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Cara Clara,
Chamaram-me a atenção para este seu texto a que não ligaria muito, não se desse o caso de uma amiga minha ter feito um comentário (não sobre o seu texto, foi uma mera coincidência temporal) dizendo que "Uma das coisas que esta última polémica sobre o racismo torna evidente é que a descolonização (e o nosso passado colonial) é uma ferida que não só ainda não sarou, como ainda não se sabe bem o que fazer com ela".
A conversa que este pequeno post motivou centrou-se na ideia de que no espaço público só há espaço para os discursos do saudosismo colonial e para coisas como as que escreve, que sem novidade ou surpresa, é a banal cartilha que pretende desresponsabilizar as elites dos novos países atribuindo ao colonialismo todos os males actuais desses países.
Este seu parágrafo "Sempre pasmei da ausência de ressentimento tanto nos intelectuais como na gente simples de um país que condenámos à miséria e à corrupção." é extraordinário a todos os títulos, ao pretender que a corrupção endémica em muitos desses países é uma herança colonial e não uma responsabilidade das suas elites, quer dos que ficaram imensamente ricos sem que alguém lhes conheça qualquer fonte de rendimento extraordinária, quer dos que não ficaram, mas não viram nada de errado acontecer nos seus países desde a independência. E sim, a miséria é hoje bem mais extensa e profunda do que era em 1974, mas a mim não me apanha a usar este facto para defender a situação anterior a 1974, porque isso é misturar alhos com bugalhos, as razões da miséria actual são muitas e complexas, uma parte será herança do colonialismo (mesmo que a vida da maior parte da população fosse melhor nessa altura), mas outra é bem responsabilidade das elites que se formaram nesses países: talvez não tenha reparado mas esses países já têm quase tantos anos de independência como os anos que durou o Estado Novo, é um bocadinho de mais pretender que nesse período de tempo não se poderia ter feito nada para reverter a herança recebida.
A sua defesa do mito do bom selvagem (como o racismo é persistente, não é, como ele está entranhado em sítios em que é tão difícil expô-lo sem ser "por ínvios caminhos, quais se diz que são ínvios os de Deus") pretendendo contrapor a "empatia, à humanidade, à educação e à consideração de que somos todos parte de uma raça, a humana" dos moçambicanos ao facto de haver gente que odeia em Portugal, é ainda mais pateta (sim, não é patética, é mesmo pateta) quando estamos a falar de países mergulhados anos a fio em guerras civis.
Num dos comentários ao post que citei acima, um amigo meu (adversário de estimação em dezenas de discussões por discordarmos em quase tudo) relata a sua experiência em 1974: "Durante o Sete de Setembro de 1974 eu viajava de carro na companhia dos meus avós e da minha irmã, em Lourenço Marques (na altura ainda se chamava assim a cidade). Uma multidão cercou-nos, obrigou-nos a sair do carro e cobriu-nos de gasolina. Fomos salvos da imolação por um soldado da Frelimo que reconheceu o meu avô: era o branco que a cada quinze dias ia à sua aldeia prestar, em gesto voluntário, primeiros socorros, oferecer medicamentos, sementes agrícolas, &c.".
Eu lembro-me bem desse dia 7 de Setembro, apesar de não ter uma história arrepiante como esta, de ódio, sim, mas de humanidade também, como é próprio da nossa natureza. Mas lembro-me das rajadas de metralhadora, do recolher obrigatório, dos mortos, dos incêndios que não batem certo com a sua historinha sobre "empatia, à humanidade, à educação e à consideração de que somos todos parte de uma raça, a humana". E olhe que este meu amigo era moçambicano, a família estava há duas ou três gerações (se não me engano) em Moçambique e não tinha outra terra a que chamar pátria, teve foi o azar, nesse dia, de ser branco.
E este comentário vinha na sequência do meu próprio comentário anterior "Um dia a minha mulher foi a Moçambique, muitos anos depois de lá ter saído. Como teve oportunidade para isso, resolveu ir ver a casa de infância, no então colonato do Limpopo, vila de Trigo de Morais, hoje Choqwé. Viu um miúdo brincar no jardim e disse-lhe que gostava de ver a casa, se ele achava que poderia entrar. O miúdo desapareceu na casa e veio de lá um senhor, grande, com ar razoavelmente desconfiado, saber o que se passava. A minha mulher explicou-lhe que tinha vivido naquela casa muitos anos e tinha curiosidade em revê-la. O senhor abre-se num sorriso, pergunta-lhe se era filha de fulano tal e perante a confirmação dá-lhe um grande abraço misturado com o choro genuíno dos dois, convidando-a para entrar, servir-lhe o melhor pequeno almoço que tinha em casa e uma grande conversa muito emocionada. Isto não cabe no discurso sobre a colonização, descrever isto, que é apenas uma contingência e não tem moral política nenhuma, é imediatamente rotulado de branqueamento do colonialismo, da exploração, da miséria e etc. (e nem reproduzo a conversa para não me chamarem reacionário). Enquanto este ponto de vista de pessoas comuns estiver proscrito do espaço público, como se não fizesse também parte da realidade que existiu, é uma ferida que nunca se curará, aqui e nos outros lados".
E foi para lhe explicar isto que lhe escrevi esta carta, que o discurso das pessoas comuns (as de cá e as de lá) está completamente ausente do espaço público no que diz respeito à colonização e descolonização, o que mantém demasiadas feridas abertas (cá e lá) e que o problema de textos como o seu não é o serem mistificações, factualmente errados e com generalizações preguiçosas e banais, o problema de textos como o seu é porque são meras pedras de sal nas feridas (de cá e de lá) que impedem as pessoas comuns de simplesmente falarem do que viram, do que sentiram, enfim, das suas vidas, sem terem de estar a medir cada palavra para não serem imediatamente classificadas assim ou assado.
E da próxima vez que ficar pasmada pela ausência de ressentimento, fale com as pessoas normais, com as que vendem fruta nas ruas e estradas de Moçambique, ou com as que simplesmente não gostam de falar da forma como foram tratados pelos seus irmãos de pátria, mas não de cor, e pelos seus irmãos de cor, mas não de pátria.
Provavelmente encontrará uma explicação mais simples que a do mito do bom selvagem para isso: para além da imensa e natural simpatia dos moçambicanos, é provável que a explicação esteja no facto da Clara ter uma visão completamente deturpada de um mundo que desconhece e sobre o qual tem tantas certezas.
Antes, durante e depois da descolonização, eram simplesmente pessoas normais que estavam em todos os lados, pessoas que viviam vidas normais, em que o bem e o mal coexistem permanentemente, e nunca existiu esse mundo em que os bons estavam todos de um lado (presumivelmente, o seu), e os maus estavam todos do outro.
O mundo não é assim e já não era assim nesse tempo.
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