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Anacronismos e tretas

por henrique pereira dos santos, em 05.08.24

Joana Gorjão Henriques e o Público persistem no seu esforço didático de dizer aos portugueses o que nunca tinham percebido: que houve racismo e repressão nas colónias portuguesas (replico aqui, adaptando, uma resposta sarcástica que me foi dada quando fiz uma pergunta acerca de uma das pessoas citadas por Joana Gorjão Henriques na sua peça no Público de ontem "Quando os negros eram feitos estrangeiros na sua terra", sobre Moçambique).

O título da peça parece inspirar-se neste testemunho: "Por causa de um traço que é racista, que caracterizava a relação do branco com o indígena: o afastamento para um espaço longínquo, desvalorizado, que era habitado pelo estrangeiro negro".

É o testemunho de José Gil, o filósofo, que está cheio destas tiradas literárias que, numa interpretação estritamente pessoal, me parecem ser a escapatória de quem, não querendo degradar a sua reputação inventando histórias da carochinha inverosímeis (como faz Álvaro Vasconcelos), também não quer contrariar a wokaria, refugiando-se em conjuntos de palavras aparentemente lógicos, mas suficientemente ambíguos para lhe permitir estar bem com Deus e o Diabo.

Joana Gorjão Henriques, no entanto, tem outros planos, quer convencer os seus leitores de que o mundo que ela imagina não é um mito, mas uma descrição fiel da realidade, portanto vai atrás desta ideia do estrangeiro na sua terra, do apartheid não formal mas real, da violência racista permanente.

A ideia do paralelismo da sociedade moçambicana com o apartheid sul-africano é das coisas mais estúpidas que aparecem neste debate (não, não é por causa do luso-tropicalismo, esse nariz de cera que o wokaria inventou para evitar discutir a realidade tal como ela existiu), para ser aceitável, mesmo como mera aproximação, é preciso esquecer toda a história e sociologia que separa essas duas realidades, nomeadamente a presença dos brancos na sociedade (uns 20% na sociedade sul-africana contra os míseros 2% em Moaçambique), a presença das fortes comunidades de origem indiana em chinesa em Moçambique e integração, mais no caso da comunidade de origem indiana, e o facto dos brancos sul africanos terem uma presença e controlo de terra fora das cidades, na exploração agrícola, que era muito diferente da presença dos brancos fora das duas ou três cidades litorais com alguma dimensão).

O esforço chega a ser cómico e quase se poderia dizer desta peça de jornal o que era costume escrever-se nos livros e filmes: “Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.”

Não vale a pena perder muito tempo, por exemplo, com o que é dito sobre o colonato do Limpopo, sobre o qual existe uma extensíssima bibliografia, quer portuguesa, quer Moçambicana (não há pachorra para a conversa chilra de que os colonatos dos anos 50 corresponderiam a uma resposta do regime ao crescimento dos movimentos anti-coloniais do pós guerra, quer porque a política de colonização interna era uma política que abrangia também o Portugal europeu, quer porque as primeiras propostas, por exemplo, para o colonato do Limpopo, são dos anos vinte do século XX).

O que é extraordinário é que seja preciso ir à bibliografia académica moçambicana para ler textos bem menos esquemáticos e ideologicamente formatados que os de Fernando Rosas ou Cláudia Castelo, mesmo em textos que citam abundantemente Claudia Castelo, como este, que são muito mais ricos na descrição dos conflitos sobre a posse de terras que as vulgatas portuguesas que se lêem por aí, como este, ou em que seja possível ler referências de testemunhos como este: "É muito frequente os produtores agrícolas locais fazerem referência a dois ciclos de expropriação de terras, o primeiro levado a cabo pelo regime colonial e o segundo pelos "guerrilheiros vitoriosos que vinham das matas", em alusão ao governo da Frelimo. Quase todos os agricultores que cultivaram as terras irrigadas no período do Colonato do Limpopo recordam com nostalgia a experiência do período colonial em que o apoio ao produtor agrário era integrado (terra irrigada, crédito, extensão agrária, preparação da terra, aprovisionamento em insumos, comercialização). Um agricultor moçambicano que foi colono [sim, um terço dos colonos do colonato do Limpopo eram negros e muitos mais trabalhavam no colonato num regime de colonos de segunda, havendo uma longa lista de espera de agricultores locais que queriam integrar-se no colonato, embora seja raro ver referências a isto na literatura wokista] referiu que "mesmo os portugueses que eram colonizadores cederam-nos alguns hectares de terra irrigada (entre dois a quatro hectares). Os nossos filhos (a Frelimo) arrancaram-nos a terra que os portugueses nos haviam dado e deixaram-na sob o controlo do Complexo Agro-Industrial do Limpopo (CAIL) [uma experiência colectivista da Frelimo totalmente fracassada].

O que me espanta é que, tendo eu acesso a testemunhos directos (o meu sogro era agrónomo na brigada do limpopo e vivia lá e um dos meus amigos da tropa, por acaso, era filho de colonos que tinham ido para o colonato e depois saíram para fazer a sua própria machamba), nunca me passaria pela cabeça confiar totalmente na memória de pessoas emocionalmente envolvidas no processo, sem a confrontar com as dezenas de testemunhos diferentes que se conseguem encontrar facilmente.

E, no entanto, gente treinada academicamente ou jornalísticamente para isto, só encontra testemunhos e documentos que comprovam o que já sabiam antes, é preciso azar.

É por isso que quando José Gil relata um episódio de brutalidade inacreditável que testemunhou quando tinha oito anos e, embora embrulhando-o naquela nuvem de algodão caro que envolve o que diz, refere: "Era um homem negro a ser brutalizado "por um administrador sádico"", a jornalista vê a confirmação de uma sociedade em que a violência racista era permantente, pública e socialmente aceitável e eu vejo a confirmação de que sendo verdade que essa violência existia, era suficientemente rara para que José Gil, uns 75 anos depois, ainda tenha uma memória tão viva do que viu e tenha a preocupação de distinguir o administrador sádico do comum dos mortais.

Meus caros, o racismo é uma coisa suficientemente inaceitável e presente nas sociedades - actuais e antigas - para ser combatido a partir da realidade, não há vantagem nenhuma em procurar reforçar o seu combate com histórias da carochinha, só serve para descredibilizar esse combate.


4 comentários

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De Anónimo a 05.08.2024 às 15:41

A D. Gorjão Henriques e o Sr. Pereira Santos estão perfeitos um para o outro!

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