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Carta de um velho funcionário a um novo ministro

por henrique pereira dos santos, em 05.06.25

Caro Gonçalo Matias (não tendo, ainda, tomado posse, acho que posso dirigir-me a si nestes termos),

De mim não pode esperar nada, nem de bom, nem de mau, porque vou usar a minha idade e os meus 44 anos de serviço para me reformar dentro de pouco tempo, o que quer dizer que não tenho grande esperança de que a sua acção tenha qualquer efeito relevante nos próximos tempos.

Esta minha desesperança, felizmente, muito longe do desespero de outros menos privilegiados que eu, não tem nenhuma relação consigo, mas com o contexto em que lhe calhou em sorte ser ministro.

Eu sei, se não soubesse o jornalismo tem repetidamente insistido nesse ponto, que tem todas as qualificações formais para o cargo de que vai tomar posse, mas também sei, por "honesto estudo com longa experiência misturado", que não tem conta o número de pessoas qualificadas, bem intencionadas, bem avontadadas, que o precederam nessa tarefa de introduzir um mínimo de racionalidade na gestão da coisa pública, alguns tomaram mesmo medidas politicamente corajosas, mas sem que daí tenha resultado grande benefício para a sociedade.

Talvez consiga explicar-lhe o que pretendo lembrando três questões: 1) a escolha de dirigentes; 2) a avaliação de funcionários; 3) as regras de contratação pública.

A escolha de dirigentes entrou no debate público no tempo do cavaquismo, e Guterres prometeu solenemente, durante a campanha eleitoral, que iria alterar profundamente as regras, obrigando à existência de concursos públicos para acabar com a partidarização e governamentalização da administração pública.

Por acaso, nessa alteração do cavaquismo para o guterrismo, uma amiga e colega minha, inegavelmente independente de espírito e com o mais profundo sentido de serviço público, foi nomeada presidente do Instituto de que eu era funcionáro há bastantes anos.

Académica, com clara consciência dos limites da experiência académica para a gestão de orgãos da administração pública, caiu na asneira de me convidar para seu vice-presidente, sabendo que eu conhecia profundamente o sector em causa e o instituto a que ia presidir.

Uma das primeiras coisas que tentámos foi, exactamente, fazer a escolha de dirigentes por concurso público, tal como Guterres tinha prometido e a lei permitia (embora como método complementar de escolha).

Fomos impedidos pelo então governo, sim, era verdade que isso tinha sido prometido na campanha eleitoral, mas era para ser bem feito, e não ad-hoc, era preciso definir regras à prova de bala, consultar os sindicatos, desenhar um modelo de concurso inteiramente igualitário e, depois, nessa altura, fazer concursos completamente imunes ao favorecimento.

A ideia central era a de que os dirigentes de topo, incluindo os membros do governo, eram todos venais e, consequentemente, só um processo totalmente blindado face à discricionariedade poderia valer.

Depois de longas negociações com os sindicatos, que estão sempre, sempre, sempre, do lado da mediocridade porque não aceitam a desigualdade resultante do facto de uns serem melhores que outros, o processo de concursos teve início e, ainda hoje, uns bons quase trinta anos depois, a estúpida ideia de blindar previamente processos de decisão face a qualquer eventualidade de discricionariedade prevalece, dando origem, como seria inevitável, ao completo descrédito do sistema de escolha de dirigentes da administração pública, com resultados deprimentes que toda a gente conhece.

Passo agora à segunda questão (como todas elas são estruturalmente semelhantes, vou procurar ser mais sintético nestas duas), a da avaliação dos funcionários.

Havia um sistema de avaliação dos funcionários muito velhinho (tão velhinho que sempre ouvi falar da história da reclamação do meu pai, contestando a sua classificação de muito bom, que pretendia reverter para bom, porque não contestava os critérios da avaliação, mas de uma coisa tinha a certeza, nunca seria justo ter a mesma classificação que outro colega seu cujo desempenho conhecia muito bem) em que quase toda a gente tinha muito bom, com uma quantidade astronómica de pessoas que tinham a classificação máxima.

O que se passava é que essas classificações tinham muito pouca relevância (eram usadas nos concursos de promoção, em que a antiguidade era o principal critério) e as chefias não estavam para aturar reclamações, de maneira que corriam tudo a notas fantasticamente altas (mesmo assim não se livravam das reclamações dos que, tendo 9,8 em 10, achavam injusto em relação ao colega que tinha 9,9 em 10).

Para acabar com isto, resolveu-se estabelecer quotas por níveis de classificação (bem) e fazer reflectir essa avaliações na progressão.

Mais uma vez, para garantir que nenhum dirigente beneficiava os seus amigos (o pressuposto base de todas estas regras), inventou-se um sistema complicadíssimo, que consome horas e horas de trabalho (eu, por exemplo, deveria ter ido a uma plataforma qualquer aceitar a definição de objectivos que me foi estabelecida para este ano, mas como me vou reformar, resolvi perguntar o que me acontecia se eu me esquecesse de ir a essa plataforma, como a minha chefia encolheu os ombros, estou à espera que chova, para lá ir) e cujo resultado final é exactamente o mesmo que o do anterior processo de avaliação (há unidades orgânicas que estabelecem um sistema rotativo de atribuições de notas para todos ficarem em igualdade de circunstâncias nos processos de promoção, evitando conflitos e confusões).

Por último, sobre a contratação pública, cujas regras partem do mesmo princípio (somos todos venais e é preciso garantir processos de decisão que, à partida, são totalmente blindados em relação à natureza humana), toda a gente sabe o seu efeito mais visível: ninguém consegue decidir nada de jeito, sem ser através de processos excepcionais, que se tornaram a regra.

Nos três exemplos que dei de evolução da administração pública, a base é sempre a mesma: desconfiar de todos, consequentemente, transferir a garantia de transparência e decência para as regras prévias de decisão.

O resultado é sempre o mesmo: a desconfiança mata a gestão, o risco e a responsabilização (ninguém é responsável por nada, são as regras que dão os desastrosos resultados conhecidos), não sendo necessário haver sólidos mecanismos de avaliação posterior, porque as regras que existem garantem, à priori, a decência do processo de decisão e a sua adequação aos objectivos pretendidos, dizem eles.

Para os verdadeiramente venais, que os há, quaisquer regras servem, porque a sua especialidade é não as cumprir, o resultado tem efeitos perversos sobretudo para as pessoas decentes.

Vai longa a carta e na verdade ela poderia ser resumida a esta pequena frase final:

esqueça essa coisa da igualdade e da definição de regras prévias que pretendem blindar processos de decisão em relação à natureza humana, confie nos dirigentes e funcionários, deixe-os decidir discricionariamente, dentro de regras simples e verificáveis, e reforce os mecanismos de avaliação de gestão.

O resto não interessa nada.


2 comentários

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De cela.e.sela a 05.06.2025 às 15:54

Ciano in Diários
dá razão ao conceito socialista de democracia
Il Duce mi ha detto che la democrazia per gli slavi è come l'alcool per i negri.
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De Francisco Matos a 05.06.2025 às 20:34

"golpada nos serviços públicos" (https://observador.pt/2025/06/04/governo-pcp-avisa-que-foi-criado-ministerio-para-dar-golpada-nos-servicos-publicos/)

É esta a reação do PCP à criação do Ministério da Reforma do Estado. Nem de outra coisa se esperaria!

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