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Alterações climáticas

por henrique pereira dos santos, em 30.06.19

Tenho ideia (mas não confio nem um bocadinho na minha memória) de ter lido uma entrevista a Eugénio de Andrade em que, a propósito da musicalidade da sua poesia e do facto de ser um melómano, o entrevistador lhe perguntava por que razão nunca escrevia sobre música. Eugénio de Andrade respondia dizendo que para falar de música era preciso ser muito técnico e que lhe faltavam conhecimentos de música para isso.

Lembrei-me disto a propósito do facto de eu raramente escrever sobre alterações climáticas, apesar do centro da minha actividade profissional e de boa parte das minhas "convicções sociais" andarem à volta de questões ambientais e de sustentabilidade.

Recentemente, vários amigos meus, em várias discussões independentes, referiram-se ao facto de eu não alinhar na ideia da urgência de declarações de emergência climática e coisas afins como sendo uma posição absurda para um ambientalista, e daí retiraram conclusões azedas sobre o que ando por aí a dizer.

O artigo de João Pires da Cruz desta semana, no Observador, traduz o essencial da minha posição sobre alterações climáticas: a ciência não é uma questão de opinião e eu não sei o suficiente do assunto para ter uma posição muito diferente do que me parece ser o razoável consenso científico sobre o assunto.

Questão diferente é o passo seguinte, isto é, o que fazer politicamente a partir deste razoável consenso científico.

Uma boa parte dos meus amigos, frequentemente porque acreditam que a sociedade evolui de acordo com o que as políticas de Estado determinam, concluem que é tudo muito urgente e que tudo o que sirva para obrigar os políticos a tomar decisões que eles acham que são imprescindíveis é bom. E que só se avança com a velocidade necessária com uma espécie de governo mundial com capacidade para responder aos desafios societais globais que as alterações climáticas levantam.

Por isso gostam muito de Greta Thundberg, uma adolescente obsessiva de quem, naturalmente, não se ouve uma proposta concreta e minimamente consistente sobre o que fazer, mas que na opinião deles mobiliza muita gente para o que é preciso fazer (e respondem azedamente à minha observação de que ainda não percebi que acção concreta saiu, até hoje, dessa tal mobilização de rua em que se atiram responsabilidades para terceiros e se lhes exige que resolvam um assunto, sem perder dois segundos a pensar como e com que consequências).

Há muitos anos que defendo o que Miguel Araújo (um dos amigos com quem tive uma troca de argumentos mais ácida nesta matéria) defende nesta entrevista (já com dez anos): "Estamos perante um fenómeno que pode afectar a vida de centenas de milhões de pessoas e a sobrevivência de nações inteiras (o caso de nações insulares). Portanto, há que ser responsável na gestão das incertezas e assegurar que as decisões adoptadas sejam as que minimizem o risco de cometer erros graves. Ora as medidas de mitigação que se propõem são, na grande maioria dos casos, de tipo “win-win”. Ou seja, são políticas que são positivas quer haja alterações climáticas ou não e o custo social que advém de lhes conferir prioridade é bastante inferior ao custo social de não as implementar num cenário provável de alterações climáticas".

Os caminhos que nestes dez anos o Miguel e eu fizemos sobre este assunto são de facto divergentes, não nesta ideia central que transcrevi, mas sim na forma de lidar com o assunto.

Há quem ache que tudo se passa muito lentamente e fique cada vez mais radical na exigência de acção imediata dos Estados (e por isso celebre a intervenção de Greta Thundberg como um empurrão para mobilizar vontade política), e há quem ache, como eu, que talvez seja verdade que as coisas evoluam mais lentamente do que seria desejável, mas está muito longe da verdade a ideia de que nada está a mudar e que só mudará com governos empenhados em mudar a sociedade.

E, no entanto, os carros estão muito mais eficientes (os motores em geral e os equipamentos em geral), a agricultura de precisão faz muito mais por um uso eficiente de recursos que a agricultura biológica, empresas tipicamente no olho do furacão, como as da energia, investem cada vez mais na procura e, sobretudo, na colocação no mercado de soluções mais eficientes (há anos BP deixou de querer dizer British Petroleum para passar a dizer Beyond Petroleum), as empresas de produção florestal são hoje as mais avançadas no teste comercial do uso de animais no fecho de ciclos e de reforço de uma economia circular, etc..

Na verdade, quando escrevi a minha tese de doutoramento (aliás, co-orientada também por Miguel Araújo, que é um bom par de anos mais novo que eu) reforcei (ou mesmo tornaram-se claras para mim) as minhas convicções sobre os estreitos limites dos governos para mudarem a sociedade, ao mesmo tempo que se tornava claro que os grandes movimentos económicos e sociais, como a descoberta da síntese da amónia, tinham muito mais efeito real na transformação das sociedades.

E, no entanto, apesar de ser consensual de que esta descoberta é, de longe, a que mais vidas salvou no mundo, existe a esmagadora convicção de que as suas consequências práticas (a generalização dos adubos azotados de baixo custo) são uma espécie de coisa do diabo, uma conspiração do agronegócio e das empresas químicas.

O mais me distingue dos meus amigos nesta matéria não é pois o diagnóstico (não tenho conhecimento e cultura suficiente sequer para discutir muito o diganóstico), nem mesmo a dimensão do problema, mas o meu cepticismo quanto ao poder do Estado para responder a esses desafios, respeitando a liberdade e mantendo condições para a criação de riqueza (como se vê na inacreditável cruzada contra o uso do glifosato, um fitocida barato, de grande eficácia e implicações ambientais marginais, que a cedência dos eleitos à demagogia do pensamento mágico transformou num problema político de primeira linha, com soluções regulamentares absurdas e contraproducentes).

Hoje, muito mais que declarações de emergência climática por parte de parlamentos (sobre as quais manifesto o mesmo desinteresse que por Greta Thundberg), interessam-me as opções dos consumidores que obrigam as empresas a mudar os seus modelos de negócio, interessam-me as empresas que por opção interna olham seriamente para as melhorias de eficiência do processo produtivo e investem na inovação que responde às necessidades sociais, incluindo as necessidades de mitigação e adaptação climática.

Os Estados, com certeza, têm um papel nesse processo, por exemplo, quando resolvem taxar o trabalho e o capital em detrimento do consumo, ou quando resolvem apoiar a produção em vez de colmatarem falhas de mercado, ou quando confiam ou não confiam nos seus cidadãos.

Na verdade o potencial para os Estados intervirem negativamente na sociedade é muito grande (logo à cabeça, na limitação da liberdade, por terem o monopólio da violência legal, como é bem visível no triste episódio do prédio Coutinho, em que o Estado pretende resolver coercivamente um erro seu, em vez de o resolver por via negocial), mas o potencial para criarem riqueza e soluções novas é muito limitado, muito menor que o potencial da multidão criar riqueza, novidade e soluções, desde que tenha liberdade para empreender e falhar, por sua conta e risco.

A segunda coisa que me distingue de boa parte dos meus amigos é que eu acho normal que pensem de forma diferente da minha e aceito isso, mas muitos deles recusam-se simplesmente a discutir esta divergência essencial, preferindo eliminá-la para não atrasar a transformação social que acham urgente.

E eu acho essa atitude um erro que se pagará caro, se for a atitude dominante sobre o assunto.


6 comentários

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De Luís Lavoura a 01.07.2019 às 12:07

o triste episódio do prédio Coutinho, em que o Estado pretende resolver coercivamente um erro seu, em vez de o resolver por via negocial

Como é que se pode resolver por via negocial o problema do prédio Coutinho? Não pode!

Uma pessoa tem um apartamento alto, com vista para a serra de Santa Luzia e para o rio Lima, e com boa exposição solar, sem qualquer sombra, deste último lado. Propõem-lhe sair desse apartamento em troca de um outro qualquer, ela aceita? Claro que não aceita! Então ela vive num apartamento único, privilegiado, e vai aceitá-lo trocá-lo por outro? Claro que não!

Além disso, o prédio tem 30 apartamentos. Quantos mais proprietários aceitassem trocar os seus apartamentos, mais poder teriam os proprietários remanescentes para se fazerem caros, recusando trocar os deles. No limite, os últimos apartamentos do prédio teriam que ser comprados muitíssimo acima do seu valor!

Essa via negocial é, pura e simplesmente, impossível.

Não é por acaso que em todos os Estados há o direito à expropriação coerciva...
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De Luís Lavoura a 02.07.2019 às 09:42

Estamos perante um fenómeno que pode afectar a vida de centenas de milhões de pessoas e a sobrevivência de nações inteiras (o caso de nações insulares). (https://ambio.blogspot.com/2009/01/alteraes-globais-biodiversidade-e.html)

Isto não é bem assim. É verdade que há ilhas do Pacífico que estão a ficar com a água pela barba. Mas isso não se deve à subida do nível do mar, a qual tem sido de somente 3 milímetros por ano, ou seja, 30 centímetros por século - insuficiente para causar grande mossa, pelo menos para já. O problema das ilhas do Pacífico (e não só) é antes a descida do nível do solo devido à extração exagerada de água dos lençóis freáticos. É isso que faz com que essas ilhas fiquem com a água pela barba - não é a subida do nível do mar, mas sim a descida do nível do solo. Ao fim e ao cabo, o mesmo fenómeno que ocorre na Cidade do México, em extensas áreas do Colorado e do Pandjabe, e em muitos outros sítios.
(https://ambio.blogspot.com/2009/01/alteraes-globais-biodiversidade-e.html)
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De Anónimo a 02.07.2019 às 10:30

Aqui em Portugal o lema sobre todos os climas e condicionamentos é: "deixa arder que o meu pai é bombeiro!" E, desde que se vá amanhando uns poemas à Eugénio de Andrade, mesmo sem música, a coisa segue , desde que dê um ar de intelectualidade e uma medalhinha de vez em quando para acrescentar nas biografias -" Oh que felicidade...!"
E então se alguém avalia e implanta um premiozinho Camões ou qualquer outro,pois como em terra de cego quem tem olho é rei e ninguém percebe muito de poesia -"estamos no paraízo"... - deixa arder!
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De Anónimo a 02.07.2019 às 12:02

Confesso que não percebi. Suponho que está a demonstrar o meu ponto de vista de que há pessoas para quem discutir as diferentes opções sobre como lidar politicamente com as alterações climáticas é menos eficaz que atacar pessoalmente os desalinhados, mas é tão confuso que fiquei sem ter a certeza de ser este o seu objectivo.
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De JMS a 02.07.2019 às 20:41

Partir do princípio que as alterações climáticas têm a mão do ser humano é uma aberração e serve, na perfeição, uma agenda própria, sinistra e completamente desfazada (propositadamente) da realidade (factual e histórica). 


Em todas as discussões, nunca, mas nunca mesmo, ouvi alguém a referir-se ao sol e aos oceanos como os únicos e verdadeiros reguladores do clima no nosso planeta. Mas lá está, a agenda não o permite. E essa mesma agenda também não permite contar a verdade insofismável do facto de ser a temperatura a puxar pelo CO2 e não o contrário. Como se o CO2 fosse um gás venenoso! Mas enfim... todos os dias ouvimos as maiores barbaridades com um um ar 
grave e sério de quem as diz e muitos de nós acatam-nas sem sequer pensar. E esse é um dos principais problemas hoje em dia: deixámos de pensar. Qualquer notícia veiculada pelos maiores "fake news makers" a nível mundial, os media tradicionais, são entendidas como a "verdade suprema". Exactamente porque é mais fácil não pensar e juntarmo-nos ao rebanho.


O ser humano tem que se preocupar com o ambiente e a poluição que provoca. Isso sim, é um assunto sério e honesto e que diz respeito a todos e a cada um de nós. 


A agenda a que me refiro é a agenda dos mesmos de sempre: a criação de mais impostos, taxas e taxinhas a nível mundial, impedindo que os países mais pobres prosperem e vivam cada vez pior e os países mais ricos sejam cada vez mais esbulhados da sua riqueza, carregando-os com cada vez mais contribuições. 


Esta agenda que, está à vista de todos, só não a combate quem não quer. E, como todos sabemos, tem origem nos mesmos de sempre. Aqueles que tudo fazem para que vivamos cada vez pior. Não é difícil descobrir... 
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De Anónimo a 02.07.2019 às 23:17


Alterações climáticas, no planeta Terra, sempre as houve e haverá. Com ciclos diários, anuais, seculares e milenares.

Que são essencialmente provocadas pela acção do homem, está por demonstrar, inequívocamente. Argumentos de autoridade, com ou sem causa própria, são falhos de credibilidade.



Excelente parágrafo: " Os Estados, com certeza, têm um papel nesse processo, por exemplo, quando resolvem taxar o trabalho e o capital em detrimento do consumo, ou ...".

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