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A esquerda, a banca e o Estado

por henrique pereira dos santos, em 05.06.23

Adenda: Dizem-me que tenho um erro no post porque as contas dos certificados de aforro estam indexadas à euribor, pelo que baixas de juro se reflectiriam na taxa de juro dos certificados de aforro. Não fui verificar exactamente em que termos se faria esse reflexo, mas gostaria de corrigir esta questão

Recentemente o Estado decidiu alterar as regras sobre Certificados de Aforro e, incompreensivelmente para mim, gerou-se um bruaá sobre uma decisão que, podendo estar certa ou errada, é uma decisão perfeitamente normal (o Estado não alterou as regras do que tinha contratado anteriormente, isso sim, seria grave, limitou-se a alterar as regras para futuras subscrições).

Se a decisão é boa ou má não sei dizer, o que me parece claro para um leigo como eu é que, sendo os Certificados de Aforro um meio de o Estado se financiar através da dívida (os Certificados de Aforro não são um mecanismo de transferência de rendimentos do Estado para as pessoas, se o fossem, seriam uma maneira bem mais tonta, injusta e ineficiente de o fazer que a sua alternativa: a diminuição das necessidades de financiamento do Estado através da dívida), para ter uma ideia sobre se a decisão tem alguma racionalidade, o melhor é comparar com os meios alternativos do Estado contratar dívida.

A taxa de juro a que o Estado se financia varia no tempo, com certeza, e nas últimas operações tem vindo a aumentar bastante, estando neste ano de 2023 em qualquer coisa como 3,5% nas novas contratações (embora a taxa média do conjunto do financiamento de toda a dívida esteja ainda abaixo dos 2%, se vi bem). Aparentemente, este aumento rápido da taxa de juro na contratação de dívida resulta da alteração das políticas dos bancos centrais, isto é, de decisões do Estado.

Deste ponto de vista, e esperando o Estado que a inflação e os juros venham a diminuir dentro de algum tempo, é perfeitamente razoável que o Estado tente diminuir o custo da dívida baixando os juros dos Certificados de Aforro, ao verificar que à taxa anterior havia muitos interessados, isto é, que a taxa a que o Estado estava a pagar a dívida era muito atractiva. Embora já esteja a colocar essa taxa abaixo da taxa a que se tem conseguido financiar em 2023. Se bem percebo, o Estado tem uma boa folga no financiamento, portanto é razoável que o Estado evite lançar operações de contratação de dívida numa altura em que os juros estão altos e se prevê que venham a descer.

Para a esquerda, especialmente a mais folclórica, nada disto tem a menor importância e o que se passa é que a banca quer manter a remuneração dos depósitos baixa e, por isso, obrigou o Estado a diminuir a taxa de remuneração dos certificados de aforro para a banca não perder mais depósitos que aqueles que está a perder.

Esta ideia é muito interessante para ilustrar a forma como funciona a cabeça de muita gente envolvida, ou simpatizante, da esquerda folclórica.

Em primeiro lugar, partem do princípio de que a banca actua em cartel, e define centralmente as taxas de juro dos depósitos, não havendo um único banco que fure o esquema para ganhar rapidamente clientes e crescer. É uma ideia defensável, possível mas não plausível, que deveria levar quem a defende a defender mais mercado, mais liberdade de iniciativa, para diminuir as possibilidades da banca actuar como um cartel e facilitar o aparecimento de novos bancos e instituições financeiras que consigam concorrer com os instalados, obrigando a uma luta sem quartel pela captação dos depósitos.

Em segundo lugar é uma ideia que parte do princípio de que apenas existe a banca e o Estado a concorrer pelo capital disponível, e que nem as empresas lançam obrigações, nem operadores organizam mecanismos alternativos de financiamento, nem é possível aplicar capitais fora do país, resumindo, uma tremenda tolice que esquece toda a realidade da liberdade de circulação de capitais que existe na União Europeia (e fora dela).

Em terceiro lugar, e muito mais interessante e elucidativo, à acusação de que o Estado anda a mando da banca, dizem que se deve responder dando ao mesmo Estado, que acusam de ser controlado pela banca, mais poder, de preferência, todo o poder, nacionalizando a banca ou, pelo menos, pondo-a no seu lugar (que, de maneira geral, evitam definir com muita clareza qual seja e como se consegue fazê-lo).

O que nunca explicam é como, acreditando que o Estado é facilmente controlado pela banca, defendendo os interesses da banca contra os interesses das pessoas, acreditam também que o Estado, facilmente controlado de forma obscura, é a melhor solução para resolver a obscuridade do seu controlo por forças obscuras.

Os meus netos, pelos menos alguns e em algumas circunstâncias, insistem que são mais fortes que eu, contra todas as evidências, e que sabem mais que eu, contra todas as evidências.

A principal diferença para estes que pensam que o Estado que se deixa capturar facilmente é a melhor garantia contra a sua própria captura, é que eu espero que os meus netos cresçam até ao ponto em que sejam de facto mais fortes e sabedores que eu ou que, caso contrário, cresçam o suficiente para deixar de negar evidências.


47 comentários

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De balio a 08.06.2023 às 09:26

Marina,
não lhe falei de fundos, muito menos de fundos de ações.
Falei-lhe de obrigações. Ao comprar uma obrigação, a Marina está (indiretamente) a emprestar o seu dinheiro a uma empresa específica, escolhida por si.
Uma obrigação é a coisa mais parecida que há a um depósito a prazo. Você pode a qualquer momento vender a obrigação a outra pessoa e recuperar o seu dinheiro (eventualmente com perdas ou ganhos - venderá a obrigação a um preço diferente daquele a que a comprou). Mas também pode esperar até ao fim da obrigação e nessa altura a empresa devolve-lhe o valor nominal dela.
A obrigação rende juros ao dia (o que é melhor que um depósito a prazo). Você recebe juros por cada dia que detém a obrigação.
O risco da obrigação é o risco que a empresa que emitiu vá à falência e não lhe devolva o dinheiro. Esse risco também existe com um depósito a prazo - o banco pode ir à falência e não lhe devolver o depósito.  
Em suma, não há especulação, não há ganância. É a coisa mais parecida que há a um depósito a prazo, só que, em vez de a Marina emprestar o seu dinheiro ao seu banco, empresta-o a uma empresa da sua escolha.
As obrigações mais seguras que há são as dos grandes bancos de ajuda ao desenvolvimento, tipo African ou Asian Development Bank. Essas rendem tipicamente (atualmente) 3% ao ano.
Depois há obrigações de empresas, tipo José de Mello Saúde, Benfica SAD, e Mota-Engil, para só falar de portuguesas. Mas você pode comprar obrigações de uma miríade de empresas.
Pense no assunto.

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