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As modernas bolas de cristal

por henrique pereira dos santos, em 31.03.20

Há os que olham para uma epidemia como uma ameaça bélica, com um inimigo bem definido que é preciso vencer heroicamente, com sangue suor e lágrimas ou, ao menos, o sacrifício do isolamento social prolongado, mesmo que isso implique restrições severas à liberdade e a criação de uma economia de guerra.

Estes tendem a acreditar no poder ilimitado do homem e das suas criações, que procuram demonstrar com sofisticadas modelações matemáticas infalíveis, porque "os números não mentem".

Para ter uma ideia clara do que descrevi, penso que o melhor será ler hoje este artigo escrito por Jorge Buescu, cheio de certezas, números e gráficos que, logo no início caracteriza muito bem o problema matemático: "A epidemiologia estuda a forma de propagação de doenças contagiosas. Tratando-se de números, a Matemática tem de intervir. Ora, tal como acontece em Meteorologia ou em Climatologia, a situação é a de estarmos de posse dos dados numéricos actuais e de pretendermos conhecer a evolução futura: no caso da Meteorologia, se vai chover ou fazer sol na próxima semana; no caso da epidemiologia, o que devemos esperar da evolução de uma doença, como é o caso deste vírus. Em resumo: de posse dos dados presentes, queremos prever o futuro."

A Maria que estivesse a ler este artigo enquanto ia a caminho de regar as couves da horta tiraria uma conclusão imediata: se isto é como prever o tempo, o melhor é ter cautela com as previsões e não deixar de aproveitar o sol que está para pôr o milho na eira, porque daqui a uma semana dizem que continua a haver Sol, nem ir a correr a semear os nabos, porque dizem que para a semana chove.

Por razões totalmente estranhas ao bom senso e, neste caso, também ao senso comum, Jorge Buescu resolveu tomar como certas as suas previsões sobre o futuro e, com os números de ontem, a realidade era a seguinte: números de casos positivos a um sexto da previsão que achava mais provável, e a metade da previsão que achava excessivamente conservadora.

Mas a sua certeza, o fascínio dos homens (sobretudo dos homens, neste caso em sentido estrito) pelas bolas de cristal disfarçadas de complexas modelações estatísticas, arrastou consigo uma boa parte da opinião pública que passou, não só a aceitar, mas exigir, medidas imediatas e radicais (as palavras são do mesmo artigo) aos seus governos para nos defender do dramático tsunami que estava para chegar. Buescu não tinha dúvidas: "A taxa de infectados por coronavírus que precisam de cuidados intensivos é de 5%. As minhas projecções indicam que, no dia 23/3, teremos um número de infectados da ordem de 3000. Teremos portanto 150 doentes a precisar de camas de cuidados intensivos. Com grande probabilidade não existe esse número de camas disponíveis em todo o País. E portanto, os serviços entrarão em colapso por falta de meios e os médicos terão de tomar, como já acontece em Itália há mais de uma semana, decisões de vida ou de morte, decidindo quem fica com o ventilador".

A realidade é que mais de uma semana depois da data prevista, não há qualquer sinal do que foi afirmado como certo.

Este modelo mental de abordagem de uma epidemia é, infelizmente, dominante, actualmente, e levou a um conjunto de medidas com fortíssimo impacto social e económico em muitos países (não em todos e muito menos da mesma maneira imediata e radical como por vezes se pretende crer).

Felizmente o discurso dominantes começa a mudar e já se ouve os responsáveis pela aplicação destas medidas (na verdade a responsabilidade é da opinião pública que as exigiu) a dizer que os números demonstram que tinham razão, as medidas adoptadas fizeram efeito e a situação está a melhorar.

E está mesmo, o pico passou em Itália, terá passado em Espanha (mas só agora se vai começar a notar na mortalidade, há um desfasamento de cerca de sete dias) e os números dos Estados Unidos parecem sugerir (repito para acentuar bem a incerteza) que também aí o pico está muito próximo.

Como me explicava quem tem uma visão alternativa de uma epidemia, 12 a 14 dias depois de entrar na exponencial estamos no pico da infecção, mais sete dias entra a mortalidade no planalto, e depois começa tudo a descer, até acabar tudo na primeira semana de Maio, o mais tardar.

Sim, é a Maria a olhar para o Céu, a ver de onde vem o vento, a sentir a humidade na pele, para saber se semeia os nabos ou põe o milho na eira.

Digamos que é uma bola de cristal mais antiga, menos tecnológica, e com certeza não me permite planear um fogo controlado para daqui a dez dias.

O que fazem as pessoas do fogo controlado é olhar para as bolas de cristal modernas, preparar tudo para o caso de estarem certas, e continuam a olhar para o Céu, confirmando todos os dias em que sentido se está a coisa a encarreirar, vão-se adaptando e só confirmam o fogo controlado quando entram no intervalo de confiança das previsões meteorológicas: nunca mais de três dias.

Uma bola de cristal, é uma bola de cristal, é uma bola de cristal.


16 comentários

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De Anónimo a 31.03.2020 às 10:28

se eu comi dois frangos e tu não comeste nenhum em média comemos os dois um.


por outras palavras, foi isto que Jorge Buescu disse no tal artigo do tsunami, com o problema acrescido de que nem ele nem ninguém sabe quantos frangos existem e quem os anda a comer.
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De Luís Lavoura a 31.03.2020 às 12:07

Esperemos que o Henrique tenha razão, até porque hoje tentei marcar uma consulta de oftalmologia, de que necessito com alguma urgência, e não há oftalmologistas a dar consultas. Não porque os oftalmologistas estejam a tratar doentes de coronavírus, que não estão nem o saberiam fazer, mas sim porque toda a medicina deste país está parada por causa desta epidemia de uma doença de treta.
Uma médica minha conhecida informou-me de um rapaz com cancro do testículo que precisa de ser operado com urgência e não é, mais uma vez porque não se fazem a operações a cancros neste tempo de uma epidemia fictícia.
O país todo, atividades urgentes incluídas, está parado como se estivéssemos perante, sei lá, a varíola ou o ébola. Quando estamos perante uma doençazinha que, em 20 dias, matou 150 pessoas - isto é, metade das pessoas que, em média, morrem em Portugal num único dia.
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De Anónimo a 31.03.2020 às 18:00


Caro Luís Lavoura,
Não sei se é uma "uma doença de treta", ou "doençazinha" (será pior do que a gripe sazonal), mas concordo consigo no facto de estarmos a hipotecar outra saúde (já nem falo da economia - vamos ter de nos preparar para a pancada). Tenho a minha mãe a tratar de um problema  que a está deixar progressivamente sem visão. Os médicos não acertam no diagnóstico, é muito grave, e no entanto desmarcaram todas as consultas que tinha. Não sei o que fazer, vejo o tempo a passar, a minha mãe a piorar, enquanto os serviços (públicos e privados) estão suspensos. À espera. Não sei é se a visão da minha mãe aguenta a espera.
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De Anónimo a 31.03.2020 às 19:51


Muito bem. Sóbrio.
ao
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De Isabel a 31.03.2020 às 12:08

O jornalismo actual pressupõe que os achistas que entrevista adivinham o futuro. Fico sempre espantada quando os entrevistadores sistematicamente fazem a pergunta da praxe: “ e agora o que é que acha que vai acontecer?” E mais espantada ainda fico quando os achistas respondem. E com ar sério.
É, portanto, natural que haja divulgação de tudo o que se aparente com achismos, misturados com números, que divaguem sobre o futuro.
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De Antonio Maria Lamas a 31.03.2020 às 12:29

Agradeço ao Henrique Pereira dos Santos a sua racionalidade e coragem para dizer que "O Rei vai Nu".
Como diria o grande "filósofo" João Pinto - Prognósticos, só no fim do jogo. 
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De Anónimo a 31.03.2020 às 15:07

'nu com as mão nos bolsos ... dos outros'
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De António a 31.03.2020 às 13:28

Já pensou que os números de Buescu podem ser os reais? Ou acredita que TODOS os casos existentes foram testados e são conhecidos?
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De Anónimo a 31.03.2020 às 17:37

até pode ser o dobro ou o triplo do limite superior que Jorge Buesco estimou. até há quem diga que em novembro já havia uma pneumonia estranha no Norte de Itália. E se estava no Norte de Itália provavelmente já andava por estes lados também.


https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-italy-timing/italian-scientists-investigate-possible-earlier-emergence-of-coronavirus-idUSKBN21D2IG (https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-italy-timing/italian-scientists-investigate-possible-earlier-emergence-of-coronavirus-idUSKBN21D2IG).



e o ponto é exactamente esse, não sabemos quantos estão infectados.
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De Anónimo a 31.03.2020 às 14:17

sugiro que alguém verifique os números relativos ao Porto... 29 e 30...

https://covid19.min-saude.pt/wp-content/uploads/2020/03/i026097.pdf
https://covid19.min-saude.pt/wp-content/uploads/2020/03/i026088.pdf
E depois expliquem-me o que é que não está a bater certo
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De Anónimo a 31.03.2020 às 15:04

estamos perante estatismo à largos dos ratos
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De Anónimo a 31.03.2020 às 15:08

Caro Sr
O Dr (Exponencial) Buescu, do alto da sua cátedra de matemático sabe tudo o que é quantitativo; Mas passa ao lado de tudo o que é qualitativo, e como estamos no reino das incertezas (ele não sabe que existem: não foram modeladas), ele erra , mas perentóriamente. Por ele estaríamos no reinos do "Achtung" dos filmes da 2ª Guerra, com polícias e militares impedindo qualquer actividade humana, económica, e social.
Tudo isto para evitar o "crescimento exponencial" ad eternum de novas infecções.
Eu julgo que ele está errado, e sobretudo, eu espero que esteja errado.
Mas de uma coisa tenho a certeza: as certezas dele valem menos do que as minhas incertezas!
Entrando agora no campo numérico, talvez se tenha verificado no dia 23 de Março um inflexão na curva de novas ocorrências ( já o tinha dito , erradamente, para 13 de Março), dado que pelo quinto dia consecutivo as médias móveis ( 5 observações) de novas ocorrências baixaram, de 24,2%, para 15,8%.
Queira Deus que assim seja.


Cumprimentos


Vasco Silveira
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De Anónimo a 31.03.2020 às 19:54

Para o cumprimentar, Vasco Silveira. Não só foi claro e corrosivo qb, mas foi o único que assinou.
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De Anónimo a 01.04.2020 às 10:39

Claro, claro, claro.


Muito bem
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De JPT a 31.03.2020 às 16:53

A análise do Prof. Dr. Buescu (que, sendo português, certamente terá excelentes explicações para o ligeiro desvio das suas previsões face à realidade), para lá da visão de túnel característica dos matemáticos, padece de outra limitação: a do seu autor viver do Orçamento Geral do Estado (com todo o mérito, aliás), o que o imuniza daquela mania dos "mortais" de quererem manter um posto de trabalho ou uma loja empresa ou escritório de porta aberta, para terem com o que pagar as contas. 
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De Carlos a 31.03.2020 às 19:34

Será possível processar criminalmente o prof Jorge Buescu e outros que tal, pelo falso alarme que vai pôr muita gente na miséria? 

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