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A Portugueza e os seus mitos

por Daniel Santos Sousa, em 06.10.23

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Na Biblioteca Nacional Digital é possível ter acesso à versão original de "A Portugueza" (1890), não deixa de fascinar ao admirar a capa da partitura onde sobressaem as cores nacionais azul e branca. Contudo, em torno da canção, depois hino nacional, prevalecem algumas dúvidas e certos mitos que aqui vou procurar explicar.

1. Hino miguelista?

Consta-se que tenha sido dedicada a D.Miguel II, então exilado na Áustria, embora não haja qualquer edição de "A Portugueza" que o comprove. Mas a suposta dedicatória a D.Miguel II pode ter uma explicação (até prova em contrário): D. Miguel II veio a Portugal incógnito, afrontando a lei da proscrição e embora a viagem fosse conhecida das autoridades e do próprio rei D. Carlos ninguém o incomodou. Ter-se-á encontrado com Alfredo Keil que por essa altura terá composto um outro hino dedicado (?) e com quem terá mantido correspondência posteriormente.

É curiosa esta ideia, que suscita tantas dúvidas, porque, de facto, Keil foi amigo do príncipe exilado, mas nunca ninguém encontrou provas de tal dedicatória. O que se supõe é que Keil tenha enviado a D. Miguel II um exemplar da “Marcha” com dedicatória, mas isto não quer dizer, no entanto, que a obra lhe fosse dedicada. Leia-se o livro de Maria Emilia Vasconcelos - em Cad. Vianenses, Viana do Castelo, 12, 1982 p 269-293 e13, 1989, p.113-137, intitulado “Miguelismo no Alto-Minho", Conta-se que, a certa altura, D. Miguel II veio a Portugal, incógnito, afrontando a lei da proscrição, e embora a viagem fosse conhecida das autoridades e do próprio rei D. Carlos ninguém o incomodou. D. Miguel II ter-se-á encontrado com Alfredo Keil que por essa altura terá composto um outro hino. Sabe-se também que o príncipe terá mantido correspondência com o compositor.

2. Influenciado pelo fado e pela Marselhesa?

Há dúvidas quanto às influências de Keil nas composição do hino, se foi influenciado pelo fado, pela Marselhesa e pelo hino da Maria da Fonte. Relativamente à influência do fado tenho dúvidas, mas José Osório de Oliveira, em "Psicologia de Portugal e outros ensaios" (1934) garante que Keil "soube, de facto, aproveitar a cadência do fado sem deixar de fazer um hino heróico." Quanto à Marselhesa, facilmente podemos constatar num paralelismo entre os versos “pela pátria lutar” e “contra os canhões” com o “aux armes citoyens” do hino francês. A influência francesa não era estranha à boa sociedade da época e contribuiu para alcançar uma tonalidade musical grandiloquente.

3. Contra os "bretões"?

Outro mito que corre de boca em boca relaciona-se com uma suposta alteração da letra da canção, onde se lê "contra os canhões marchar, marchar", na letra primitiva seria: "contra os bretões marchar marchar", o mesmo pode ser encontrado na Wikipédia. Lendo Jaime Nogueira Pinto, o livro "Nobre Povo - os anos da República" novamente a mesma declaração é feita. Todavia, em nenhuma das edições anteriores a 1910 surge tal referência, nem mesmo nos jornais da época (pelo menos é o que dizem aqueles que têm investigado o assunto). O historiador Rui Ramos nega terminantemente que os versos "contra os bretões marchar, marchar" constassem na edição original e apenas admite que, talvez, possa ter acontecido em alguma sessão privada e esporádica da qual ele não tem notícia alguma.

A edição disponibilizada pela BND é das mais antigas (creio que será mesmo a primeira) e na letra lê-se: "contra os canhões"...

Talvez a ideia da canção apelando à guerra com a Inglaterra tenha vingado no contexto conhecido em que "A Portugueza" foi composta, não será despiciente indagar que o próprio povo, cantando a marcha patriótica nas ruas, substituísse a palavra "canhões" por "bretões", afinal, este foi um período de exaltações políticas, imediatamente atiçadas pelo ultimato britânico, seguido do 31 de Janeiro (a primeira tentativa para proclamar a república), a época em que Guerra Junqueiro escreve "Finis Patriae", carregado de simbologias antevendo o fim da pátria, também a época em que é criada a efémera "Liga Patriótica do Norte".

4. Hino patriótico e monárquico?

O hino patriótico rapidamente ficou conhecido, mesmo o rei D.Carlos chegou a ouvi-lo, salvo erro na Praça do Campo Pequeno, e conta-se também que a rainha Dona Amélia terá ensinado a canção aos príncipes D. Manuel e D. Luís Filipe.

O certo é que, à época (ainda em 1890) foram impressos e distribuídos em Lisboa e na província vários milhares de exemplares da partitura, permitindo a sua grande difusão. A música tornou-se conhecida desde as agremiações populares, aos teatros, incluindo o S. Carlos, até aos salões das elites, às camadas estudantis e intelectuais republicanas.

Mais tarde os republicanos apropriaram-se da música, como é sabido, e em 1911 é escolhida para hino nacional, sem que o autor da melodia, Alfredo Keil, tivesse feito alguma coisa por isso. Não há nenhum indício de republicanismo em Keil, e muito menos em Henrique Lopes de Mendonça, o autor da letra. Homem de grande sensibilidade, Keil foi também um exímio pintor, aliás, um dos seus principais compradores era o rei D. Luís (mantinha uma relação próxima à casa de Bragança).

A composição da marcha patriótica derivou de um impulso, de um sentimento explosivo provocado pelo ultimato britânico, tudo o mais foram as circunstâncias que o ditaram, algo que nem o próprio autor da melodia podia adivinhar ou programar. O sentimento patriótico de Keil e Mendonça virou republicano? Seria redutor dizê-lo. Antes criaram um hino para que esta nação antiga não se esqueça do seu passado valoroso, de grandeza e coragem, e que tenha forças para conquistar o futuro.


4 comentários

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De JPT a 06.10.2023 às 12:21

"Se non è vero è ben trovato".À bandeira é que não há volta a dar, é mesmo a da carbonária, ligeiramente adaptada, tal como as bandeiras de Angola e de Timor-Leste são versões marteladas das do MPLA e da Fretilin, e a bandeira da Guiné-Bissau é igual à do PAIGC. Coisas do terceiro mundo, enfim.
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De urinator a 06.10.2023 às 17:43

«Em Portugal, a reacção popular contra os ingleses e contra a Monarquia, que permitira esse género de humilhação, manifestou-se de várias formas. “A Portuguesa” foi composta em 1890, por Henrique Lopes de Mendonça (letra) e Alfredo Keil (música), ambos membros da Maçonaria, e foi utilizada desde cedo como símbolo patriótico e republicano. Aliás, a 31 de Janeiro de 1891, numa tentativa falhada de golpe de Estado que pretendia implantar a República em Portugal, esta canção já aparecia como (Publicado em freemason.pt) (https://www.freemason.pt/) a opção dos republicanos para hino nacional, o que aconteceu, efectivamente, quando, após a instauração da República a 5 de Outubro de 1910, a Assembleia Nacional Constituinte a consagrou como símbolo nacional, a 19 de Junho»
« A sua iniciação na Maçonaria ter-se-á dado em 1893, na loja Gomes Freire, de Lisboa, com o nome simbólico de Meyerbeer.  Giacomo Meyerbeer (1791-1864) foi um compositor alemão.

Fonte: A. H de Oliveira Marques (1986), Dicionário de Maçonaria Portuguesa, II volume, Editorial Delta, cols. 819-820.»

li algures que pertenceu a loja Cosmopolita e se ignora a data da morte

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De Deixa o Eça em paz a 06.10.2023 às 23:25

Nunca é demais reler o que Eça escreveu sobre o Ultimato e a grande efervescência nacional adjacente.
Bem digo eu, Eça seria corrido à bengalada do Panteão por talassas e republicanos.
Faz falta.
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De pitosga a 07.10.2023 às 12:24


Como norma, Daniel Santos Sousa, fez bem o trabalho-de-casa.
Como brincadeira que foi real, num desafio de futebol Portugal-España no estádio do Jamor, eu ouvi a malta cantar: contra os espanhóis marcha marchar.

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