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Algures pelo fim dos anos 50, em Paris, uma mulher fica grávida.
O homem com quem tem uma relação amorosa intensa pressiona-a fortemente para faça um aborto, a mulher não quer abortar, e as tensões daí resultantes põem seriamente em risco a relação entre os dois, havendo uma séria possibilidade de que a mulher deixe o homem.
É por serem estas as circunstâncias que Jacques Brel diria mais tarde que "Ne me quitte pas" não era uma canção sobre o amor mas sobre a cobardia de um homem.
Quem ouça hoje as discussões sobre o enquadramento legal do aborto estranha a situação descrita.
O aborto sempre existiu e sempre existirá, independentemente do que diga a lei.
Durante muitos anos havia um largo consenso social na classificação do aborto como qualquer coisa negativa em si mesma, e os defensores da descriminalização do aborto centravam o grosso dos seus argumentos nos problemas sociais do aborto clandestino, socialmente muito desiguais, quase unanimemente reconhecidos pelos defensores de um ou de outro enquadramento legal.
A discussão parece hoje estar diferente e opõe duas morais irredutíveis e irreconciliáveis, o que torna tudo socialmente mais difícil.
De um lado, a moral que considera que a vida começa no momento da concepção e, consequentemente, um aborto é um homicídio que deve ser tratado como tal (estou a simplificar, não me macem com as complexidades na formulação deste ponto de vista, que eu sei que existem).
Do outro, a moral que considera que não há vida autónoma antes do nascimento e que, até lá, é tudo corpo da mulher, da sua inteira responsabilidade e em que mais ninguém tem de ter opiniões sobre o assunto (estou a simplificar, não me macem com as complexidades deste ponto de vista, que eu sei que existem).
Vou saltar por cima das situações limite - a miúda que é repetidamente violada pelo pai, o tio, o amigo lá de casa e acaba por engravidar - e dos cenários hipotéticos - quantos processos de paternidade podem ser perdidos por mulheres com o argumento de que o nascimento de uma criança é uma opção exclusiva da mulher, desde que engravida até que a criança nasça - para não sair do que me interessa: o que deve a sociedade fazer perante estas morais irredutíveis e irreconciliáveis e como deve ser o máximo consenso moral possível codificado na lei?
Para os defensores mais radicais - no sentido de ir à raíz - destas duas morais, a solução passa pela lei impôr a todos a sua moral, que consideram indiscutível (direitos humanos, dizem os dois lados, falando de direitos diferentes que se chocam nesta matéria).
Por mim, isto é cavar trincheiras, é fomentar sociedades mais polarizadas, como agora se diz e vou tentar argumentar que há caminho a fazer, se se partir do princípio de que a base pode não ser a moral de cada um tornada universal, mas o respeito pela moral do outro, por maior que sejam as diferenças.
Um mulher pobre, pouco qualificada, com características pessoais comuns, digamos, cabo-verdeana, foge da sua condição miserável, entrando ilegalmente em Portugal e sujeitando-se a todo o tipo de trabalhos que considera compatíveis com a sua dignidade e que lhe permitam resolver as suas necessidades.
Algures, num momento qualquer, engravida.
Não tem recursos, a família está longe, vai perder o seu trabalho e, eventualmente, o direito de residência e trabalho em Portugal, que conseguiu ao fim de alguns anos a fugir das autoridades, se decidir voltar para a sua terra e família, provavelmente para a miséria de que fugiu.
Não me interessa discutir qual é o seu dever moral face à gravidez, nem me interessa muito discutir a sua responsabilidade sobre a situação, o que me interessa é que, pesando tudo, a mulher decide fazer um aborto, independentemente do que esteja escrito na lei.
A pergunta que me interessa é se devemos, como sociedade, considerar criminosa esta mulher e, sobre as dificuldades que já tinha na vida, lançar o sistema penal sobre ela.
Mesmo que partilhasse a moral que considera que a vida começa no momento da concepção, mesmo que considerasse a responsabilidade da mulher na criação da situação em que se viu envolvida, penso que eu não conseguiria condenar uma mulher "em estado de necessidade", tal como aliás acontece em relação aos homicídios, em que o tribunal pesa todas as circunstâncias antes de definir uma pena e ainda existem indultos para casos excepcionais, para não falar da guerra, que aceitamos apesar de ser uma evidente violação do direito à vida para milhares de pessoas.
O mais que me vem à cabeça é o "vai, e não tornes a pecar" bíblico, por mais agnóstico que eu seja, como sou.
Eu sei que definir "estado de necessidade" será sempre difícil e complicado, podendo envolver uma publicitação de circunstâncias num assunto de evidente delicadeza, mas manter esta espécie de guerra civil embrionária entre duas morais - que não se manifestam apenas neste assunto, embora eu reconheça a singular complexidade moral que decorre da discussão de direitos de entidades autónomas, o feto e a mãe (vamos fingir que os pais não são para aqui chamados, aceitando como generalizada a sua cobardia nesta matéria, de que falei acima) - não me parece menos complicado e parece-me muito menos útil.
A mim, um radical de centro em muitas matérias, parece-me que quanto mais a lei se focar no problema social real que se pretende que a lei ajude a resolver, e menos nas morais antagónicas que lhes estão associadas, mais probabilidades temos de ter sociedades melhores para vivermos.
Não sou jurista, mas tenho a intuição de que a lei é, sobretudo, codificação de opções morais (e matemática, acrescentam juristas encartados).
No entanto, quanto mais moralmente enxuta for a lei, procurando os grandes consensos morais e o maior respeito possível pelas diferenças morais de cada um, menos trincheiras estaremos a cavar e mais espaço fica para o chão comum de que precisamos para ter comunidades em que nos reconhecemos.
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