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A sinalização de virtude a propósito da Universidade Católica

por henrique pereira dos santos, em 29.09.22

Tinha a intenção de fechar hoje a série sobre o movimento ambientalista, e depois faria um post sobre a reacção de sinalização de virtude a propósito da aplicação de regras de acesso a curso de medicina da Universidade Católica.

João Miguel Tavares, publicando hoje no Público uma crónica tão representativa dessa sinalização de virtude, acabou por me trocar as voltas e vou fazer primeiro este post, deixando o outro para outra altura.

No primeiro curso de medicina da Universidade Católica há um aluno que entrou no contingente de vagas supranumerárias, por ser descendente em linha recta de um benemérito insigne da Universidade.

Aqui d'El Rey, "é totalmente inaceitável numa instituição que beneficia do estatuto de universidade pública", escreve João Miguel Tavares e, acrescenta, "sobretudo, numa instituição que se assume orgulhosamente católica".

Note-se que o mesmo João Miguel Tavares responde a si mesmo "a Católica poderia sempre argumentar que queria ser uma Harvard portuguesa: o preço de aceitar os filhinhos de papás multimilionários traduzir-se-ia em rios de dinheiro para construir uma uma universidade de topo".

Descontando o habitual tom com que em Portugal se fala dos muito ricos, João Miguel Tavares explica bem o problema: para fazer boas universidades são precisos recursos e as melhores do mundo usam mecanismos de financiamento que, frequentemente, conduzem à introdução de regras cujo objectivo é cativar o interesse dos muito ricos em desviar parte dos seus recursos para essas universidade.

Portanto, e em primeiro lugar, esta é a questão: a captaçãode recursos para que seja possível ter melhores universidades (não vou perder tempo com o argumento de que incluir o filho da senhora da secretaria nos mesmos 3% de vagas supranumerárias é beneficiar a endogamia porque penso que o próprio João Miguel Tavares, quando lhe passar a indignação, reconhecerá que é um argumento completamente absurdo).

A sinalização de virtude assenta em dois ou três argumentos, uns falsos, outros grosseiramente pouco rigorosos e em muita omissão de informação.

Diz João Miguel Tavares que o candidato com 15,8 valores ultrapassou uma boa vintena de outros candidatos que existirão entre os 16,9 da seriação geral e esses 15,8. Sim, é verdade que se não fosse pelo mecanismo excepcional esse aluno de 15,8 não entraria no curso, mas nenhum dos outros o substituiria, ficariam todos de fora, na medida em que se trata de vagas supranumeárias, o seu não preenchimento não aumenta as vagas do contingente geral.

Ou seja, a ausência da regra apenas tinha uma consequência para os alunos: todos ficavam pior, haveria menos um aluno no curso, nada mais.

Mas João Miguel Tavares diz mais: "atribuem vantagens aos filhos e netos dos funcionários e patrocinadores da casa, independentemente dos seus méritos individuais".

O problema com esta afirmação é o de que é falsa, porque para que estes alunos possam entrar há critérios mínimos, que aliás se aplicam a todos os candidatos, nomeadamente uma média de 15 valores, ou seja, não basta ser o filho da senhora da secretaria ou o neto de um benemérito insigne - estatuto que é atribuído por um órgão colegial da universidade, não é uma decorrência directa do valor de uma determinada contribuição-, é preciso juntar a essa possibilidade de concorrer pelos 3% de vagas supranumerárias o mérito individual de ter, pelo menos, média de 15.

O maior erro de análise desta sinalização de virtude, parece-me, está no facto de se considerar que a seriação por nota traduz essencialmente o mérito individual dos candidatos, omitindo que o factor que, em Portugal, está mais correlacionado com as notas dos alunos, é a condição sócio-económica das famílias, esse sim, o verdadeiro escândalo do nosso sistema de ensino, em primeiro lugar, e do nosso sistema de acesso à universidade, em segundo lugar, em especial nos cursos com notas mais altas de ingresso.

João Miguel Tavares reconhece que injustiças sempre haverá, omitindo que a principal injustiça está na forma como o nosso sistema de ensino e de acesso ao ensino superior penaliza quem vem de famílias com menos recursos, para se concentrar no "descaramento desta injustiça em particular".

Depois de reconhecer que a generalização de regras deste tipo poderia resultar em melhores universidades (e, acrescento eu, em universidades mais inclusivas com base no mérito, porque liberta recursos para o apoio a alunos sem recursos para pagar os custos de frequência em universidades de topo), depois de reconhecer que injustiças sempre haverá, omitindo que estas regras se aplicam apenas a vagas supranumerárias, não afectando as entradas no contingente geral, omitindo que essas vagas só existem no máximo até 3% do contingente geral, e na medida em que existam candidatos que, simultaneamente, demonstrem que cumprem requisitos mínimos de nota e os critérios de acesso a esse contingente especial, afinal o escândalo é que esta injustiça é descarada.

E, sendo o respeitinho muito bonito, podemos esquecer o escândalo do nosso sistema de ensino produzir resultados em notas que se correlacionam com o estatuto económico das famílias e podemos esquecer o escândalo de este problema só existir por causa da cedência do Estado aos médicos instalados e à ordem dos médicos, porque esses são escândalos que não são descarados.

Se dúvidas houvesse sobre o que está em causa nas reacções de que a crónica de João Miguel Tavares é apenas um bom exemplo (há as habituais reacções jacobinas, trogloditas e infantis, eu escolhi comentar um texto que não é nada disso), a comparação final entre a venda de indulgências e o estabelecimento de regras deste tipo, desfaria qualquer dúvida: é apenas a sinalização de virtude que está em causa.

O problema real não é a católica ter regras destas, o problema é termos sempre a mania contestar regras eficazes para mobilizar recursos, do que resultam melhores soluções sociais, com o argumento de que há alguém em particular que é mais beneficiado que outros, sendo por isso preferível ficarmos todos pior a aceitar a realidade tal como ela é.


38 comentários

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De jo a 01.10.2022 às 20:07

Quem fez a contribuição relevante foi o pai ou o avô do aluno não foi o aluno. 
O aluno foi para a vaga comprada pelo parente. 
Não é o mesmo que atribuir uma vaga a alguém pelos méritos dessa pessoa. 
Fala-se acima de se fazerem entrevistas aos alunos. O que perguntavam a este?
Quem são os teus pais? E os teus avós?
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De henrique pereira dos santos a 01.10.2022 às 20:45

Exacto, são os descendentes directos, desde que tenham demonstrado critérios mínimos de ingresso (como média de 15, e coisas que tais) que podem aceder a um contingente especial que, no máximo, pode ser 3% do contingente geral.
Se se quer obter contribuições, que beneficiam toda a gente, é normalmente avisado associar um conjunto de benefícios a esses doadores.
E é também avisado que se estabelecem critérios mínimos de mérito do candidato (a nota mínima) e que não se incluam esses potenciais beneficiários no contingente geral, para não prejudicarem terceiros.
Portanto, ainda nãoi percebi qual é o seu problema com o facto de ser o descendente directo de um beneficiáro relevante poder dar origem a um benefício que não é obtido à custa de ninguém e que resulta de uma contribuição que beneficia toda a gente.
Não consigo perceber qual é o problema.
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De jo a 02.10.2022 às 20:13

Das duas uma, ou a Católica aceita alunos para além do número razoável e estes alunos fazem parte desse número, ou o critério de supranumerário é artificial. No limite a Católica, com os mesmos professores e instalações pode dizer que tem duas vagas e as restantes estão à venda porque são todos supranumerários. 
Se me disser que os alunos supranumerários são mantidos à parte e a sua educação não consome nenhum recurso alocado aos outros, essa conversa faz sentido. Caso contrário é conversa para boi dormir.
Seria talvez mais católico serem homenzinhos e dizerem, "temos vagas à venda, custam X e quem quiser e cumprir os requisitos pode-se candidatar".
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De henrique pereira dos santos a 03.10.2022 às 06:58

Está mesmo difícil perceber o mecanismo, mas eu tento explicar-lhe mais uma vez.
Não existem vagas à venda por um determinado preço.
O que existe é uma figura de benemérito relevante da universidade.
Essa categoria é atribuída por um orgão colegial da Universidade Católica e, naturalmente, como acontece em todos os mecanismos desse tipo, confere ao beneficiário algumas regalias (o Estado faz exactamente o mesmo com o mecenato, ao atribuir vantagens fiscais para motivar doações mecenáticas).
Uma dessas regalias é o facto dos seus descendentes directos poderem integrar o contigente supranumerário de entradas na universidade, desde que cumpram os requisitos mínimos de entrada (por exemplo, média de 15 valores).
Ou seja, não há nenhum mecanismo directo de compra de vagas, porque o estatuto de benemérito relevante não é automático, demora tempo e não confere um benefício incondicional a terceiros.
A sua ideia de que a Católica pode estabelecer um número de vagas que entender para cada curso é uma ideia errada, não é assim, o estabelecimento do número de vagas é administrativo e não tem relação directa com a capacidade de receber alunos.
O aluno em causa vai, com certeza, consumir recursos, mas como vai pagar as propinas, está nas mesmas circunstâncias dos outros, excepto no mecanismo de entrada, em que tem uma possibilidade que não está aberta a outros, mas que, se não a usar, não vai beneficiar ninguém porque ninguém pode usar as vagas supranumerárias fora das condições definidas.
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De jo a 03.10.2022 às 10:59

As vagas supranumerárias exitem, custam recursos, existe alguma razão porque são limitadas.
Compreendo a noção de benemérito, mas não a transmissibilidade para os filhos das regalias a que um benemérito tem direito. Se a vaga é para o benemérito, a discussão é outra, nomeadamente saber se o benefício justifica a benesse, se é para outra pessoa, é uma compra de vaga pelo pai ou avô.
Pensava que se defendia a primazia aos melhores, mas afinal a Católica defende a primazia aos descendentes dos melhores, mesmo se não conseguem fazer o que os outros fazem.
Somos todos irtmãos em Cristo... só que alguns são filhos e outros enteados,
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De henrique pereira dos santos a 03.10.2022 às 11:20

Seria um bocado estúpido partir do princípio que permitir a entrada num contingente especial da universidade aos beneméritos seria entendido pelos beneméritos como uma vantagem, não é?
E é igualmente estúpido pretender que uma regra que se aplica a 3% das vagas do contingente geral, sob condição de critérios de mérito mínimos, é que define se se dá primazia aos melhores ou não.
Para além de ser igualmente estúpido pretender que os que têm melhores notas são os melhores, quando o critério social que melhor explica essas notas elevadas é a condição sócio-económica da família.

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