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Há os que olham para uma epidemia como uma ameaça bélica, com um inimigo bem definido que é preciso vencer heroicamente, com sangue suor e lágrimas ou, ao menos, o sacrifício do isolamento social prolongado, mesmo que isso implique restrições severas à liberdade e a criação de uma economia de guerra.
Estes tendem a acreditar no poder ilimitado do homem e das suas criações, que procuram demonstrar com sofisticadas modelações matemáticas infalíveis, porque "os números não mentem".
Para ter uma ideia clara do que descrevi, penso que o melhor será ler hoje este artigo escrito por Jorge Buescu, cheio de certezas, números e gráficos que, logo no início caracteriza muito bem o problema matemático: "A epidemiologia estuda a forma de propagação de doenças contagiosas. Tratando-se de números, a Matemática tem de intervir. Ora, tal como acontece em Meteorologia ou em Climatologia, a situação é a de estarmos de posse dos dados numéricos actuais e de pretendermos conhecer a evolução futura: no caso da Meteorologia, se vai chover ou fazer sol na próxima semana; no caso da epidemiologia, o que devemos esperar da evolução de uma doença, como é o caso deste vírus. Em resumo: de posse dos dados presentes, queremos prever o futuro."
A Maria que estivesse a ler este artigo enquanto ia a caminho de regar as couves da horta tiraria uma conclusão imediata: se isto é como prever o tempo, o melhor é ter cautela com as previsões e não deixar de aproveitar o sol que está para pôr o milho na eira, porque daqui a uma semana dizem que continua a haver Sol, nem ir a correr a semear os nabos, porque dizem que para a semana chove.
Por razões totalmente estranhas ao bom senso e, neste caso, também ao senso comum, Jorge Buescu resolveu tomar como certas as suas previsões sobre o futuro e, com os números de ontem, a realidade era a seguinte: números de casos positivos a um sexto da previsão que achava mais provável, e a metade da previsão que achava excessivamente conservadora.
Mas a sua certeza, o fascínio dos homens (sobretudo dos homens, neste caso em sentido estrito) pelas bolas de cristal disfarçadas de complexas modelações estatísticas, arrastou consigo uma boa parte da opinião pública que passou, não só a aceitar, mas exigir, medidas imediatas e radicais (as palavras são do mesmo artigo) aos seus governos para nos defender do dramático tsunami que estava para chegar. Buescu não tinha dúvidas: "A taxa de infectados por coronavírus que precisam de cuidados intensivos é de 5%. As minhas projecções indicam que, no dia 23/3, teremos um número de infectados da ordem de 3000. Teremos portanto 150 doentes a precisar de camas de cuidados intensivos. Com grande probabilidade não existe esse número de camas disponíveis em todo o País. E portanto, os serviços entrarão em colapso por falta de meios e os médicos terão de tomar, como já acontece em Itália há mais de uma semana, decisões de vida ou de morte, decidindo quem fica com o ventilador".
A realidade é que mais de uma semana depois da data prevista, não há qualquer sinal do que foi afirmado como certo.
Este modelo mental de abordagem de uma epidemia é, infelizmente, dominante, actualmente, e levou a um conjunto de medidas com fortíssimo impacto social e económico em muitos países (não em todos e muito menos da mesma maneira imediata e radical como por vezes se pretende crer).
Felizmente o discurso dominantes começa a mudar e já se ouve os responsáveis pela aplicação destas medidas (na verdade a responsabilidade é da opinião pública que as exigiu) a dizer que os números demonstram que tinham razão, as medidas adoptadas fizeram efeito e a situação está a melhorar.
E está mesmo, o pico passou em Itália, terá passado em Espanha (mas só agora se vai começar a notar na mortalidade, há um desfasamento de cerca de sete dias) e os números dos Estados Unidos parecem sugerir (repito para acentuar bem a incerteza) que também aí o pico está muito próximo.
Como me explicava quem tem uma visão alternativa de uma epidemia, 12 a 14 dias depois de entrar na exponencial estamos no pico da infecção, mais sete dias entra a mortalidade no planalto, e depois começa tudo a descer, até acabar tudo na primeira semana de Maio, o mais tardar.
Sim, é a Maria a olhar para o Céu, a ver de onde vem o vento, a sentir a humidade na pele, para saber se semeia os nabos ou põe o milho na eira.
Digamos que é uma bola de cristal mais antiga, menos tecnológica, e com certeza não me permite planear um fogo controlado para daqui a dez dias.
O que fazem as pessoas do fogo controlado é olhar para as bolas de cristal modernas, preparar tudo para o caso de estarem certas, e continuam a olhar para o Céu, confirmando todos os dias em que sentido se está a coisa a encarreirar, vão-se adaptando e só confirmam o fogo controlado quando entram no intervalo de confiança das previsões meteorológicas: nunca mais de três dias.
Uma bola de cristal, é uma bola de cristal, é uma bola de cristal.
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