causa ser prioritário, visto que nessas circunstâncias apenas pode fundamentar a decisão em razões ambientais, de segurança ou saúde, mas não em razões sócio-económicas).
E tem de demonstrar que não existem alternativas ao projecto (sejam de localização, sejam de outro tipo) que permitam alcançar o tal interesse público sem afectação dos valores em causa.
Só neste ponto, quando foi identificado o impacte, quando foi demonstrada a ausência de alternativas e quando foi declarado o interesse público do projecto é que entram as questões de compensação, isto é, a compensação não é a forma de obter uma licença que deveria ser negada, a compensação visa repôr os valores afectados por projectos que não têm alternativa e perseguem outros interesses públicos.
Tudo isto é claro e transparente e portanto as trapalhadas de andar a mudar limites de áreas classificadas, processo complexo que envolve a comissão europeia e que precisa de ser muito bem fundamentado tecnicamente, são a forma menos eficiente de perseguir o interesse público do projecto, até porque estar fora de uma área classificada não evita todo o processo de decisão atrás descrito.
Diga-se que durante os anos em que todos os processos de AIA em que o ICNF participava me passavam pelas mãos, nunca foram os promotores privados o problema (a única pessoa que explicitamente me ameaçou de se ir queixar a um membro do governo por não apoiar um projecto, foi um dirigente de uma ONG, não foi o operador privado normal, esses podem ter-me oferecido garrafões de azeite, folhas de bacalhau e muitas outras coisas, como uma viagem expresso para o outro mundo, mas nunca me ameaçaram de que me prejudicar profissionalmente fazendo queixas a membros do governo), foram sempre membros do governo, ou altos quadros da administração em representação dos interesses dos membros do governo, sistematicamente porque entendiam que os limites da lei não se aplicavam naquele caso concreto.
Quando Jorge Coelho inaugurou um troço da A2 com um discurso dizendo que queria ver se alguém ia levantar o alcatrão, sabendo que o que tinha feito era amarrar o traçado da auto-estrada a pontos que iriam criar problemas nos troços seguintes, em que o direito comunitário era relevante, estava a materializar a teoria da intervenção do Governo que ontem António Costa enunciou: o Governo existe para encontrar maneiras de contornar a lei e resolver as disfunções da administração pública nos projectos em que o Governo decide empenhar-se. O corolário é o de que para os outros, o sistema serve, mas para alguns, o sistema precisa de ser moldado para permitir que o interesse público se materialize.
Quando o mesmo Jorge Coelho usou a mesma técnica com a A7, acabando por provocar atrasos brutais e sobrecustos para os contribuintes em concessões de estradas feitas com traçados que foram chumbados obrigando a alterações em relação ao que estava contratado, como o famoso viaduto de Vila Pouca de Aguiar, o princípio era o mesmo.
Quando Sócrates interveio no Freeport (e em muitos outros processos, de lixeiras a gasodutos, incluindo vários projectos turísticos de privados), a cultura governativa era a mesma: a função do governo não é criar sistemas eficientes de decisão cujas regras são conhecidas de todos e aplicadas a todos, o governo existe para resolver o que é mesmo importante para o país, mesmo que para isso seja preciso andar à procura de soluções malandras para contornar a lei.
E, frequentemente, quando os projectos eram contestados por ONGs, nunca um governante se levantou para defender o trabalho dos funcionários: ou ignoraram os funcionários arranjando alguém para escrever o que os funcionários não queriam escrever, ou alinhavam com os contestatários, quando era politicamente mais rentável chumbar o projecto, desqualificando os processos de avaliação e o trabalho dos funcionários.
Não é António Costa, é a cultura do "diga a constituição o que disser" a propósito da epidemia de Covid, que António Costa voltou ontem a deixar clara.
É uma cultura anterior a António Costa e que lhe sobreviverá, porque essa cultura corresponde a uma sociedade que não reconhece os benefícios da existência de instituições sólidas, preferindo o jeitinho que resolve o problema, achando até graça à malandrice inventada para o permitir sem ir imediatamente preso.
Não é o PS, não são os governos, somos nós, são as ONGs que funcionam assim, são os jornalistas que funcionam assim, é a sociedade no seu todo que não está interessado no reforço institucional.
Quando resolvi protestar, com facto concretos, com o facto de João Bilhim mentir descaradamente numa audição parlamentar, mandando mails para todos os grupos parlamentares e todos os deputados, de todos os partidos, que consegui indentificar nessa audição, ninguém, rigorosamente ninguém, achou relevante sancionar a mentira perante o parlamento, fazendo que quer que seja para ter a certeza de que não havia altos funcionários do Estado a mentir ao parlamento quando têm de lhes prestar contas.
A aura de "melhor político da sua geração" que tem António Costa é extraordinária, porque ninguém consegue identificar nada de relevante que tenha feito pelo país, mas na realidade explica-se com facilidade.
A estrela política de António Costa brilha como brilha (o tempo verbal é mesmo o que quero usar, desenganem-se os que pensam que António Costa está politicamente acabado, se nem Sócrates está, muito menos estará António Costa) porque numa sociedade medíocre como a que temos, é muito compensador ser o que é António Costa: um génio da mediocridade.
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