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A clínica e a epidemia

por henrique pereira dos santos, em 14.04.20

O mal entendido mais frequente que tenho encontrado na discussão sobre a epidemia resulta da confusão entre clínica e epidemia.

Quando se comparam epidemias, a clínica de cada uma das doenças só é relevante na medida em que influencia factores fundamentais da evolução da doença na sociedade: número de pessoas infectadas, número de pessoas a precisar de cuidados de saúde, tempo de ocupação de camas e outros recursos dos sistemas de saúde e, evidentemente, mortalidade.

Se cada um dos doentes corre um risco maior por esta ou aquele doença, se a prática clínica envolve mais incerteza, se existem respostas médicas e farmacêuticas para debelar a doença, se as sequelas para os doentes são permanentes ou não existem, se são ligeiras ou profundas, são tudo questões essenciais da clínica, mas que acabam absorvidas pelo que é dito no parágrafo anterior.

Por isso, quando se compara o efeito na sociedade da gripe com o efeito da covid, não se está a dizer o que a gripe e a covid são a mesma coisa, tal como se se comparar com a ébola, a febre amarela, a sida, etc., não se está a dizer que é tudo igual clinicamente, está sim a procurar-se contexto para avaliar os riscos e as consequências para a sociedade e a forma de lidar com eles.

Quando se cita este artigo, por exemplo, no que diz respeito às suas conclusões sobre a mortalidade associada à gripe: "Until recently, the World Health Organization (WHO) estimated the annual mortality burden of influenza to be 250 000 to 500 000 all-cause deaths globally; however, a 2017 study indicated a substantially higher mortality burden, at 290 000-650 000 influenza-associated deaths from respiratory causes alone, and a 2019 study estimated 99 000-200 000 deaths from lower respiratory tract infections directly caused by influenza", e se faz essa citação a propósito da covid, isso não quer dizer nada sobre a comparação clínica das duas doenças, apenas dá contexto aos 120 mil mortos deste momento associados à covid.

Claro que para entender bem esse contexto, é preciso saber que os métodos para estimar as mortes das duas doenças são substancialmente diferentes: as mortes associadas à gripe são calculadas pela mortalidade em excesso durante os surtos gripais, enquanto as da covid são estimadas a partir das certidões de óbito em que, por decisão administrativa (correcta para se conseguir comparar minimamente os dados durante a epidemia, em tempo real), todos os doentes que testam positivo para a covid são contabilizados como mortos covid, mesmo que tenham morrido de outra coisa qualquer.

Com todas as imperfeições da comparação, o que sabemos é que o número de mortos associados à covid (tinha escrito provocados, porque é intuitivo, mas corrigi para associados, porque é o correcto) hoje está a duas vezes e meia de distância do limite mais baixo calculado para a mortalidade anual da gripe.

Clinicamente, esta informação vale zero, porque ao médico ou ao enfermeiro que está nos cuidados intensivos com um doente, só esse doente interessa nesse momento. Clinicamente está perante uma situação que é muito distante da que existe no tratamento dos doentes da gripe, quer por razões intrínsecas às duas doenças, quer por decisões administrativas tomadas anteriormente, ao classificar a covid como uma doença de notificação obrigatória, que obriga a uma série de procedimentos de controlo da infecção que se reflectem na forma como se faz a prática clinica.

Mas do ponto de vista do risco social criado pelas duas infecções, a informação é muitíssimo importante, porque é o risco associado a cada infecção que justifica medidas sociais que afectam todas as pessoas, de forma muito desigual, sendo necessário ponderar todos os efeitos de cada política pública, não sendo eticamente defensável que toda a sociedade se mobilize para resolver um problema, à custa da criação de problemas muitos maiores para muito mais gente, muito mais frágil.

Na prática, esta comparação do risco da covid com a gripe não é nunca uma desvalorização da covid, no máximo seria uma valorização adequada da gripe: a gripe é uma coisa a que estamos habituados, a que não ligamos, com a qual convivemos, mas que mata entre 290 a 650 mil pessoas por ano, de acordo com as estimativas da Organização Mundial de Saúde.

E saber isso ajuda-nos a dar contexto aos 120 mil mortos com covid que ocorreram até hoje.

O que é independente das diferenças clínicas associadas às duas doenças.

Adenda, vinda de Paulo Dá Mesquita: "Oakeshott (28-1-1948):«[...] while Utopianism is the great enemy of reason, I shall regard also as an enemy that modified form of Utopianism which picks at one problem of society at a given moment & is prepared to upset the whole of the society in order to get that one problem solved – e.g. the problem of unemployment as the one problem, just now, to be solved, & to be solved permanently. I should say that no problem in politics is ever solved permanently, and that no problem in politics should be allowed to get out of proportion & to exclude the real business of politics – which is to keep the society as a whole, in all its arrangements, coherent and stable as well as progressive».
Popper (31-1-1948):«Apart, perhaps, from some minor terminological differences, I can agree with every word you say in your very interesting letter. I fully agree with you that no problem is solved permanently; I should even put it this way: no problem in politics can be solved without creating a new one.»"


25 comentários

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De henrique pereira dos santos a 14.04.2020 às 15:18

São os números reportados à OMS.
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