Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]




A escola de arquitectura paisagista e o fogo

por henrique pereira dos santos, em 21.09.24

Teresa Andresen ligou-me um dia destes a chamar-me a atenção para o facto da forma como eu falo sobre ignições e a sua relação com a gestão do fogo poder beneficiar da utilização de exemplos mais próximos da experiência pessoal da maioria das pessoas que me estarão ouvir, sugerindo que eu falasse antes de cigarros em vez de ervas.

Brevemente farei uso desse conselho inteligente, mas antes gostaria de fazer dois ou três comentários sobre a forma como a minha escola, a escola de arquitectura paisagista portuguesa, se tem relacionado com o fogo e a sua gestão, afastando-se daquilo que era uma prática muito comum na primeira geração de arquitectos paisagistas, a discussão e conversa inter-pares de que é exemplo a inconfidênca com que comecei o post.

Parte do pensamento da minha escola está bloqueado pelo peso do que foi a intervenção social dessa primeira geração de arquitectos paisagistas, em especial por uma reverência a Ribeiro Telles que se compreende - mas a que o própio nunca obedeceria - impedindo a saudável evolução intelectual das bases fundamentais da profissão.

Aos argumentos preferem-se, frequentemente, as citações, lembrando-me sempre da epígrafe da minha tese de licenciatura, dos diários de Camus (ainda fui dar uma vista de olhos na estante onde sei que está esse livro, mas entre livros em segunda fila, fotografias várias e outra quinquilharia, iria perder muito tempo à procura dessa citação) sobre o facto de aos historiadores que se debruçavam sobre realidades concretas se sucederem os professores de história que se debruçam sobre os historiadores, ou qualquer coisa do género.

Uma das mais frequentes citações de Ribeiro Telles nas discussões sobre fogos é esta:

""A limpeza da floresta é um mito.
O que se limpa na floresta, a matéria orgânica?
E o que se faz à matéria orgânica, deita-se fora, queima-se?
Dantes era com essa matéria que se ia mantendo a agricultura em boas condições e melhorando a qualidade dos solos. E, ao mesmo tempo, era mantida a quantidade suficiente na mata para que houvesse uma maior capacidade de retenção da água.
Com a limpeza exaustiva transformámos a mata num espelho e a água corre mais velozmente e menos se retém na mata, portanto mais seco fica o ambiente. A limpeza tem de ser entendida como uma operação agrícola. Mas esta floresta monocultural de resinosas e eucaliptos, limpa ou não limpa, não serve para mais nada senão para arder. Aquela floresta vive para não ter gente."

Haveria vários comentários a fazer sobre a evolução do conhecimento entre a altura em que estas declarações são feitas e o dia de hoje (as declarações são de uma entrevista a Ribeiro Telles na sequência dos fogos de 2003), mas o que me interessa é concentrar-me no que se sabia nessa altura (e nessa altura já Ribeiro Telles lia pouca pouca investigação sobre o assunto, há muitos anos) sobre o papel ecológico do fogo e o que hoje é ponto mais ou menos assente entre quem se dedica a estudar a ecologia do fogo.

É claríssimo que Ribeiro Telles olha para o fogo como um elemento de destruição no ecossistema, "deita-se fora, queima-se?", pergunta a propósito do que fazer à matéria orgânica que se acumula.

Esta concepção do papel ecológico do fogo já estava desactualizada em 2003, mas era ainda matéria de alguma controvérsia de base científica, hoje é uma concepção que se considera totalmente obsoleta (amanhã não sabemos, Egas Moniz, o médido português que ganhou o Nobel da Medicina, ganhou-o pelos avanços numa técnica da medicina cuja aplicação "em grande escala é hoje considerada como um dos episódios mais bárbaros da história da psiquiatria". Já agora, Egas Moniz nunca defendeu essa aplicação em larga escala).

O que hoje é do mais chão consenso é que o fogo é um processo ecológico fundamental de renovação dos sistemas, diferindo da mais amada decomposição orgânica na velocidade e libertação de energia, mas não no essencial: os dois processos consistem na quebra de cadeias químicas complexas que permitem alimentar o solo e as plantas com nutrientes em formas químicas elementares mobilizáveis pelas raízes das plantas.

Queimar e deitar fora não são, de modo algum, a mesma coisa, queimar é renovar o sistema fertilizando o solo, desde que a intensidade da queima seja controlada, sobretudo através da humidade disponível.

Persistir em citar Ribeiro Telles, desistindo de compreender melhor a realidade, para melhor a transformar, não é nenhuma fidelidade ao legado de Ribeiro Telles, é uma forma insidiosa de o trair, porque o legado de Ribeiro Telles é um legado de curiosidade permanente, de vontade de mudança, de aprendizagem sistemática, de compreensão do mundo que permita separar o que é permanente do que é contingente, condição sine qua non para uma gestão sustentável da paisagem e das comunidades que a moldam e transformam.

O respeito pelos "mayores", como diriam os espanhóis, ou os "mais velhos", como diriam os moçambicanos, não consiste em procurar cristalizar o produto do seu trabalho, consiste em respeitar os fundamentos sobre que trabalharam, sem medo do escrutínio permanente da sua validade.

Para grande tristeza minha, a minha escola não se tem distinguido particularmente pela capacidade de inovação, nomeadamente na produção de pensamento sobre o fogo enquanto elemento estruturante da evolução e gestão da paisagem, repetindo acriticamente mantras sobre ordenamento do território, da paisagem, da floresta, sem se dar conta de que onde outros entendiam o ordenamento como "a arte de ordenar o espaço exterior em relação ao homem" (sublinho bem, em relação ao homem, e ao homem concreto, e não com base no amor incomensurável pela humanidade em geral e o mais profundo desprezo por cada pessoa em concreto), hoje é dominante a prática de um ordenamento que é um processo administrativo de imposição coerciva, aos seus gestores, de uma paisagem idealizada por terceiros.


7 comentários

Sem imagem de perfil

De M.Sousa a 21.09.2024 às 11:13

Caro Henrique, infelizmente não é só a sua escola que não se distingue pela capacidade de inovação. É toda a Academia portuguesa que não se distingue por essa capacidade; todos estão presos a mitos, a preconceitos ideológicos  enredados em wokaria e a um círculo autofágico e endogâmico  de citações de auto promoção e auto convencimento completamente acríticos ...  Não se vislumbra saída para isto ...
Sem imagem de perfil

De cela.e.sela a 21.09.2024 às 11:33

ouvi a sua entrevista. surpreendeu-me a escolha.
a minha família a partir de 1950 enterrava as estevas na primavera e ocasionalmente fazia queimadas.
em 2003 ardeu mata limpa com fogo pelas copas. depois da replantação mudou de mão
Sem imagem de perfil

De César a 21.09.2024 às 13:48

Não percebo nada de floresta, gestão de fogos, ordenamento etc. A minha área é jurídica e por aí me fico.Mas fico abismado com a quantidade de "especialistas" a debitar baboseiras com aqueles ares de grandes sapiências e que, a maior parte deles, desconfio não sabem distinguir um eucalipto de uma porta ou um sobreiro de um camelo.
Gosto das suas posições de alguém que, na minha ignorância sobre a matéria, me parece perceber muito mais do que as sapiências que povoam os comentários e que luta contra o mainstream reinante de(parece-me) poderes instalados, mordomias e incompetência sortida.
Já várias vezes o critiquei por determinadas opiniões fora do seu ambito profissional mas reconheco-lhe nesta matéria( e o meu "reconhecimento" vale o que vale) competência e conhecimento para falar sobre o assunto.
Sem imagem de perfil

De Anónimo a 21.09.2024 às 15:56

O que se limpa na floresta, a matéria orgânica?

E o que se faz à matéria orgânica, deita-se fora, queima-se?


Não se deita fora nem se queima. Deixa-se ficar na floresta.


Quando se destrói o mato de uma floresta, por exemplo através de uma motorroçadora, a matéria orgânica permanece toda no solo. Nada é levado embora. Só que, agora essa matéria orgânica está morta, e pronta a ser decomposta, formando um tapete sobre o solo em vez de estar a amarinhar pelas árvores acima.
Sem imagem de perfil

De Elvimonte a 21.09.2024 às 18:27

«(amanhã não sabemos, Egas Moniz, o médido português que ganhou o Nobel da Medicina, ganhou-o pelos avanços numa técnica da medicina cuja aplicação "em grande escala é hoje considerada como um dos episódios mais bárbaros da história da psiquiatria". Já agora, Egas Moniz nunca defendeu essa aplicação em larga escala).» (HPS)



Egas Moniz: 90 Years (1927–2017) from Cerebral ...
National Institutes of Health (NIH) (.gov)
https://www.ncbi.nlm.nih.gov › articles › PMC5610728
by M Artico · 2017 · Cited by 74 — We celebrate the 90th anniversary of the pioneer discovery of cerebral angiography, the seminal imaging technique used for visualizing cerebral blood...


Egas Moniz (1874–1955) was the first to describe the use of this revolutionary technique which, until 1975 (when computed tomography, CT, scan was introduced in the clinical practice), was the sole diagnostic tool to provide an imaging of cerebral vessels and therefore alterations due to intracranial pathology. 



Egas Moniz devia ter recebido o Nobel bem mais cedo pela descoberta da angiografia cerebral. A atribuição tardia do prémio em consequência do seu trabalho na área da lobotomia não é mais do que um Nobel de consolação. Tal como o de Einstein, por um efeito que quase ninguém conhece, é também um Nobel de consolação por não lhe ter sido atribuído o prémio antes pelas suas teorias de relatividade.


A angiografia cerebral está para a Neurologia assim como a difusão de raios X está para a Cristalografia, tendo os Bragg (pai e filho) sido laureados com o Nobel em consequência desse trabalho pioneiro.


Talvez a leitura de "The Prize" introduza alguns dos aspectos desconhecidos por trás da atribuição do Nobel.
Sem imagem de perfil

De Silva a 22.09.2024 às 09:33

O mato deve ser comido por milhões de cabritos e borregos.
A lenha deve ser aproveitada para grelhar e assar os cabritos e borregos, para produção de energia, para aquecimento e convívio (à volta de fogueira).
Para isso é preciso que haja um crescimento populacional por todo o interior e isso só é muito mais fácil de ser alcançado quando houver vontade/coragem política de implementar, rapidamente e em força, reformas estruturais, a começar, repito, a começar pela abolição do salário mínimo, liberalização dos despedimentos e abolição dos descontos.
Iríamos aproximar significativamente o preço da carne do cabrito e do borrego ao preço da carne do porco, do peru, do pato e do frango e ter muito mais queijo de ovelha e cabra.
Sem imagem de perfil

De Anónimo a 23.09.2024 às 14:33


O mato deve ser comido por milhões de cabritos e borregos.


É preciso ter cuidado com os "milhões".


Esse gado tem propensão a comer tudo até à última erva, deixando o solo completamente nu e propenso à erosão.


Que o digam, por exemplo, os islandeses, que ao longo dos séculos, através do pastoreio, sobretudo com ovelhas, erodiram irreversivelmente grande parte da sua ilha.


Aqui em Portugal já vi terras pastoreadas por cabras completamente nuas, sem uma ervinha a crescer, solo todo exposto.

Comentar post



Corta-fitas

Inaugurações, implosões, panegíricos e vitupérios.

Contacte-nos: bloguecortafitas(arroba)gmail.com



Notícias

A Batalha
D. Notícias
D. Económico
Expresso
iOnline
J. Negócios
TVI24
JornalEconómico
Global
Público
SIC-Notícias
TSF
Observador

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Comentários recentes

  • vasco Silveira

    Caro SenhorPercebe-se (?) que a distribuição cultu...

  • vasco Silveira

    "..., não podia ter sido mais insólita, mais bizar...

  • Anonimo

    Como (ex) vizinho de duas, tirando o cheiro pela m...

  • Fernando Antolin

    Muito bem! É sempre um gosto lê-lo/ouvi-lo.Cumprim...

  • Beirão

    Ontem como hoje como sempre os trastes cobardes nu...


Links

Muito nossos

  •  
  • Outros blogs

  •  
  •  
  • Links úteis


    Arquivo

    1. 2024
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    14. 2023
    15. J
    16. F
    17. M
    18. A
    19. M
    20. J
    21. J
    22. A
    23. S
    24. O
    25. N
    26. D
    27. 2022
    28. J
    29. F
    30. M
    31. A
    32. M
    33. J
    34. J
    35. A
    36. S
    37. O
    38. N
    39. D
    40. 2021
    41. J
    42. F
    43. M
    44. A
    45. M
    46. J
    47. J
    48. A
    49. S
    50. O
    51. N
    52. D
    53. 2020
    54. J
    55. F
    56. M
    57. A
    58. M
    59. J
    60. J
    61. A
    62. S
    63. O
    64. N
    65. D
    66. 2019
    67. J
    68. F
    69. M
    70. A
    71. M
    72. J
    73. J
    74. A
    75. S
    76. O
    77. N
    78. D
    79. 2018
    80. J
    81. F
    82. M
    83. A
    84. M
    85. J
    86. J
    87. A
    88. S
    89. O
    90. N
    91. D
    92. 2017
    93. J
    94. F
    95. M
    96. A
    97. M
    98. J
    99. J
    100. A
    101. S
    102. O
    103. N
    104. D
    105. 2016
    106. J
    107. F
    108. M
    109. A
    110. M
    111. J
    112. J
    113. A
    114. S
    115. O
    116. N
    117. D
    118. 2015
    119. J
    120. F
    121. M
    122. A
    123. M
    124. J
    125. J
    126. A
    127. S
    128. O
    129. N
    130. D
    131. 2014
    132. J
    133. F
    134. M
    135. A
    136. M
    137. J
    138. J
    139. A
    140. S
    141. O
    142. N
    143. D
    144. 2013
    145. J
    146. F
    147. M
    148. A
    149. M
    150. J
    151. J
    152. A
    153. S
    154. O
    155. N
    156. D
    157. 2012
    158. J
    159. F
    160. M
    161. A
    162. M
    163. J
    164. J
    165. A
    166. S
    167. O
    168. N
    169. D
    170. 2011
    171. J
    172. F
    173. M
    174. A
    175. M
    176. J
    177. J
    178. A
    179. S
    180. O
    181. N
    182. D
    183. 2010
    184. J
    185. F
    186. M
    187. A
    188. M
    189. J
    190. J
    191. A
    192. S
    193. O
    194. N
    195. D
    196. 2009
    197. J
    198. F
    199. M
    200. A
    201. M
    202. J
    203. J
    204. A
    205. S
    206. O
    207. N
    208. D
    209. 2008
    210. J
    211. F
    212. M
    213. A
    214. M
    215. J
    216. J
    217. A
    218. S
    219. O
    220. N
    221. D
    222. 2007
    223. J
    224. F
    225. M
    226. A
    227. M
    228. J
    229. J
    230. A
    231. S
    232. O
    233. N
    234. D
    235. 2006
    236. J
    237. F
    238. M
    239. A
    240. M
    241. J
    242. J
    243. A
    244. S
    245. O
    246. N
    247. D