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Nota prévia. Neste texto são identificados dois académicos e poder-se ia pensar que os juízos de valor que faço dizem respeito aos dois, mas não é tal. José Pimentel Teixeira, que cito primeiro numa nota relativamente marginal, daquilo que li, não encaixa, de maneira nenhuma, no grupo de investigadores que contrabandeiam ideias políticas sob a forma de artigos escritos estritamente a partir de um ponto de vista da acção política actual, não lhe sendo aplicáveis as opiniões que teço sobre grande parte da investigação sobre estes assuntos
Agora que tenho andado a ler mais coisas académicas (ou perto disso, às vezes os limites entre textos académicos e a ficção são um bocado difusos) sobre história da colonização europeia, verifico que, frequentemente, se fala em assimilados.
Ao princípio estranhei, mas depois verifiquei que é uma opção corrente.
A sensação com que fico é a de que se trata de um truque retórico com objectivos ideológicos, que passo a explicar.
O conceito de assimilado vem dos diplomas legais associados ao indigenato.
O racismo científico (sim, eu sei que poriam aspas, mas essas aspas são a nossa apreciação da ciência hoje, na época era mesmo ciência, estava era errada, como acontece à esmagadora maioria da ciência produzida) consolida-se na segunda metade do século XIX e prolonga-se até meados do século XX, se bem percebi a coisa.
Pelo que percebo, este processo desenvolve-se muito à boleia da luta anti esclavagista, já que grande parte dos exploradores moralistas do fim do século XIX, como Livingstone, justificam, pelo menos parcialmente, a sua acção civilizadora (ver o comentário acima sobre o uso de aspas) com a necessidade de combater a escravidão e o tráfico ilegal que persistia.
Ao longo de toda a segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX há um alargado consenso entre as elites europeias sobre a superioridade da civilização ocidental face às culturas tradicionais africanas, expressa no tratamento da escravidão – corrente em África, mas banida na Europa – nos sacrifícios humanos, no tratamento das mulheres, nos direitos dos indivíduos, na obediência à lei, etc..
Justa ou injustamente, estas eram ideias dominantes, expressas por todo o lado e definindo políticas, de acordo com o ar do tempo (na civilizadíssima Europa central, Hitler perseguia legalmente os povos considerados inferiores, e afirmava superioridades rácicas ainda nos anos 40. Não se pense que toda a gente no resto da Europa achava isso uma aberração, de resto, Martin Luther King foi assassinado em 1968).
No Sul dos Estados Unidos a segregação legal era a norma, é nos anos 40 que na África do Sul se codifica o apartheid e, em Portugal, é nos anos 30 que se codifica o estatuto do indigenato.
Note-se que a realidade é mais complexa do que se pode pensar a partir dos diplomas legais, já referi o facto de “branco” ser uma designação que abrangia mulatos e pretos, em algumas circunstâncias (isso está documentado para os séculos XVIII e XIX, em Angola e, curiosamente, José Teixeira Pimental refere uma coisa semelhante para os anos 90 do século XX, no Norte de Moçambique num texto chamado “Ma-Tuga no Mato: imagens sobre os portugueses em discursos rurais moçambicanos”), correspondendo mais a uma filiação cultural que ao tom de pele.
Esse é o contexto ideológico do estatuto do indigenato que tem a mesma base do apartheid (uma lógica de diferenciação de diferentes grupos sociais), que é inegavelmente uma lógica de base racista, mas com uma diferença abissal relevante: o regime de apartheid divide brancos e não brancos, definindo essa diferença pela cor da pele (lembro-me do meu espanto quando, aos 11 ou 12 anos, na escala que o barco fez na África do Sul, termos sido impedidos de entrar num autocarro que era para não brancos, coisa absolutamente impensável no Moçambique de onde eu vinha), enquanto o estatuto do indigenato divide culturas e, pelo menos em teoria, procura a assimilação, não a segregação.
Claro que há uma grande sobreposição entre essa diferenciação cultural e a cor da pele – por definição, os brancos, os indianos, os chineses não eram indígenas africanos, a linha de corte é diferente da que existe no apartheid – mas como a diferença é cultural, é possível transitar do estatuto de indígena para o de cidadão pleno, o que deu origem aos tais assimilados, isto é, aqueles que partindo da condição de indígenas, pela alteração do seu contexto cultural, passam a ser cidadãos de pleno direito.
“consideravam-se indígenas “os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente [nas colónias], não [possuíssem] ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses … Nos termos do Estatuto, assimilados eram os antigos indígenas que haviam adquirido a cidadania portuguesa, após provarem satisfazer cumulativamente os requisitos” (O ‘INDÍGENA’ AFRICANO E O COLONO ‘EUROPEU’: A CONSTRUÇÃO DA DIFERENÇA POR PROCESSOS LEGAIS” MARIA PAULA G. MENESES).
O espantoso para mim, nesta produção académica que tenta contrabandear opções políticas como se fossem resultados académicos, é o uso do conceito de assimilado muito para lá do restrito contexto do estatuto de indigenato, sendo frequentes as expressões que se referem às minorias negras integradas nas culturas ocidentais como assimilados, diria eu que, frequentemente, com um tom negativo que se aproxima de “vendido” ou “traidor”.
Esta estranheza é tanto maior quanto os movimentos independentistas são esmagadoramente dominados por assimilados, para usar essa terminologia infeliz, não são as autoridades tradicionais africanas que se organizam em movimentos de oposição ao racismo e colonialismo, são negros, mulatos e outros mestiços e brancos que se juntam para lutar pela independência de um país que só existe pela definição de fronteiras feita pelos colonialistas, sem respeito pelas unidades geográficas de cada “nação” africana (aqui sim, aspas porque estou a usar um conceito que é razoavelmente claro e linear nas culturas ocidentais, mas só com muitas reservas se pode aplicar às unidades culturais e políticas africanas).
De resto, todos esses movimentos independentistas, quando chegam ao poder, o que fazem é reforçar os mecanismos de assimilação, mesmo que usem terminologias novas e digam que o que querem é fazer um homem novo.
Faz-me imensa confusão ler, num texto supostamente com um mínimo de rigor académico (uso um exemplo, mas coisas deste tipo encontram-se a pontapé noutros textos sobre o assunto): “a naturalização dos indígenas como não-cidadãos permaneceria, durante largas décadas, como memória da latência do pensamento imperial, de um Portugal, nação de cidadãos, possuindo uma imensa população de súbditos colonizados”.
Largas décadas? O estatuto do indigenato é de 1930, mais coisa, menos coisa, a sua revogação é de 1961, isso permite falar em largas décadas?
A explicação está imediatamente depois “Até à independência de Moçambique, em 1975, o critério racial manteve-se como critério único para os brancos residentes serem considerados civilizados. Ao longo de todas as suas formulações, o Estatuto requeria que os ‘negros e seus descendentes’, para obterem a plena cidadania, fizessem prova de requisitos culturais e económicos que não eram exigidos aos brancos, os portugueses originários”.
Dir-se-ia que a questão racial era a chave de interpretação disto tudo, só que o parágrafo tem erros extraordinários, na linha da opção ideológica de manter a designação de assimilados para falar de realidades que só existiam no contexto de um diploma legal que existiu durante cerca de trinta anos.
Em primeiro lugar, a distinção entre indígenas e não indígenas tinha sido revogada em 1961 (situação que a investigadora descreve como “Esta situação começou a conhecer reformas a partir de 1961, fruto da pressão das lutas nacionalistas”, o que é falso quer porque o estatuto foi mesmo revogado nessa altura, quer porque a luta armada em moçambique começa mais tarde, em 1964 demonstrando que não se trata de ignorância mas de manipulação pura e dura).
Em segundo lugar, aquilo que a investigadora define como “como critério único para os brancos residentes serem considerados civilizados” (o da cor da pele), era aplicável a brancos, indianos, chineses e pretos não originários dessa colónia.
“as incursões históricas são necessárias para demonstrar a inanidade de vários argumentos crescentemente esgrimidos nos debates mediatizados sobre a história recente” diz a autora e eu não poderia estar mais de acordo, o que nos divide é que a autora (em rigor, grande parte dos autores que escrevem sobre estas matérias) considera como uma incursão histórica o que são grosseiras manipulações da informação existente, e eu considero que numa incursão histórica não cabe esse tipo de manipulações.
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