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A evolução natural dos indicadores sociais

por henrique pereira dos santos, em 28.04.22

Quando alguém, em vez de dizer estas parvoíces, resolve olhar para os dados factuais da evolução dos indicadores sociais durante o Estado Novo, constatando a sua evidente melhoria, um dos argumentos mais usados é o "mau fora que esses indicadores não melhorassem com a evolução que ocorreu em todo o mundo".

O argumento tem a sua quota parte de verdade: qualquer que fosse o regime, as tendências sociais mundiais e a evolução tecnológica eram favoráveis à melhoria de indicadores sociais. Por exemplo, a descoberta da penicilina contribui substancialmente para o aumento da esperança média de vida, a generalização da higiene em meio hospitalar (bem como a profissionalização da enfermagem, por exemplo) diminui muito a mortalidade infantil, o aumento da complexidade das ferramentas de produção exige operários mais instruídos, e por aí fora.

A questão está em saber se, quaisquer que fossem as opções políticas, teria sempre de haver uma evolução positiva dos indicadores de educação, saúde e qualidade de vida das pessoas da dimensão que houve durante do Estado Novo. A questão da dimensão, da escala do progresso social durante esse tempo, é uma questão relevante para se procurar avaliar políticas públicas e a sua eficácia.

A melhor maneira de o fazer parece ser comparando a evolução em diferentes geografias, no mesmo tempo, ou comparando a evolução no tempo, na mesma geografia, e qualquer das duas abordagens levanta problemas metodológicos complicados sobre os quais sei tão pouco que não tem nenhuma utilidade eu dizer grande coisa sobre o assunto.

Em qualquer caso, na minha cabeça de leigo, há duas coisas que me parecem óbvias - repito-me, o óbvio é muito subjectivo - que contrariam esta ideia de evolução natural dos indicadores sociais, independente de opções políticas e sociais. Escrevi aqui o "sociais" porque muito do contexto é social, não depende inteiramente dos governos: as famílias mandarem os filhos à escola ou não, só até certo ponto pode ser forçado pelos Estados, por exemplo.

E o exemplo de Portugal na educação é bastante eloquente.

Depois da expulsão dos Jesuítas, uma decisão que reduz a população escolar em mais de 80%, com impactos que não vão ser revertidos durante décadas, Portugal adoptou a escolaridade obrigatória nas primeiras décadas do século XIX mas, cem anos depois, a taxa de escolarização, isto é, a percentagem de crianças em idade escolar que realmente frequenta a escola, andava pelos 20%.

Note-se que os séculos XVIII e XIX são os séculos da revolução industrial, com progressos sociais brutais, incluindo na generalização da educação nos países do espaço geográfico de Portugal e, ainda assim, o reflexo disso em Portugal é marginal.

Mas talvez mais relevante para a demonstração de que a evolução natural dos indicadores sociais pode ser travada pelas opções políticas é a história pós-colonial da Guiné, Angola e Moçambique.

Os indicadores sociais nesses três países, no ano anterior à sua independência, eram maus, mas em clara evolução positiva.

Durante os quase cinquenta anos que já levam de independência, a evolução social mundial foi impressionante.

E, ainda assim, há uma clara regressão em muitos indicadores sociais, pelo menos durante a primeira década da independência, sendo os da educação muito evidentes.

Claro que há razões conhecidas, como o facto da generalidade dos professores e das elites instruídas desses países terem sido expulsas por razões políticas e raciais, cuja prevenção foi esquecida - não estou a sugerir que poderia ter sido diferente, estou a constatar um facto - no processo de descolonização.

O facto é que o argumento do "mau fora" é claramente invalidado pela evolução dos indicadores sociais destes três países nos seus cinquenta anos de independência, nos quais, aliás, foram despejados milhões em ajuda externa, com especial atenção aos sectores sociais.

Curiosamente são as boas intenções o principal factor de aceitação social, não na teoria mas na prática, para esta evolução completamente absurda: todos os problemas desses países podem ser atirados para cima das consequências de quinhentos anos de exploração colonial, isentando os responsáveis pela governação dos últimos cinquenta anos de qualquer responsabilidade pelos resultados negativos das suas opções políticas.

Mais profundamente, isentando a sociedade de responsabilidades na situação que ali se vive, sendo muito raros os milionários (que os há) desses países que têm acção filantrópica relevante que ajude a mitigar o sofrimento das pessoas concretas que acabam vítimas de políticas erradas, estando a filantropia quase exclusivamente assente em organizações religiosas com financiamento externo.

Olhar os factos de frente, procurando ver claro no meio do nevoeiro ideológico, talvez seja uma atitude bem mais subsersiva do que geralmente admitimos.


10 comentários

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De Anónimo a 28.04.2022 às 10:57

Henrique, qualquer regime cuja intenção é somente existir e se perpetuar no tempo, inventa fantasma (internos ou externos) para se ir alimentando. Vivemos há mais tempo em democracia do que vivemos no Estado Novo mas a generalidade das pessoas em vez de se preocupar com o facto de estarmos cada vez mais pobres gosta de ouvir a cantilena de que a culpa é do salazarismo. Só temos o que merecemos. 
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De JPT a 28.04.2022 às 15:29

Para justificar a nossa queda para a cauda da Europa (para trás de países que há um século eram províncias do império russo ou austro-húngaro, e que foram devastadas por duas guerras mundiais e, algumas delas, por 5 décadas de domínio soviético), o sujeito que manda nisto há sete anos disse, na televisão, a um país inteiro, "a História explica isso" (sic). O "castigo" que recebeu do país, por esta displicente confissão de incompetência e irresponsabilidade, foi uma maioria absoluta. Claro que confundir "a História" com a estória da carochinha que se conta aos portugueses ajuda a compor a "narrativa", mas não serviria de nada sem a indigência ética do eleitorado (em 2011, um milhão e meio votou no Sr. José Sócrates, e, nessa altura, certamente já não o fez "aldrabado").
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De balio a 29.04.2022 às 11:54


em vez de se preocupar com o facto de estarmos cada vez mais pobres


Calma. Não exagere. Portugal está cada vez mais rico.


Portugal gostaria de ser ainda mais rico, e tem inveja de quem o ultrapassa em riqueza. Mas mais pobre, Portugal não está.
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De Anónimo a 30.04.2022 às 00:02

Se nos estamos a desviar da média europeia estamos a ficar mais pobres.
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De Anónimo a 28.04.2022 às 15:25

HPS, espere um pouco que hão-de vir aqui botar faladura os especialistas habitués, a "arengar" como é costume.   
Aqui está mais um testemunho (de cerca de 1min.), desta vez o de Zita Seabra, que nos explica como o país estava à mercê de vendilhões e traidores _ os "internacionalistas" dispostos a venderiam a Pátria quando achassem a altura certa, como tentaram no PREC...


https://arquivos.rtp.pt/conteudos/caso-do-desvio-de-arquivos-da-pide-para-o-kgb/

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De balio a 29.04.2022 às 09:59


A expulsão dos Jesuítas [...] adoptou a escolaridade obrigatória nas primeiras décadas do século XIX


Esta frase está muito mal escrita. A expulsão dos Jesuítas ocorreu cerca de 1760, portanto uns 50 anos antes das "primeiras décadas do século XIX".
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De henrique pereira dos santos a 29.04.2022 às 10:22

Obrigado, já corrigi
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De balio a 29.04.2022 às 10:02


os séculos XVIII e XIX são os séculos da revolução industrial, com progressos sociais brutais, incluindo na generalização da educação nos países do espaço geográfico de Portugal



Quais são os países do espaço geográfico de Portugal? Eu só vejo dois: a Espanha e Marrocos. Ora, em Espanha a generalização da educação estava de facto um pouco (não muito!) mais avançada do que em Portugal, mas em Marrocos estava (suspeito eu) menos avançada.


Terá o Henrique putros países, de outros espaços geográficos, em mente?
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De henrique pereira dos santos a 29.04.2022 às 10:23

Tens razão, é uma estupidez pensar que Portugal faz parte da Europa, do mundo ocidental, da tradição de base cristã e helenística e outras coisas que tais.
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De balio a 29.04.2022 às 10:45


Bem, isso é geografia humana.
Em geografia física, Portugal está muito mais próximo da Espanha e de Marrocos do que de todo o resto da Europa.
E falando do "mundo ocidental, da tradição de base cristã e helenística", que é muito vasto, indo (sabe-se lá...) até à Rússia, teríamos taxas de escolarização muito variadas, e suspeito que as portuguesas não destoassem muito das búlgaras ou das gregas.

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