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Uma das coisas mais impressionantes em toda esta discussão sobre o consumo de carne e da sua produção, é a extensão da ignorância básica sobre os processos naturais e da forma como milhares de anos de experiência em agricultura e pecuária os manipulam e usam para satisfação das necessidades das comunidades humanas.
Na militância vegetariana e vegan campeia (com excepções, claro, estou a falar de uma mediania mais vocal) uma pulsão quimicofóbica que postula uma superioridade intrínseca da natureza, como se não morresse muito mais gente por ingestão de produtos naturais que por ingestão de venenos.
Neste mundo quimicofóbico desconhece-se que a diferença entre remédio e veneno é a dose.
Quando transpõem os seus mitos para a gestão do mundo rural, concluem que os animais não fazem falta nenhuma e acham que a reposição da fertilidade dos solos e a recuperação de solos degradados (com o consequente aumento do stock de carbono) se pode fazer prescindindo dos animais e com base em compostagem que dispensa a produção de estrumes e chorumes por animais, procurando convencer o povo de que a criação de animais é uma mania de tarados apoiados por obscuros interesses.
Carlos Aguiar é das pessoas que mais tenho ouvido falar na função coproiética dos rebanhos, uma coisa que em meados do século XX era referida na literatura científica com relativa frequência, mas a que a descoberta da síntese da amónia industrial, isto é, a possibilidade de obter fertilidade (compostos azotados, o fósforo fia mais fino) numa fábrica a partir da atmosfera e energia, veio retirar visibilidade.
Meus caros militantes da ideia de que existem lixos orgânicos suficientes para repôr a fertilidade dos solos produtivos (a agricultura é, por definição, exportadora de nutrientes, para já não falar da perda de matéria orgânica e estrutura dos solos provocada pelas lavouras), talvez fosse tempo de porem os pés na terra e perceber o alcance e significado de uma frase de Carlos Aguiar a que vale a pena prestar atenção (espero não estar a citar de forma imprecisa, a minha memória e o que sei do assunto não é lá grande coisa): a agricultura biológica consiste em pôr uma planta ou uma planta e um animal entre o saco de adubo e a produção.
A acumulação de lixos orgânicos em grandes cidades resulta de processos produtivos noutro lado qualquer, ou seja, para que existam os tais lixos que acham que são em quantidade suficiente para repôr os nutrientes em grande parte dos solos, é preciso que, primeiro, esses solos tenham produzido as matérias primas dos processos produtivos que levam o produto ao cliente final, cujos desperdícios dão origem à tal acumulação de matéria orgânica nas grandes cidades. E nesse fluxo há enormes ineficiências.
Depois de produzido os lixos, é preciso compostá-los e voltar a devolvê-los (sem ser com animais de tiro, que, coitados, não foram feitos para estar à frente de carroças, ou seja, com base em combustíveis fósseis) aos solos onde fazem falta, processo em que volta a haver ineficiências enormes, de maneira a que possam ser produzidos os tais alimentos biológicos sem recurso à exploração de animais.
Claro que se pode dizer que ao nível da exploração de pode fazer isto com cadeias curtas. E claro que pode, mas isso significa ter enormes extensões não produtivas, com a única função de produzir material para compostagem. Se o produtor não for burro, vai produzir nos melhores solos e deixa para esta função as terras marginais, que produzem uma vegetação com enormes teores de lenhina, dificultando os processos de compostagem.
O que os nossos ancestrais perceberam rapidamente, porque a vida deles dependia de facto do que conseguiam produzir em cada ano, é que este processo pode ser enormemente encurtado usando as características dos animais, que se deslocam sozinhos (primeiro ponto importante), que fazem uma selecção da vegetação muitíssimo eficaz (deixam lá a lenhina e escolhem as partes tenras da vegetação) e que ainda aumentam a velocidade de degradação dos tecidos vegetais com os seus sistemass digestivos, oferecendo ao agricultor estrumes e chorumes quase prontos a ser usados, em muito menos tempo e com muito menos trabalho que o necessário para obter os mesmos nutrientes por via da compostagem.
E depois, de tempos a tempos, usavam o fogo para degradar rapidamente a lenhina, disponibilizar nutrientes rapidamente às plantas, renovar a pastagem e recomeçar o ciclo.
E de caminho os animais produzem carne, leite, queijo, pele, cornos, lã, etc..
Cavalgar a ideia infantil de que se pode prescindir da produção animal para obter os alimentos e fibras de precisamos não é levar a sério a necessidade de adoptarmos medidas de adaptação às alterações climáticas, é mesmo ignorância militante que nos impede de reconhecer a importância da função coproiética dos rebanhos.
Adenda: parte do que aqui escrevo, sobretudo o facto de ter conseguido fazê-lo de forma relativamente escorreita, decorre do workshop sobre alimentação de caprinos em que participei esta semana, organizado pelo Centro de Competências de Caprinicultura e estaria ser ingrato sem este parágrafo de agradecimento a quem o organizou e lá esteve
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