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Naquele tempo, comentavam alguns que o Templo estava ornado com belas pedras e piedosas ofertas. Jesus disse-lhes: «Dias virão em que, de tudo o que estais a ver, não ficará pedra sobre pedra: tudo será destruído». Lucas 21, 5
Agarramo-nos à iconografia do nosso tempo como se fetiches se tratassem. Pretendemos que o nosso tempo se deixe tomar para nós, como se fossemos suficientemente importantes. Chega a ser comovente como nos empenhamos a preservar as obras que nos foram significativas, livros, discos, filmes, pinturas. Restauramos os templos e os palácios, quantas vezes adulterados da sua essência, para se parecerem com o que queremos, para nos justificarmos para lá da nossa época. Somos todos assim: é por isso que os avós contam histórias aos netos, a filha guarda o anel que foi da mãe, e alguns até escrevem memórias… para amparar as paredes do Templo, ameaçado pela ruína, pelo fim.
“Aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando” escreveu Camões a abrir os Lusíadas, o próprio a esculpir em pedra os feitos ímpares dos heróis portugueses, o próprio na obra que o viria a eternizar. Ou talvez não. O que é que fica no mundo gravado para sempre se o próprio planeta e universo são finitos?
Mas, descendo um pouco à terra, ao concreto, quantos dos nossos heróis resistirão na memória comum, depois da partida dos seus contemporâneos? Quantos dos nossos ídolos, no desporto, na literatura, na música e nos espetáculos em geral serão lembrados daqui a cem anos? Curioso como a maioria dos actores e actrizes, cantores e cantoras, escritores e cronistas, de grande sucesso no século XIX foram completamente esquecidos pela voragem do tempo e das novas modas?
E quisemos tanto preservar esses nossos heróis, partilhá-los entre amigos, para legitimar paixões vãs, ou até espúrias... Há uns tempos convidei a minha filha a ver comigo um filme que marcou bastante a minha geração, o Amarcord dirigido pelo cineasta italiano Federico Fellini em 1973. Dotada de sentido critico e interessada nas coisas das artes, certo é que ao fim de meia hora disfarçava mal a impaciência. Tentei então ver o filme pelos olhos dela, e apercebi-me da vulgaridade daquele guião, que sem o contexto que se vivia naquela década desconchavada, soava tão mal na inocência da miúda. Não viu o filme até ao fim e compreendi lindamente. O mesmo acontece com a maioria das centenas de discos e livros que guardo com esmero, cuja “validade” vai caducando aos olhos das novas impiedosas tendências. Talvez por isso há muito que deixei de comprar livros ou música nova, que acompanho com prudente equidistância. Quanto aos livros poupo o tempo para os clássicos e nos discos, além das paixões de juventude, cultivo os esquecidos cantores de vaudeville americanos e anónimos actores e fadistas gravados no princípio do séc. XX em goma-laca ou cera num fonógrafo. Perdido por um, perdido por mil…
Se é certo que nenhuma destas traquitanas, a que nos apegamos, a longo prazo terá qualquer valor, se é certo que aqui estamos de passagem, é indiscutível que na nossa alma nos advém a pulsão de construir, de preservar, de alcançar a eternidade.
De onde nos virá este impulso?
Na imagem: Mosteiro dos Jerónimos, ruínas causadas pelo desmoronamento do corpo central em1878
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