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Confesso-vos que quase não assisti aos debates, terei testemunhado pequenas partes de um ou de outro, do qual depressa me desliguei, não só porque ando sempre muito ocupado, mas para poupar a minha tensão arterial - ou simplesmente por respeito à “Psicologia da natureza”, um conceito que aprendi com a minha Tia quase nonagenária. Ao contrário dos virtuosos guerrilheiros das redes sociais, para acompanhar e avaliar as prestações, socorri-me dos resumos e das diferentes orquestras de comentadores nos canais de notícias, a quem me atrevo a agradecer o trabalho sujo a que me pouparam. Acontece que, com esta medida profilática, quero atingir a longevidade da minha Tia. Não me posso enervar.
Portanto, ao fim de duas semanas de debates, tenho muito mais a dizer dos comentadores que dos candidatos a primeiro-ministro. Ou não, que isso não existe em Portugal; elegemos os nossos representantes num parlamento, que durante talvez uma legislatura, darão suporte a um executivo que administrará o nosso fado. Talvez por isso, e porque os comentadores são fundamentais nesse processo, sempre a zurzir opiniões escritas e faladas, indicando-nos os pontos cardeais do “estado da arte” da nossa (des)fortuna, os acho tão decisivos para o nosso destino comum e merecem a minha homenagem. Sem ironia. Eles representam grosso modo, a Ágora da nossa Polis, sintetizam os nossos preconceitos e medos, as nossas virtudes e defeitos, o atraso e o progresso das nossas vidas. Os influencers encartados, uns políticos outros jornalistas (uma distinção nem sempre óbvia). Claro que, dentre os jornalistas, prefiro ouvir aqueles mais perspicazes e profundos, que tiveram tempo para ler livros, conheçam a nossa História (vê-se logo quando estão limitados aos livros do secundário) que se esforçam por ser mais independentes da última moda, em dizer alguma coisa original, que não se dilua na espuma dos dias.
Ora, acontece que, se o nosso sistema partidário aparenta finalmente, após 50 anos sob o fim do Estado Novo, capacidade para acolher um partido nos moldes do outro extremo do espectro, o mesmo não acontece com o comentário televisivo, o que é uma pena pouco democrática. A irracionalidade patenteada por demasiados jornalistas na análise dos debates com o Ventura causaram-me vergonha alheia, e pergunto-me se perceberam que se limitaram a ser os idiotas úteis do Chega e de cada vez mais gente desfavorecida pelos donos do regime, revoltada porque não tem voz.
Face ao paradigma de pós-democracia descrito por autores como Colin Crouch ou Jacques Rancière, ao verem que os cidadãos têm acesso aos procedimentos democráticos sem que isso garanta uma democracia viva, os teóricos populistas de esquerda defenderam a necessidade de politizar o espaço público. Mais: não só politizar como politizar emotivamente. Para sair da falsa democracia, da «democracia sequestrada, condicionada, amputada» como Saramago descreveu, o populismo de esquerda valoriza o antagonismo em que as emoções ocupam um lugar primordial para que se politize o espaço público e, consequentemente, se secundarize o lugar da racionalidade (que é vista como responsável pela despolitização).
Num contexto de fragilidade democrática e de polarização emotiva das opiniões, o aprofundamento da politização do espaço público impossibilita o questionamento crítico das verdades individuais ou tribais. Dentro deste novo paradigma de politização e polarização afetiva do espaço público, o diálogo negociante entre as partes torna-se diminuto. A democracia abandona a possibilidade de gravitar em torno da verdade ou conhecimento. Ela gravita em torno da doxa. É a opinião pública, à esquerda e à direita, fabricada de variadíssimas formas e tendo as emoções como grande arma para pôr um elefante dentro de uma garrafa de vinho, que ganha eleições democráticas. Talvez tenha sido sempre essa a grande virtude e fragilidade da democracia, a saber, que ela está na esteira da filodoxia, não na esteira da filosofia, como apontara Alexandre Franco de Sá.
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De qualquer forma, o valor dado, na democracia de hoje, à opinião e o lugar privilegiado das emoções nas discussões políticas aparecem-nos como uma grande fragilidade.
A teoria do populismo de esquerda, nomeadamente com a empresa do Pós-Marxismo e a sua abordagem discursiva focada nas emoções, aprofunda esta debilidade. Acreditam que é necessária a criação de uma fronteira transversalmente populista para eliminar o consenso neoliberal e a via escolhida para tal intento é a criação de um antagonismo, de inspiração schmittiana, entre amigos e adversários. Não se atenta contra a vida, apenas se combatem as ideias. Mas apenas se combatem as ideias dos que não são inimigos (mas sim adversários), pelo que a categoria de inimigo não desaparece, é expulsa.
Tendo as emoções um papel central para a transformação do antagonismo que mataria o inimigo num antagonismo que só mata ideias, bem como um papel para definir o povo como oposto da elite e dos que estão à direita, o populismo de esquerda acaba por ser assumidamente emocionalmente polarizado.
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Esta adoração dos afetos acaba por exacerbar o fechamento da discussão em bolhas acríticas das suas crenças. São lugares sem abertura perante o futuro, que nos levam, como Susan Neiman aponta, para a prisão da marginalização em que o foco não está naquilo que fizemos ao mundo, mas naquilo que o mundo nos fez. Esta polarização afetiva, que o estudo do Mercator Forum Migration und Demokratie demonstra como sendo mais visível à esquerda, coloca desafios à democracia que ainda não foram devidamente considerados porque, embora as emoções vivam à flor da pele e dos tempos, elas são muitas vezes cegas e insensíveis. As emoções conseguem biologizar o que não é biológico; construir verdades acerca do passado a partir de memórias fabricadas; relatar a realidade presente a partir da experiência individualmente existencial. É por essa razão que as emoções da esquerda populista ainda não reconheceram, nem prática nem teoricamente, os novos ventos de máxima politização que fazem com que os barcos regressem para o outro lado da costa da ilha da pós-democracia. Nem se espera que consigam algum dia fazer.
Pedro Pinheiro no https://observador.pt/opiniao/a-polariz
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