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A imprensa, as eleições e nós

por henrique pereira dos santos, em 15.02.24

Há um grande incómodo das elites perante debates eleitorais como o que existiu entre Mariana Mortágua e Ventura.

A mim parece-me que esse incómodo é do mesmo tipo de alguém que se irritasse por num jogo de futebol estar tudo aos pontapés à bola em vez de fazer ballet, que é muito mais bonito e civilizado.

O problema não está nos debates, acho que José Mendonça da Cruz tem toda a razão neste seu artigo, mas sim na forma como a imprensa trata a campanha eleitoral.

Em vez da imprensa se dedicar a avaliar factos que nos permitam votar de forma mais consistente, entretém-se a fazer comentários e a dar umas ridículas notas com resultados estranhos: todos dizem que André Ventura é um tribuno temível, com uma oratória demagógica mas eficaz, que é sempre muito difícil debater com ele mas, de acordo com os comentadores, perde os debates todos (parece que há anos ficou célebre um debate em que Rui Tavares teria arrasado André Ventura, mas depois o derrotado teve cinco vezes mais votos que o vencedor).

Ou melhor, parece que neste último debate com Pedro Nuno Santos os comentadores dizem que terá empatado, o que, como dizia alguém, as pessoas comuns interpretam como querendo dizer que Pedro Nuno Santos levou um banho.

Nada que incomode muito a imprensa.

A moderadora pega numa medida do programa do Chega que pretende reduzir o número de recursos judiciais, mesmo com perda de garantias dos cidadãos (diz a jornalista que é o que está escrito no programa do Chega, eu dispenso-me de ir verificar) e André Ventura diz que sim, é preciso fazer isso e dá o exemplo de Sócrates que já fez umas dezenas de recursos só para ir adiando o julgamento. Pedro Nuno Santos, questionado sobre o que pensa disso, atira para canto (o que é legítimo) com uma bicada em André Ventura, dizendo que ele, Pedro Nuno Santos, nunca foi condenado, portanto nunca precisou de recorrer, mas que André Ventura, quando foi condenado por difamação, recorreu. André Ventura desvia a bicada dizendo que nunca foi condenado por difamação, mas sim num processo cível (irrelevante para as pessoas comuns, mas serve para desviar as atenções sobre a incoerência de achar que os recursos serem excessivos em geral, mas adequados no seu caso particular). Depois os dois dedicam-se ao ping-pong sobre se foi condenado por difamação ou não.

O que faz o Observador? Vai verificar. Aquilo em que um diz uma coisa e outro diz outra (se foi por difamação ou não)? Nada disso, vai verificar aquilo sobre o qual não existia qualquer dúvida e os dois estavam de acordo, que André Ventura tinha sido condenado, matéria já de si sem interesse, mas colocada da forma mais favorável possível para Pedro Nuno Santos que nem numa matéria preparada foi capaz de ser suficientemente rigoroso, ou admitir o lapso quando contestado numa questão lateral, na qualificação do que levou à condenação de André Ventura.

Até são os comentadores (não estou a falar dos jornalistas que comentam, que é uma categoria à parte de comentadores, nunca se percebendo quando estão a fazer jornalismo ou comentário político, confusão que aliás se estende ao que escrevem e dizem que é trabalho jornalístico puro e duro) que acabam por fazer análises mais concretas, como Alexandre Homem Cristo neste artigo sobre abandono escolar ou Fernando Figueiredo neste artigo sobre defesa.

Tomemos o exemplo da manchete de hoje do Público: "Rendas têm maior subida em 30 anos apesar do aumento da oferta de casa", a que se segue, ainda na primeira página, o sub-título ou lead ou lá como lhe queiram chamar "A subida da oferta de casas para arrendar, apontada como chave para fazer baixar as rendas, está a falhar no objectivo. Só em Janeiro, as rendas cresceram quase 6%, o maior aumento em 30 anos".

Espantado com esta descoberta sensacional do Público que consiste em se aumentar a oferta e o preço ao mesmo tempo, o que só acontece, de maneira geral, quando a procura aumenta mais que a oferta, fui ler o artigo em que se baseia esta manchete.

Tudo treta de Pedro Nuno Santos que a imprensa trata como coisa séria.

Aparentemente, a coisa começa na apresentação do programa do PS para estas eleições (não fui verificar, evidentemente) em que, de acordo com a peça jornalística, Pedro Nuno Santos terá dito: "Estas medidas já começaram a produzir resultados. O stock de habitação disponível para arrendamento disparou 55% no último ano, 63% em Lisboa, 113% no Porto. Estes números não são inventados por nós, são de um portal que intermedeia a venda de casas".

Qual é a notícia aqui, para mim?

Que o Secretário-Geral do PS, e candidato a primeiro-ministro, prefere pegar nos dados de um portal imobiliário (esquecendo todos os outros) já de si pouco relevantes (ter mais anúncios de casas para arrendar não é o mesmo que ter aumentado o stock de casas para arrendar), a pegar nos dados do INE que demonstram uma diminuição da celebração de contratos de arrendamento, para justificar a sua acção política.

Isto é a única coisa jornalísticamente relevante, tudo o resto é propaganda barata, como aliás a própria peça do Público demonstra, parágrafo a parágrafo, ao mesmo tempo que escolhe para manchete de primeira página, exactamente o essencial da manobra de propaganda, tomando como certo que o facto de um portal ter mais anúncios de casas para arrendar é a demonstração de que há uma subida da oferta de casas e esquecendo os indícios contrários: menos contratos celebrados (fonte, INE) e rendas mais altas (fonte, INE).

Note-se que estas rendas que estão a ser apreciadas dizem respeito a todo o arrendamento, portanto tenderão sempre a subir na medida em que vai havendo contratos antigos a terminar de cada vez que morre alguém e os contratos novos são sempre por valores muito acima da média dos contratos de arrendamento existentes, portanto retirar conclusões de curto prazo sobre o efeito das medidas do pacote +Habitação destes dados é uma coisa do domínio da astromância, não do jornalismo, mas essa não é a questão central aqui.

A questão central é mesmo esta: que os jogadores de futebol joguem futebol, é normal, que as companhias de ballet passem o tempo a discutir futebol em vez de demonstrar as diferenças entre o ballett e o futebol, é uma pena e uma intrujice.


11 comentários

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De Albino Manuel a 15.02.2024 às 11:18

Elites? Que elites? Em Portugal? Elites do quê? Do dinheiro não será, que isto é um país de falidos e são poucos os que escapam. De aristocracia também não. Exceptuando um ou outro, o que sobra é a burguesia falida que nos esmifrou com o liberalismo monárquico. Das universidades? Bom, comparadas com o resto da Europa são espeluncas. Das artes e letras? Assim tipo está entre os 10.000 melhores da Europa entre os 30 e os 40 anos? 
Só se for a elite do futebol, aí de facto estamos na dianteira.
Não é por acaso que somos há séculos o país mais pobre - e atrasado - da Europa ocidental.
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De balio a 15.02.2024 às 16:33


Só se for a elite do futebol, aí de facto estamos na dianteira.


É verdade. E seria bom que, em muitas outras indústrias, o país copiasse a forma de atuar do futebol, com o objetivo de estar na dianteira nessas indústrias tal como está na do futebol.
Por exemplo: o futebol forma os seus jogadores a suas próprias expensas. Os formandos ficam presos aos clubes que os formaram mediante contratos, os quais asseguram que mais tarde esses clubes podem vender os jogadores formados a outros clubes, recuperando o investimento feito na sua formação. Seria interessante copiar este modelo noutras indústrias, por exemplo na medicina.
Outro exemplo: os futebolistas portugueses emigram em grande número, e em compensação Portugal faz imigrar muitos futebolistas estrangeiros. Nos clubes portugueses nunca faltam jogadores: aqueles que emigram são eficazmente substituídos por imigrantes. Seria interessante que noutras atividades económicas fôssemos capazes de fazer o mesmo: substituir eficazmente os portugueses que emigram por estrangeiros, deixando de ver a emigração dos portugueses como um problema.
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De O apartidário a 15.02.2024 às 11:24

A acreditar nos poligrafos ao serviço dos média o sr Ventura é sempre o mais mentiroso(não sei ,mas talvez fosse mais avisado criar um poligrafo para checar os poligrafos para tirar a limpo).
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De O apartidário a 15.02.2024 às 15:17

Curiosamente ouvi na rádio Observador o sr PNS falar auto-titulando-se como primeiro-ministro. Agora mesmo fui ao sapo actualidade (na página sobre as legislativas) e encontrei a mesma frase mas alterada/revista . Vejamos:

Pedro Nuno Santos falava no final de uma visita às obras em curso na linha ferroviária do Oeste, no troço entre Meleças e Torres Vedras, depois de questionado sobre o caso em que o ex-presidente da Câmara do Funchal Pedro Calado e dois empresários estiveram 21 dias detidos para interrogatório em Lisboa, assim como sobre o facto de os governos da República e da Madeira terem caído em processos em que as suspeitas de corrupção não foram confirmadas pelos juízes.

“Enquanto cidadão e candidato a primeiro-ministro, é óbvio que me preocupa que pessoas estejam detidas 21 dias — e sobre isso que não haja a menor duvida. Mas, enquanto candidato a primeiro-ministro, não farei comentários sobre casos judiciais em concreto”, respondeu.

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De balio a 15.02.2024 às 11:47


menos contratos [de arrendamento] celebrados (fonte, INE) e rendas mais altas (fonte, INE)


Eu questiono como produz o INE estes números, quando muitos contratos de arrendamento não são celebrados às claras nem dão lugar a recibos passados.


Ademais, o que é relevante não é o número de contratos (novos) de arrendamento que são celebrados em cada mês, mas sim o número de contratos que se encontra em vigor.
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De Octávio dos Santos a 15.02.2024 às 13:40

«Em vez da imprensa se dedicar a avaliar factos que nos permitam votar de forma mais consistente, entretém-se a fazer comentários e a dar umas ridículas notas com resultados estranhos: todos dizem que André Ventura é um tribuno temível, com uma oratória demagógica mas eficaz, que é sempre muito difícil debater com ele mas, de acordo com os comentadores, perde os debates todos (parece que há anos ficou célebre um debate em que Rui Tavares teria arrasado André Ventura, mas depois o derrotado teve cinco vezes mais votos que o vencedor).»



É este, precisamente, o cerne da questão... e da fraude que, ultimamente, estes debates, neste formato, constituem. O diminuto - e ridículo - tempo (30 minutos, ou menos) que é concedido aos candidatos aumenta a pressão e a conflitualidade, e, logo, as interrupções e as sobreposições constantes. Depois, os «comentadeiros» intelectualmente desonestos (porque se pode ser rigoroso mesmo admitindo a inclinação ideológica) queixam-se - durante uma hora, ou mais - do «baixo nível» dos debates, inevitável devido à brevidade daqueles. 
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De balio a 15.02.2024 às 16:36


Se os debates fossem mais longos, não haveria paciência para os ver. Mesmo meia hora já me parece demais para tanta demagogia.
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De Anónimo a 15.02.2024 às 15:18

Para manter a manjedoura, a mais que prostituída "comunicação sUcial" da paróquia funciona como uma claque futebolística a apoir , histericamente, o Dâmaso Salcede "aggiornato"...
Juromenha
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De lucklucky a 16.02.2024 às 00:56

Mais um texto a demonstrar que o maior problema em Portugal é o Jornalismo.
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De lucklucky a 16.02.2024 às 01:34

O que é que faz que nos programas dos partidos, nos discursos não exista nada sobre a defesa de Portugal e suas Forças Armadas?


Resposta: a monocultura jornalista que por só se interessar por um número reduzido de assuntos reduz a realidade a um baixo número de factos/narrativas.  É estreitíssima a realidade presente no jornalismo.
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De Hugo a 16.02.2024 às 07:30

Impecável.

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