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Fui reparando que nuns parques infantis podia brincar com os meus netos e noutros não.
Cansado de ver alguns parques infantis fechados, tratei de saber por que razão as coisas eram assim.
Pois bem, a conclusão a que cheguei é que as normas e recomendações da DGS são tão boas, mas tão boas, que a câmara de Oeiras fecha os bebedouros e abre os parques infantis, enquanto a câmara de Lisboa as interpreta como sendo para manter abertos os bebedouros e fechar os parques infantis, sem prejuízo de haver juntas de freguesia em Lisboa que interpretam as directivas da DGS como a câmara de Oeiras e têm os bebedouros selados e os parques infantis abertos, ao contrário das que as interpretam como a Câmara de Lisboa e abrem os bebedouros e fecham parques infantis.
Resumindo, percebi que a possibilidade dos meus netos andarem de baloiço depende de umas regras únicas e da interpretação que delas fazem as entidades gestoras dos baloiços: se o parque é gerido directamente pela câmara os baloiços não baloiçam, se é gerido por uma junta de freguesia, depende da junta de freguesia, numas os baloiços baloiçam, noutras se os baloiços baloiçarem, morremos todos de covid.
Antes de 10 de Julho de 2020 a coisa era clara, estavam os parques infantis todos fechados (e todos sabemos como isso foi fundamental para impedirmos a actividade viral na fonte, com os resultados bem visíveis na forma como estamos a controlar magnificamente o crescimento de casos positivos logo que as condições ambientais se tornaram mais favoráveis à actividade viral).
Claro que os miúdos continuavam a ir aos jardins, jogavam à bola, andavam de bicicleta, os skates atropelavam os carrinhos de bebés, mas tudo se passava fora dos limites dos parques infantis, rigorosamente fechados, e a única diferença é que havia uma maior confusão nas partes dos jardins que não eram parques infantis.
Mas depois veio a DGS e Graça Freitas foi peremptória: as crianças devem brincar no modelo de "bolhas familiares".
Não me lembro de alguém ter perguntado a Graça Freitas de onde lhe vinha a legitimidade para querer impôr que os meus netos não poderiam estar juntos - numa altura em que as creches já estavam abertas - ou que se eu brincasse com a Teresa não poderia brincar com o Francisco, resultado que a DGS queria obter através do fecho de parques infantis.
Graça Freitas, especialista em gestão de espaço público, argumentou muito bem: "Pela sua natureza estes parques são habitualmente não vigiados, são públicos e de utilização pública, têm equipamentos, mas não têm um concessionário responsável que permita a desinfeção regular e a limpeza. E também por serem crianças, muitas vezes não se consegue manter a distância social. Não consideramos prioritário, nem de longe, nem de perto, a abertura de parques infantis porque as crianças têm todo o ar livre para brincar".
Por acaso os parques infantis até têm responsáveis pela sua manutenção, que são entidades públicas, e não sei a que propósito a Direcção Geral de Saúde decidiu que as câmaras e juntas de freguesia eram incompetentes para exercer essa competência que lhes está atribuída, e muito menos percebi a argumentação que se aplica aos parques infantis, que são ao ar livre, mas não se aplica aos bancos e outros equipamentos do espaço público (sim, cara Graça Freitas, há dezenas de equipamentos no espaço público, desde estatuária a que os miúdos trepam, a lagos e fontes em que os miúdos se debruçam e, mais que tudo, miúdos, muitos outros miúdos que se empurram, se abraçam, se mordem, se batem, se agarravam, violenta ou ternamente, que horror, Graça, que horror, tantas oportunidades de contágio).
Graça Freitas aconselha-nos mansamente: "Aconselhamos que as brincadeiras ocorram ao ar livre com bolhas familiares, ou seja, crianças do mesmo agregado familiar, sem cruzamento de risco com crianças de outros agregados familiares. Isto também se aplica às festas de família e jantares e almoços. Vimos de casas diferentes, com riscos diferentes e realidades diferentes".
O que tenho para lhe dizer, cara Graça, é que se os conselhos valessem de alguma coisa, eram vendidos, não eram dados e, neste caso, lamento dizê-lo, sou eu que tenho de gerir os meus riscos, os meus filhos os riscos deles e dos meus netos.
A sua pulsão totalitária, que a levou a aceitar e subscrever normas desumanas para a recepção de crianças em instituições de acolhimento sem reparar na bárbara desumanidade que quis impôr aos outros, não passa disso mesmo, de uma ânsia de controlo de uma epidemia que se está nas tintas para os seus conselhos e vai progredindo de acordo com o que seria de esperar a partir do que se aprendeu nos últimos cem anos de epidemiologia.
Provavelmente conta com a mansidão dos súbditos, e tem razão para isso, a sociedade civil é frágil.
Terá reparado como o seu conselheiro Filipe Froes, um dos mais influentes arquitectos da estratégia de gestão da epidemia é, ao mesmo tempo, o responsável do gabinete de crise da ordem dos médicos, ou seja, quando a ordem dos médicos se pronuncia sobre a gestão da epidemia, não é uma entidade independente que se pronuncia sobre outra entidade, é Filipe Froes da ordem dos médicos que fala de Filipe Froes da Direcção Geral de Saúde.
Repare que quando a associação dos médicos de saúde pública se pronuncia sobre a gestão da epidemia, não é uma entidade independente que se pronuncia sobre terceiros, é Ricardo Mexia, presidente dessa associação que fala de Ricardo Mexia, funcionário do Instituto Ricardo Jorge, a mais influente instituição pública que aconselha a Direcção Geral de Saúde.
E o resto é mais ou menos igual: eu pego nos meus netos e mudo de freguesia para os levar aos baloiços, encolhendo os ombros à parvoíce das bolhas familiares.
E a imprensa faz o que faz hoje o Público: uma capa sensacionalista com o facto de hoje se chegar ao primeiro milhão de mortos com covid, sem fazer qualquer referência às discussões sobre esta classificação, sem qualquer referência ao facto da esmagadora maioria dos que morreram terem um prognóstico de vida de poucas semanas ou meses e sem ao menos explicar que no mesmo período morreram à volta de 40 milhões de pessoas no mundo por outras causas, para que se possa ter uma ideia do que significa um milhão de mortos durante a epidemia.
Nisso, cara Graça, pode estar descansada: temos profundamente gravada a mansidão dos súbditos e, durante uns meses, a Graça pode gozar a graça de achar que põe e dispõe da vida de milhares de pessoas, determinando que os primos não podem brincar com os primos, sem ter a maçada de explicar qual é o risco associado a isso, bastando-lhe dizer as palavras mágicas: estamos em pandemia, portanto ou fazem o que eu digo, ou morremos todos amanhã.
Que nada do mundo ficcionado que existe na sua cabeça, um mundo em que proibir a venda de álcool depois das oito impede as pessoas de se juntarem na rua, um mundo em que fechar parques infantis impede as crianças de cruzar bolhas sociais, um mundo em que regras de acesso a espaços fechados não criam amontoados de pessoas à porta, um mundo em que despersonalizar o quarto de velhos em fim de vida é a melhor solução para esse fim de vida, um mundo em que colocar crianças de risco em absoluto isolamento é a melhor forma de as defender, um mundo em que criar regras de entrada absurdas nas escolas impede a mistura das bolhas sociais dos alunos, que absolutamente nada desse mundo tenha qualquer relação com o mundo real das pessoas concretas calculo que lhe seja indiferente, como é costume nos privilegiados que fazem regras para os outros, deixando as excepções para si próprios, como quando se mandava toda a gente para casa e imensas comitivas políticas continuavam a fazer acções de propaganda em hospitais.
É que se não for assim, se verdadeiramente não lhe forem indiferentes os outros, o mais que posso desejar é que tenha um stock bem grande de comprimidos para dormir, porque vai precisar deles quando finalmente perceber o imenso sofrimento para que está a contribuir à conta de regras estúpidas, inúteis para a gestão da epidemia, mas com efeitos reais na vida de pessoas concretas.
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