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A estratégida de empobrecimento

por henrique pereira dos santos, em 29.11.16

Uma das coisas mais estranhas no debate político é a facilidade com que se usam, se espalham, se aceitam e se não escrutinam argumentos evidentemente absurdos.

Há muito que ao ler qualquer coisa aparentemente absurda, ou que me parece mal contada, a minha posição base é partir do princípio de que é realmente absurda, ou que está mal contada.

A ideia de que um governo que depende dos votos tem uma estratégia de empobrecimento é uma ideia intrinsecamente absurda e, evidentemente, estúpida. E no entanto há anos que se ouve isto como argumento político o que me tem custado a perceber.

A morte de Fidel Castro, ou melhor, as notícias e comentários sobre essa morte ajudaram-me a perceber melhor a persistência de estupidezes destas.

A quantidade de pessoas que falam do grande progresso económico e social de Cuba durante o regime castrista (os mais contidos restrigem-se aos progressos sociais) não sentem a menor necessidade de verificar os dados que existem sobre o assunto (ver, por exemplo, um pequeno texto com gráficos expressivos).

Não sei o suficiente sobre a história económica e social de Cuba para avaliar a solidez dos argumentos dos que dizem que houve grandes progressos e dos que dizem o contrário, mas o que tenho lido ultimamente é bem diferente do que sempre ouvi dizer e, tendo em atenção aspectos paralelos que conheço melhor, suspeito de que realmente há por aí mais mitos que realidades que, aparentemente, pouca gente se dispõe a escrutinar.

Há em Portugal dois casos paralelos que vale a pena referir: o mito da reforma da educação feita pelo Marquês de Pombal e o mito do empobrecimento (e o voluntário obscurantismo) provocado pelo salazarismo.

No essencial a reforma do ensino do Marquês de Pombal terá sido feita no papel, na prática reduz-se à expulsão dos Jesuítas e à destruição do sistema de ensino existente, sem que nada de muito relevante tivesse substituído o sistema de ensino que existia. De tal maneira que o número de alunos que havia em Portugal em meados do século XVIII só voltou a ser atingido nos anos 30 do século XX, 170 anos depois, quando a população já tinha duplicado a que existia no século XVIII (para leitura mais completa, ver aqui).

A outra situação que conheço melhor diz respeito ao mito do empobrecimento do país pelo regime salazarista, incluindo a miséria dos seus indicadores sociais. A origem da persistência do mito, para além das motivações políticas, está na situação pouco brilhante, do ponto de vista social e económico, em que o país estava quando acabou o regime, quando se compara com os países mais desenvolvidos do mundo.

Por exemplo, uma taxa de analfabetismo perto de 20% é um péssimo indicador social.

Mas quando se compara com a taxa de analfabetismo no início do regime, por volta dos 60%, a avaliação do resultados do regime político então existente é, forçosamente, diferente. E seria ainda mais evidente se esta taxa fosse avaliada para a população menor de 15 anos, em vez da totalidade da população, uma vez que desde os anos 60 a população em idade escolar tem uma taxa de escolarização muito perto dos 100% (no que diz respeito ao ensino elementar).

Se se olhar para outros indicadores sociais, como a taxa de mortalidade infantil, ou para indicadores económicos (o maior período de crescimento económico e convergência com os países mais ricos nos últimos 200 anos, ver aqui para quem tiver dúvidas) a conclusão é a mesma: é verdade que no fim do salazarismo Portugal era um país pobre e com maus indicadores sociais, mas é igualmente verdade que era incomparavelmente menos miserável do que era no início do regime, tendo inclusivamente havido uma aproximação relativa aos padrões dos países mais desenvolvidos.

Dizer isto, que é estritamente factual, é imediatamente lido por dezenas de pessoas como uma defesa do regime salazarista, tal como se entende que para defender o regime castrista é fundamentel assegurar os seus êxitos económicos e sociais, seja ou não verdade.

A legitimidade dos regimes políticos não se mede pelos seus resultados económicos e sociais, mas sim pelo respeito pela vontade das pessoas comuns e pelo primado da lei, independentemente dos resultados económicos e sociais que se consigam apresentar (penso que não lembraria a ninguém justificar, ou sequer usar o famoso "mas" de cada vez que se referisse um aspeco negativo do regime nazi, com base nos resultados económicos e sociais da Alemanha de então)

É esta ausência de rigor, ou se quisermos, é a substituição da análise dos factos pelo preconceito, questão especialmente grave na imprensa e outros veículos de discussão pública massificada, o que permite que o combate político seja feito com argumentos tão estupidamente absurdos como a existência de estratégias de empobrecimento.

É assim que se abre o caminho ao populismo que sempre caracterizou a extrema-esquerda mas que agora, porque em crescimento do lado direito, parece preocupar muita gente.

Pela parte que me toca, lembro-me sempre da "assinatura" dos mails e afins de um dos meus orientadores de tese, e o primeiro português a receber o prémio Jaime I: ""L'objectif reste le même; détruire le préjugé. Mais pour l'atteindre il faux s'ouvrir a la raison des autres". Claude Lévi-Strauss


10 comentários

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De jo a 29.11.2016 às 12:18

Bem, talvez não se lembre, mas o anterior primeiro ministro chegou a afirmar publicamente que os salários em Portugal estavam altos.
E a procura da competitividade pela contenção dos salários é uma maneira bonita de dizer que empobrecendo os trabalhadores teremos uma economia mais saudável.
Quando se fez a reversão dos cortes de salários da função pública ou o aumento do salário mínimo, levantaram-se vozes contra porque uma economia saudável em Portugal não pode ter salários altos.


Claro que se pode dizer sempre que os que dependem de salários não fazem parte da população que conta, mas ainda assim são a maioria.
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De henrique pereira dos santos a 29.11.2016 às 12:45


Que o custo do trabalho em Portugal é demasiado alto é uma evidência: há 10% de desemprego.
Podemos discutir como diminuímos esses custos (por diminuição de ordenados, por diminuição dos impostos sobre o trabalho, por diminuição dos descontos para a segurança social, pela criação de impostos negativos, como previsto no programa eleitoral do PS, etc.) mas não podemos negar que o custo do trabalho é alto quando existe desemprego.
Nada disto tem alguma relação com estratégias de empobrecimento que evidentemente ninguém tem, mas sim com a necessidade de ajustamento à realidade (no caso, não havia quem emprestasse dinheiro para financiar a economia portuguesa) o que pode resultar em empobrecimento (embora o empobrecimento tenha sido antes, quando se gastou sem ter e para resolver se criou dúvida que alguém teria de pagar no futuro).
Por último: tem algum link que demonstre que o anterior primeiro ministro disse isso? Não estou a dizer que não o tenha dito, mas gosto de verificar os factos.
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De jo a 29.11.2016 às 16:03

A associação automática entre desemprego e salários altos é forçada. Ninguém lhe garante que se os salários fossem nulos não existiria desemprego, até porque não existiria quem comprasse artigos de grande consumo.
Os salários desceram bastante desde 2008 não me parece que o emprego tenha subido.
O custo do trabalho não depende só dos impostos e dos salários, também depende da produtividade e esta depende da organização das empresas. Tendo os portugueses impostos comparáveis aos da restante zona euro e os salários mais baixos, se calhar estamos a ladrar à árvore errada. Mas o capital, por definição, é sempre virtuoso e não se deve condicionar.
Não encontrei nenhum link, tenho só a minha memória.
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De henrique pereira dos santos a 29.11.2016 às 16:37


Caro JO,
O desemprego é o resultado do desfasamento entre a oferta de trabalho e a procura de trabalho.
Pode ser resolvido de várias maneiras, em especial pelo aumento de procura de trabalho (por aumento da actividade económica ou artificialmente por intervenção do Estado), pela emigração ou pela diminuição do valor do trabalho até um ponto de equilíbrio entre oferta e procura.
É claro que se o salário for igual a zero e mesmo assim houver desemprego, apenas o aumento da procura ou a emigração podem resolver o assunto.
Em Portugal o ajustamento resultante do fim do crédito fácil e consequente retirada de qualquer coisa como 15 mil milhões anuais da economia provocou uma contracção da procura de trabalho (que estava empolada artificialmente pelo crédito fácil, nomeadamente pelo endividamento de um Estado que se entreteve a fazer obras inúteis e a distribuir dinheiro sem garantir o retorno).
Disso resultaram três consequências: a) diminuição de ordenados onde foi possível e necessário; b) diminuição da imigração e aumento da emigração; c) aumento do desemprego.
Tirando a emigração, que é a forma de resolver o assunto sem empobrecimento, os dois outros processos resultam em empobrecimento de muita gente.
Mas isso não corresponde a nenhuma estratégia de empobrecimento, o empobrecimento é um resultado inevitável de um ajustamento igualmente inevitável (se quiser estudar este processo mais em pormenor, mas noutro contexto, pode ir estudar a economia cubana do fim da guerra fria, quando deixou de ser financiada externamente pelos seus aliados).
De resto, ao contrário do que diz, o emprego tem aumentado desde o fim de 2012 (depois de um pico anterior) e bem me parecia que não conseguia demonstrar que o anterior primeiro ministro tinha dito o que lhe atribuiu.
Quanto a esta última parte, os meus agradecimentos pela demonstração prática do que se diz no post: há muita gente que escolhe os mitos em que acredita e jamais deixará que os factos influenciem as suas ideias.
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De Renato a 30.11.2016 às 10:12

Confuso. Continuo a não entender a ligação entre os custos do trabalho e o desemprego. Não tem com certeza a ver com os custos salariais, como é óbvio. Portugal tem os salários mais baixos da união europeia. Conheço muita gente que ganha a tempo inteiro metade do salário mínimo. 

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De Fernando S a 01.12.2016 às 16:56

"Portugal tem os salários mais baixos da união europeia."

Nem sequer é verdade : a UE tem 28 paises e a maior parte dos do Leste têm salários médios inferiores.
Mas nem sequer é isto o mais importante.
O mais importante é que Portugal tem efectivamente salários mais baixos do que os dos paises mais desenvolvidos precisamente porque é ... menos desenvolvido !... E não o contrario !...
Ou seja, Portugal tem os salários que a sua produtividade, que é mais baixa do que a dos outros paises desenvolvidos, permite pagar.
Um dos problemas das ultimas décadas (mas não é de modo nenhum o único) é que em muitos sectores de actividade, a começar pelo Estado e a acabar em muitas empresas, principalmente produtoras de bens e serviços não transaccionáveis, os salários foram crescendo a um ritmo maior do que o crescimento da produtividade tornando-se assim insustentáveis.
A crise econonómica e o colapso financeiro também resultaram deste tipo de desequilibrios !   
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De Renato a 02.12.2016 às 09:45

Tretas. Qual é a sua experiência profissional e conhecimento do mercado de trabalho? Comentário em blogues? Há empresas em Portugal com grande produtividade e imensos lucros que pagam a muitos dos seus "colaboradores", em regime de trabalho temporário ou recibo verde, abaixo do salário mínimo. Isto, tanto na grande distribuição, como nos serviços, como na indústria. Num particular sector, uma familiar minha ainda agora foi contratada por uma empresa de assistência domiciliária a idosos e doentes a ganhar dois euros por hora. Sabe quanto a empresa cobra aos clientes? 
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De Fernando S a 02.12.2016 às 23:54

"Tretas" a sua avó !!!
Pelos vistos sua "experiência profissional", seja ela qual for, não evita que diga enormes disparates (por exemplo sobre a real situação financeira de muitas empresas empregadoras) !!
Quanto a "comentários em blogs" ... é confusão minha ou você está precisamente a comentar neste blog ??!!...

O que eu disse é que Portugal não tem em média os salários mais baixos da Europa, que são mais baixos do que noutros paises mais desenvolvidos porque a produtividade é em média mais baixa, que ao longo de vários anos  que precederam a crise de 2011 os salários (e ainda mais os vencimentos dos funcionários) cresceram em média mais rápidamente do que o crescimento da produtividade e que esta é uma das causas do fraco crescimento e dos desequilibrios que levaram à bancarrota financeira e ao colapso da nossa economia.
Nunca neguei que possam existir empregadores e até empresas altamente eficientes e rentáveis que paguem mal ou até mesmo abaixo do salário minimo.
Mas tal não obsta a que a esmagadora maioria pague pelo menos o que a lei exige (o "regime de trabalho temporário ou recibo verde" é legal, não ?!...) e até que muitas paguem bem e até acima do que seria prudente tendo em conta as condições do mercado.
Não é por acaso que Portugal é um dos paises europeus com um maior número de empresas com fraca ou falta de rentabilidade e com um grau de endividamento elevado.  

E sabe porque é que há empregadores que, para além de se sujeitarem ao que a lei impõe, não pagam mais e melhor do que pagam ??...
Você mesmo deu a explicação óbvia respondendo a uma pergunta oportuna feita por outro comentador : "porque não têm dinheiro" para pagar mais e melhor !!!
A alternativa não é pagar ainda mais e melhor agravando ainda mais a situação financeira e a comprometendo assim a continuação da actividade.
A alternativa é o desemprego e uma baixa radical do rendimento !!
Para poderem empregar mais e pagar melhor as nossas empresas precisam de ser primeiro mais produtivas e eficientes !
Não é o contrario !!
Por haver muitos que, como você, não percebem esta evidência, de bom senso e de boa economia, é que o nosso pais tem em média salários mais baixos do que noutros paises desenvolvidos e um desemprego demasiado elevado !
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De Renato a 03.12.2016 às 12:04


Fala, fala, fala e não diz nada. Eu estava a falar-lhe de empresas que pagam mal e têm grandes lucros e produtividade, não das que não têm dinheiro, homem.
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De Fernando S a 04.12.2016 às 00:03

Você fala de excepções, eu falo da generalidade !!
De um modo geral, as empresas mais produtivas e por isso mais rentáveis são aquelas que podem e pagam melhor.
De um modo geral, as empresas que pagam menos são aquelas que não podem fazer mais precisamente porque são menos produtivas e rentáveis.

[Os seus pais não lhe ensinaram o respeito e a boa educação ?!...]

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