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Já não me lembro quem me falou sobre uma conversa entre o padre João Seabra e uma rapariga que pretendia ir para freira, numa ordem de clausura, sem contacto com o mundo.
João Seabra ter-lhe-á dito que pensasse bem na decisão, porque era uma decisão que exigia uma coragem e uma fé de dimensões tremendas, na medida em que dedicar totalmente a vida a um chamamento religioso em si, sem relação com o mundo, significava uma confiança sem limites na existência de Deus: se Deus não existir, um missionário pode sempre considerar que a sua vida valeu a pena pelo que ajudou os outros, um religioso que dedicou a sua vida aos mais pobres pode sempre considerar que mesmo que se tenha enganado, e Deus não exista, valeu a pena dedicar a vida a amenizar o sofrimento dos outros, mas uma religiosa que se dedica inteira e exclusivamente ao seu Deus, terá inteiramente desperdiçado a sua vida, se esse Deus não existir.
Note-se que nada do que escrevi compromete ninguém, é uma memória que tenho e nem eu confio na minha memória, mas a história, independentemente de tudo o resto, interessa-me na forma desta memória, tenham sido as coisas exactamente assim, ou não.
Interessa-me porque estou no lado oposto da religiosa (sim, manteve a sua opção de professar numa ordem de clausura e sem contacto com o mundo), o que é natural sendo agnóstico: independentemente das questões religiosas, tenho imenso respeito pelas pessoas que se dedicam totalmente aos outros, fazendo coisas concretas.
Por isso - também porque se houvesse alguma terra a que chamasse minha seria Moçambique, ainda também porque conheço a situação em concreto (quando passei por Nampula em trânsito não fui a esta missão, mas conheço quem o tenha feito) e, sobre isto, ainda porque algumas instituições das igrejas são os canais mais sólidos para fazer chegar recursos a quem deles precisa, com o mínimo de consumo pelo meio - há uns anos que gasto meia dúzia de tostões a ser padrinho de alunos da "Comunidade das irmãs de São João Baptista em Moçambique", através da irmã Assunção.
De tempos em tempos, vou recebendo notícias dos meus afilhados que, na verdade, não conheço (um deles, quando tem novidades que acha relevantes, manda-me um whatsapp, trata-se de um adulto com formação mais avançada e mais perto da autonomia total).
Ser padrinho ou madrinha de uma criança corresponde a um donativo anual de 70 a 100 euros, que paga alimentação, escola, vestuário para que possa estudar (há outras maneiras de ajudar).
Quem quiser saber mais pormenores, que mande um mail para voluntariosmissionarios.sjb@gmail.com
"Quanto à escola que estamos a construir ... Quatro salas estão prontas... Estamos a pensar abrir no [início do] próximo ano lectivo, em Fevereiro de 2024, mas ainda falta muita coisa. ... Pensamos dividir uma das salas em quatro, para funcionar aí a secretaria, sala de professores, gabinete do director e sector pedagógico, enquanto não conseguirmos construir mais. Estamos também a fazer latrinas fora, para remediar a falta de casas de banho, e estamos a tentar fazer um furo para conseguir água em quantidade, porque a água da rede falha muito ... Mesmo sem as condições ideais, o Estado vai aprovar a abertura da escola, pois a falta de escolas é enorme e já há turmas a funcionar com 250 alunos!".
Isto é um extracto de uma das cartas regulares com informação sobre o que se vai passando, e é coerente com a informação que me chegou das pessoas que passaram por Nampula para visitar as irmãs que lá estão.
Há alturas em que quando olho à volta e escrevo sobre isto ou aquilo, criticando esta ou aquela opção de afectação de recursos públicos ou privados, lembro-me destes cem euros anuais (apenas quatro vezes mais que a quota anual da Montis, que se dedica a fazer conservação em Portugal) e do que podem significar na vida de uma pessoa concreta, não significando quase nada no conjunto de recursos que gasto anualmente.
Como dizia no princípio, sim, com certeza há uma dimensão religiosa que muita gente repudia nesta escola e em toda a acção das freiras que estão por trás dessa acção concreta de apoio aos mais pobres em Nampula mas, caramba, eu confio no discernimento das pessoas à medida que crescem, confio na sua capacidade de fazer escolhas para a sua vida e estou verdadeiramente convencido de que, se estudarem, a quantidade de escolhas que podem fazer é muito maior que se não estudarem.
Vale mesmo a pena a embirração com essa dimensão religiosa perante o que significa poder estudar, ou não, quando as condições de partida de cada um destes miúdos é a que é?
Sim, o que é preciso é fazer a revolução, mudar as estruturas de opressão e essas coisas todas, mas convém lembrar que para fazer a revolução são precisos pelo menos dez dias, mas para ter fome basta não comer durante umas horas.
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