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Depois do intermezzo cómico de pôr Rosas e Louçã a falar sobre reguadas no regime que acabou com o analfabetismo infantil, faço outro post, agora sobre assuntos sérios.
Eu sei que fazer previsões sobre o futuro é ainda menos inteligente que fazer previsões sobre o passado, mas é mais forte que eu, o risco é a minha profissão.
Praticamente todos os dias dou uma vista de olhos nas previsões meterológicas para a semana seguinte.
Há uns dias comecei a reparar nas previsões ao longo da raia beirã e transmontana.
Hoje, parecendo-me já mais seguro - tanto quanto previsões meteorológicas são seguras a mais de três dias - confirmei com quem sabe mais que eu (daí o boneco com começo isto).
A partir de hoje, mas sobretudo a partir de Sexta-feira, ao longo do próximo fim de semana e, mais ainda, Segunda e Terça que vem, a conversa de estarmos a conseguir, deste ano termos reduzido muito as ignições e a área ardida (até nas compras no Pingo Doce me moem o juízo com essa conversa, dando-me os parabéns por termos todos conseguido bons resultados na gestão do fogo) e essas coisas todas, é capaz de sofrer um engasgo.
Falta o ingrediente do vento forte, aparentemente, portanto não é natural que a situação fuja completamente do controlo, mas se os jornais e televisões votarem a falar de fogos nos próximos dias, duvido que seja para dizer que está tudo a correr pelo melhor, como panglossianamente os governos de turno e a imprensa repetem sempre que as condições meteorológicas são desfavoráveis à progressão do fogo.
E faço o post já hoje por uma razão simples, é uma forma de testar o modelo de análise: se não houver nada, os critérios de análise que estou a usar não são grande coisa, se começar a aparecer fogo mais relapso aqui e ali, é porque afinal isto é essencialmente uma questão de meteorologia e gestão de combustíveis e escusam de me moer o juízo nas compras com tretas sobre ignições e o meu papel na gestão do fogo.
Não sei se se consegue ver este anúncio (agora chama-se trailer) de um programa na RTP2 sobre o exame da quarta classe no tempo do Estado Novo.
O programa passa na Sexta feira, dia 13, às 20 e 40, e tenho bastante curiosidade em o ver, claro.
O que estranho é que as duas pessoas que reconheço a falar sobre o assunto (a terceira não sei quem é), são Fernando Rosas e Francisco Louçã, dois reconhecidos especialistas em história da educação e, em qualquer caso, intelectuais de vulto cuja fama de independência de análise vem de mais longe que a fama do brandy Constantino.
Mandaram-me esta fotografia de 1958 do Curral das Freiras, na Madeira e isso acabou por ser a motivação final para escrever um post que há vários dias punha a hipótese de escrever.
Quando escrevi este post, um botânico, dos melhores que o país tem, disse-me que não via Darwin em lado nenhum do post.
Eu acho bastante óbvia a referência a Darwin, mas sei que o óbvio é uma coisa muito subjectiva, de maneira que me vou servir deste artigo do Observador para voltar ao assunto.
No essencial, Miguel Sequeira, que conhece a flora da Madeira como pouca gente, traça um cenário catastrófico resultante do fogo deste ano.
Eu não conheço a Madeira, mas tenho umas luzes sobre evolução da paisagem e é a partir dessa ignorância e dessas luzes que faço este post.
Qual é o meu problema de base em relação ao discurso catastrófico do género "é muito provável que aquela pequena ocorrência tenha desaparecido" (paralelo ao discurso da extinção da freira da madeira que, afinal, parece não ter sido afectada pelo fogo)?
É que o desaparecimento de uma espécie, ou mesmo de uma população relevante, ou resulta de um processo contínuo de alteração das condições que permitem a sua sobrevivência, ou de fenómenos excepcionais, como a descoberta e colonização da ilha, por exemplo.
Para que se admita que este fogo tem efeitos excepcionais sobre o património natural, é preciso admitir, em primeiro lugar, a excepcionalidade deste incêndio, de outra forma, se o fogo não for absolutamente excepcional, é muito pouco provável que gere efeitos negativos excepcionais, como extinguir espécies ou populações relevantes.
E ressalvo já que escrever o parágrafo anterior não é desvalorizar os efeitos do fogo ou dizer que este incêndio não possa ter tido efeitos negativos que era melhor que fossem evitados, é apenas dizer que efeitos excepcionais resultam de factos excepcionais, em princípio.
Miguel Sequeira, pelo contrário, dá indicações de que nada de excepcional se passou com este fogo: "revoltado com a facilidade com que os incêndios florestais continuam a acontecer e a ameaçar a vida natural, por razões quase sempre atribuídas à negligência ou ao crime".
Comecemos pelos factos conhecidos: terão ardido 5 116 hectares numa semana (uma área semelhante ardeu em três horas no pinhal de Leiria, para se ter um termo de comparação sobre a intensidade e rapidez de progressão do fogo), dos quais, 139 hectares terão sido de laurissilva.
Factualmente, portanto, a ideia de que era a laurissilva que estava a arder tem muito pouca sustentabilidade nos dados. Isso não é desvalorizar os 139 hectares de laurissilva que teria sido melhor que não ardessem (eu não discuto isso porque não sei o suficiente sobre esses sistemas para discutir se é ou não um problema de conservação relevante arder parte da laurissilva), é fixar os dados, para depois poder discutir interpretações.
Consciente do desfasamento entre o discurso conservacionista sobre o fogo na Madeira, completamente focado na Laurissilva, e a realidade de que afinal a esmagadora maioria da área queimada não é laurissilva, Miguel Sequeira reorienta a informação para a riqueza patrimonial dos matos, no que tem razão, mas retira da discussão quase toda a argumentação a favor da supressão do fogo - a ideia de que a laurissilva convive mal com o fogo - porque esses matos têm pelo menos 500 anos de convivência com o fogo e o gado (Darwin está aqui, na integração da evolução de áreas que há 500 anos convivem com fogo e gado que impede a argumentação usada de que a laurissilva evoluiu quase sem fogo e herbivoria).
“Temos mais de 100 endemismos na ilha da Madeira”, lembra o botânico, explicando que a “maior parte dos endemismos da Madeira está em risco crítico de extinção”, mas sem explicar por que razão se admite que o fogo seja um dos factores que contribui para esse risco crítico de extinção quando está presente há pelo menos 500 anos (juntamente com a herbivoria).
Uma coisa é dizer que esses matos são fases iniciais de evolução da vegetação que conduzirá à laurissilva, se eliminarmos o fogo e herbivoria do sistema, assumindo que o valor de conservação está na laurissilva (e não discuto aqui o facto das tentativas de supressão do fogo, de maneira geral, se traduzirem por alterações do padrão de fogo, de frequente, em mosaico e pouco intenso para menos frequente, mais contínuo e mais intenso), outra coisa é assumir que o valor de conservação afinal está também nos matos, pressupondo que o fogo prejudica as espécies que há 500 anos convivem com fogo e herbivoria.
Outra ressalva, não estou a discutir a questão das invasoras, que é uma questão bastante mais consensual, embora de resolução difícil, sobretudo partindo do pressuposto de que não existe, que eu saiba, nenhum exemplo de sucesso de políticas de supressão do fogo em áreas extensas.
"De acordo com o botânico da Universidade da Madeira, há ainda outro problema associado a este incêndio: “As plantas das ilhas não estão adaptadas ao fogo. O fogo promove as espécies exóticas. Numa ilha, o fogo só promove as espécies que introduzimos e que são adaptadas ao fogo.”".
Esta argumentação é emocionalmente muito forte, tem uma base técnica razoável (as plantas das ilhas não estão adaptadas ao fogo, matéria que não sei discutir), mas tem um problema: há 500 anos que a ilha foi colonizada com fogo e gado, e as espécies menos aptas a essas novas condições extinguiram-se, com certeza, logo que essas novas condições começaram a operar.
As espécies que hoje subsistem, convivem há 500 anos com as novas condições, não havendo nenhuma razão para supor que hoje existe mais fogo e gado que em meados do século XX (ver fotografia inicial do post).
Pode haver um padrão diferente de fogo, como acontece no continente, porque o abandono permite uma maior acumulação de combustível e isso ter um efeito mais negativo sobre a conservação dessas espécies mas, se assim for, a gestão de combustíveis é a questão chave que, a não ser feita, acentua essas alterações do padrão de fogo.
A ideia de que as políticas de supressão do fogo impedem o fogo é errada, as políticas de supressão do fogo alteram o padrão de fogo no termos que descrevi acima, acentuando os riscos para as espécies que poderiam beneficiar com a supressão do fogo.
Bingo! Aqui está o corolário de toda a argumentação fortemente emocional, e cega em relação à ecologia do fogo, que tem dominado os meios da conservação quando falam do fogo na Madeira:
"“É um círculo vicioso que começa com um fósforo”, acrescenta, lembrando como a maioria dos fogos têm origem humana — seja por mão criminosa, seja por negligência. No caso deste incêndio da Madeira, já está confirmado que a origem do incêndio foi o lançamento de um foguete e o Ministério Público até já constituiu um arguido na investigação".
Camaradas, tenho uma novidade para vos dar, o caminho da supressão do fogo sem aumento do conhecimento relacionado com a ecologia do fogo, é um caminho velho em todo o mundo, sempre, sempre, sempre com o mesmo resultado: fogos futuros mais destrutivos.
Darwin anda por aí.
Há bastante gente a achar que os jornalistas são todos avençados do PS (e BE) e portanto seguem a agenda destes partidos.
Não estou convencido disso, do que estou convencido é de que a maioria dos jornalistas, sobretudo desde que há escolas de jornalismo, são sacerdotes do politicamente correcto e adeptos ferrenhos dos bons sentimentos, julgando-se investidos na missão de consertar o mundo, e não tanto de produzir informação validada sobre ele, que sentem que é uma actividade menor de jornalistas sem rasgo, sem capacidade de ler nas entrelinhas.
Isso torna a generalidade das redacções uma presa fácil da wokaria, dos que defendem os fracos e oprimidos, dos que se opõem aos interesses e por aí fora.
Esta história da TAP é uma boa ilustração disso e vou tentar explicar esta minha opinião (sim, é uma mera opinião).
Estou convencido de que boa parte do jornalismo partilha desta ideia de Pedro Adão e Silva: "declaro que não tenho reservas em relação a uma TAP privatizada desde que ... seja compatível com a preservação de uma companhia de bandeira", isto é, são pessoas que estão de acordo com a chuva, desde que não molhe.
Do mesmo modo, não parecem entender que dizer que "o Estado fez injecções de capital superiores a 3000 milhões de euros para suprir necessidades de financiamento (uma vez que os privados não tinham essa capacidade...)" é o mesmo que dizer que o negócio era suficientemente mau para não garantir retornos de capital interessantes face ao risco, o que significa, para quem acha que Portugal tem de ter uma companhia de aviação de bandeira, que só um Estado que não discute custos de oportunidade é que vai alocar capital suficiente para a companhia funcionar, sem esperar que algum dia esse dinheiro dos contribuintes seja pago pelos utilizadores da TAP (isto é, sem esperar que o dinheiro que é tirado aos pescadores de Rabo de Peixe e aos pastores da serra da Estrela sob a forma de impostos lhes seja devolvido pelos utilizadores da TAP sob a forma de preços de viagem que remunerem a operação e o capital da companhia).
Com estas dissonâncias cognitivas, é fácil pôr o jornalismo a papaguear coisas completamente absurdas de que vou dar um exemplo.
O famoso artigo que a Inspecção Geral de Finanças diz que poderá ter sido, indirectamente, contornado, diz, ipsis verbis, o seguinte:
"Artigo 322.º (Empréstimos e garantias para aquisição de acções próprias) 1 - Uma sociedade não pode conceder empréstimos ou por qualquer forma fornecer fundos ou prestar garantias para que um terceiro subscreva ou por outro meio adquira acções representativas do seu capital. 2 - O disposto no n.º 1 não se aplica às transacções que se enquadrem nas operações correntes dos bancos ou de outras instituições financeiras, nem às operações efectuadas com vista à aquisição de acções pelo ou para o pessoal da sociedade ou de uma sociedade com ela coligada; todavia, de tais transacções e operações não pode resultar que o activo líquido da sociedade se torne inferior ao montante do capital subscrito acrescido das reservas que a lei ou o contrato de sociedade não permitam distribuir. 3 - Os contratos ou actos unilaterais da sociedade que violem o disposto no n.º 1 ou na parte final do n.º 2 são nulos."
É claríssimo o que está em causa: uma sociedade (no caso, a Airbus, visto ser ela a sociedade que forneceu fundos) não pode fornecer fundos para que um terceiro (no caso, Neeleman) adquira acções do seu capital (seu, da Airbus, que é quem fornece os fundos, embora eu já tenha referido, e vários comentadores do blog também façam referência, vale a pena ouvir este vídeo, para quem ainda tenha dúvidas sobre os fundos que a Airbus colocou na TAP).
O número 2 aponta para o problema que motiva esta proibição: se uma sociedade empresta, ou presta garantias, para que um terceiro compre acções suas, na verdade está a fazer sair dinheiro da sociedade para terceiros, é uma forma manhosa de descapitalização de uma empresa (formalmente o capital é o mesmo, as acções limitam-se a mudar de mãos, mas como a transacção é financiada, ou garantida, pela empresa, corresponde a um aumento do passivo, sem qualquer contrapartida de um activo).
Pois bem, em que se baseia a hipótese da IGF de que o processo privatização talvez tenha contornado esta norma?
Neeleman compra o capital com dinheiro seu (sobre isso não há dúvidas).
No contrato de privatização, obriga-se a capitalizar a TAP, depois da aquisição de capital (sobre isso não há dúvidas).
Para capitalizar a TAP, pede dinheiro emprestado à Airbus que o vai colocar na TAP (não no bolso Neeleman) (sobre isso não há dúvidas).
Daqui resulta que o balanço da TAP se reforça, na medida em que entram fundos que não podem ser retirados da TAP no prazo de trinta anos, ou seja, a preocupação da norma do Código das Sociedades Comerciais - impedir a descapitalização por transferência de fundos da sociedade para terceiros sob a forma de empréstimos que não têm contrapartida em nenhum activo - não é minimamente ofendida, bem pelo contrário, o que há é um reforço do capital da TAP (sobre isso não há dúvidas).
A IGF entende que como esta obrigação de capitalização estava no contrato de privatização, e como depois de comprar a companhia, é a TAP que se responsabiliza por pagar essa entrada de fundos (por compra de aviões ou, no caso de não os comprar, pagando à Airbus), a IGF admite que uma operação que reforça o capital da TAP por entrada de dinheiro de terceiros, viola a norma que pretende impedir a saída de capital da TAP para o bolso de terceiros, coisa que manifestamente não aconteceu, até porque a TAP não tinha esses fundos (esse era mesmo o problema da TAP, não ter recursos para continuar a operar).
Parágrafo confuso, eu sei, mas eu não tenho responsabilidade nenhuma na tortuosidade da argumentação da IGF.
Com um relatório que contém números de circo como este, o que faz a imprensa?
Não publica o relatório, interpreta o flic-flac com pirueta argumentativa da IGF como querendo dizer que a TAP foi privatizada com dinheiro da própria companhia (coisa que o relatório da IGF não se atreve a dizer, por ser totalmente falso, para além de absurdo face à situação de agonia financeira da TAP naquela altura), e parte à desfilada na produção de chouriços jornalísticos que encaixam na sua ideia base: os negócios e a produção de riqueza são actividades indignas e a nossa obrigação é denunciar os ricos e poderosos através da exposição das suas manigâncias que lhes permitem enriquecer à custa dos pobres e deserdados.
E eu entretenho-me a falar destas dissonâncias cognitivas que acho muito interessantes por serem tão representativas da natureza humana e da precedência das emoções sobre a racionalidade (felizmente, doutra forma estaríamos todos mortos, poucas coisas são tão perigosas como a busca da racionalidade acompanhada da negação da relevância das emoções).
Pedro Adão e Silva (que conheço pessoalmente do surf, embora há muito tempo que não o veja, penso que a última vez que estive com ele foi da única vez na vida que almoçámos os dois, a seu convite, para ele ter uma ideia mais clara do que é que eu saberia e poderia documentar sobre o caso Freeport, há muitos anos, portanto) tem hoje uma informação curiosa sobre o famoso relatório da IGF na sua crónica.
Diz o Pedro que "após surgirem as primeiras notícias do relatório da IGF, procurei a versão integral, encontrei-a no site do ECO (foi retirada ontem) ... A versão para download tem marcas de água ... fica sugerido que a fuga foi promovida a partir do gabinete ministerial. Porquê? Não se percebe: então o timing da divulgação não era prejudicial a Maria Luís Albuquerque?".
O Pedro é uma pessoa inegavelmente inteligente e, como acontece com alguma frequência a pessoas muito inteligentes, tende a subestimar a inteligência dos outros.
O aparecimento das notícias sobre o relatório não resulta do trabalho do ECO e da divulgação do relatório pelo ECO, mas sim do trabalho jornalístico da SIC que não divulga o relatório, a SIC limita-se a dizer que o relatório diz isto e aquilo (em especial, a SIC, desde o primeiro momento da divulgação, apresenta como notícia uma mentira evidente para quem ler o relatório: em lado nenhum a IGF diz que a TAP foi comprada com recursos da TAP, mentira que, aliás, Pedro Adão e Silva repete numa crónica anterior).
O que explica por que razão é conveniente ao governo disponibilizar o relatório integralmente: quem o ler, sabe que o que os jornais estão a dizer que ele diz é mentira, não é precisa nenhuma teoria de conspiração.
E explica por que razão é tão raro os orgãos de comunicação social disponibilizarem versões integrais do relatório.
Curiosamente, Pedro Adão e Silva parece achar muito importante saber em que computador foi escrito um despacho qualquer, mas não parece achar nada importante o facto da generalidade dos jornalistas dificultarem o acesso das pessoas comuns a um relatório que, tendo já sido homologado, é um documento público a que com certeza tiveram acesso (mesmo tendo uma opinião pouco favorável do jornalismo actual, não acredito que haja tanto jornalista a escrever sobre um relatório a que não tenham acesso).
"O relatório da Inspeção-Geral de Finanças conclui que o negócio de compra da TAP por David Neelman foi financiado com um empréstimo de 226 milhões de dólares feito pela Airbus, em troca da compra pela companhia aérea de 53 aviões à construtora aeronáutica europeia.
ou seja , comprou a tap com uma venda de aviões à tap. a tap comprou esses aviões à toa , podia ser que outra empresa proporcionasse um melhor negócio na compra dos aviões. a tap precisava de mais 53 aviões na altura ? essa questão tem de ser respondida".
Estas dúvidas, por mais que já tenham sido respondidas (podem procurar o video a audição de Diogo Lacerda Machado, na comissão de inquérito da TAP, que penso que ninguém dirá que é um avençado de Passos Coelho), são legítimas e postas de forma perfeitamente razoável e por isso respondo aqui.
Em primeiro lugar convém esclarecer que não é verdade que o relatório da Inspecção-Geral de Finanças conclua que o negócio da compra da TAP foi financiado com um empréstimo de 226 milhões de dólares feito pela Airbus, em troca da compra pela companhia aérea de 53 aviões.
A TAP foi vendida e, consequentemente, comprada, por 10 milhões, com dinheiro de David Neeleman.
Posteriormente, e na sequência das obrigações contratuais resultantes dessa compra, foi financiada em 226 milhões de dólares.
O que os juristas da Inspecção Geral de Finanças (os dois chefes de equipa que participam no processo têm um uma ligação ao governo de Guterres, outro ao governo de Sócrates, mas esqueçamos isso) admitem como hipótese, a ser avaliada pelo Ministério Público, é que a essa capitalização se aplica legislação que explicitamente é sobre a compra de acções, no pressuposto de que sendo a capitalização uma parte essencial do processo de privatização, então a capitalização, ainda que indirectamente, se inclui na compra do capital da empresa.
Não sou jurista, não vou discutir esta interpretação fascinante, mas como leigo parece-me evidente que tendo Neeleman pago dez milhões ao Estado (Neeleman na qualidade de comprador, o Estado na qualidade de vendedor) e sendo a TAP (não o Estado) o destinatério dos 226 milhões, fundos que forçosamente ficam trinta anos na TAP, contratualmente, é absurdo pretender que dinheiro que entra na empresa pode ser juridicamente tratado com base em normas que se aplicam à compra de acções.
Mas deixo essa parte da o Ministério Público avaliar.
Esclarecida esta parte sobre o que realmente conclui o relatório da IGF, vamos à substância.
A TAP tinha encomendado aviões à AIRBUS e estava em sério risco de incumprimento contratual por falta de dinheiro, o que teria como consequência perder quase 50 milhões de prestações já pagas, sem qualquer renovação de frota.
O que Neeleman faz é ir ter com a Airbus, apresentar-lhes um projecto para a empresa que implica transferir o dinheiro já pago para uma nova compra de aviões alinhada com o conceito estratégico que tem para a empresa, anular a compra anterior, explicando que para fazer isto precisa urgentemente de 226 milhões para resolver os problemas de tesouraria da TAP e, com isso, manter a companhia a voar e a comprar aviões à AIRBUS.
A troca dos aviões encomendados por outros (bastante mais baratos) justifica-se porque os primeiros só têm vantagem em vôos acima de 10 horas (de que a TAP só tinha duas rotas) significando, para o novo conceito estratégico trazido por Neeleman, de pôr a TAP a fazer a ligação entre a Europa e as Américas, essa troca é uma vantagem operacional brutal.
A AIRBUS acredita no projecto de Neeleman, empresta-lhe o dinheiro a ele (que depois transfere para a TAP, nessa altura, também de Neeleman), exigindo no entanto uma garantia adicional no caso da compra dos novos aviões não se concretizar.
Resumindo, não compra a TAP com uma compra de aviões, financia a TAP, que entretanto comprou, junto de um fornecedor com interesse em manter um cliente relevante e, até hoje, ninguém demonstrou que o preço dos aviões tenha sido inflacionado para pagar esse empréstimo.
Achar que a AIRBUS anda metida em negócios manhosos (financiar clientes e depois aumentar os preços de venda) por estes valores é não ter a mínima noção do que é a diferença entre o valor da operação comercial em causa e o valor reputacional para a AIRBUS que representaria a demonstração de que a AIRBUS andava metida em esquemas mafiosos para beneficiar uns clientes em detrimento de todos os outros.
Manuel Carvalho, ontem, no Público (como não?) resolve, com a infantilidade e a irresponsabilidade dos jornalistas militantes, chamar nomes a David Neeleman.
"um chico esperto foi capaz de atravessar o Atlântico Sul" (Manuel Carvalho não deve saber que David Neeleman é cidadão americano, ou que os EUA e Portugal são separados pelo Atlântico Norte).
"o que foi do princípio ao fim uma manobra de videirinhos".
"um aventureiro dos negócios".
"Portugal um país patusco, fácil de endrominar por espertalhões com nome estrangeiro".
"um governo se submeteu aos ditames de uns espertalhões que compraram uma companhia nacional sem terem de a pagar com o seu dinheiro".
E por que razão se encheu de fúria Manuel Carvalho?
Porque, na sua própria opinião, "convém ser justo e recordá-lo, a TAP dá hoje lucro em boa medida porque a gestão privada lhe abriu novas rotas, a modernizou e reforçou o seu valor estratégico de ponte entre a Europa, as Américas e a África".
Pelos vistos, o "aventureiro dos negócios" foi capaz de fazer o que os outros todos não conseguiram (a empresa estava em falência técnica, isto é, os seus passivos eram maiores que os seus activos, e estava sem liquidez ao ponto de estar em risco de deixar de pagar salários e as prestações devidas a um dos seus principais fornecedores, a Airbus, quando o "aventureiro dos negócios" pegou nela e a passou de perdócio a negócio, para usar a terminologia de Belmiro de Azevedo, outro "aventureiro dos negócios" de cuja caridade benevolente depende, ainda hoje, o Público).
Aventureiro dos negócios há muitos, Thomas Edison, Henry Ford, Bill Gates, Elon Musk, etc., etc., etc., felizmente para todos nós que precisamos da criação de riqueza para ter uma "vida boa" (não resisti ao prazer de citar o Bloco de Esquerda, concordando).
Aventureiros de perdócios, como os jornalistas do Público é que há poucos, por uma razão simples: é muito difícil convencer um "aventureiro de negócios", como Belmiro de Azevedo, a perder vários milhões por ano num perdócio como o Público.
Por que razão um perdócio, como o Público, não consegue passar a negócio ao fim de 34 anos a consumir capital generosamente disponibilizado pelos "aventureiros de negócios" que o financiam?
Penso que o próprio artigo de Manuel Carvalho, que foi director do jornal, consequentemente, com responsabilidades grandes no perdócio, é cristalino na ilustração das razões pelas quais aquilo, do ponto de vista da aplicação racional de capital, é um desastre: "Não venham dizer que Neeleman acabou por "meter" os 203 milhões de euros (226,7 milhões de dólares) na TAP ou que não se serviu da dívida da empresa para pagar os 61% que adquiriu ao Estado".
Comecemos pela qualidade jornalística e depois vamos à questão de fundo.
Para fundamentar esta parvoíce, Manuel Carvalho cita o relatório da IGF que diz exactamente o contrário do que Manuel Carvalho conclui: "para além de 10 milhões do preço", ou seja, o relatório da IGF diz claramente que o preço dos 61% de capital foram 10 milhões e foram pagos por David Neeleman. Depois fala em prestações suplementares de capital, que foram efectuadas com dinheiro da Airbus, integrando progressivamente os activos da TAP à medida que a actividade da TAP foi remunerando essas prestações suplementares de capital, na forma que tinha sido contratada (Manuel Carvalho parece ter a ideia de que as receitas futuras de uma empresa que precisa de capital para as conseguir gerar são um património da empresa, não admira que o Público nunca tenha passado de perdócio a negócio).
Mas a parte mais luminosa do parágrafo em análise é mesmo esta: "se serviu da dívida da empresa para pagar os 61% que adquiriu ao Estado".
Manuel Carvalho está mesmo convencido de que se pagam contas com dívidas. Vou ao supermercado, e posso pagar com a dívida que tenho da compra do carro, diz Manuel Carvalho.
E assim se explica por que razão, ao fim de 34 anos a consumir capital, o Público continua a ser um perdócio e não um negócio: os seus principais responsáveis não fazem a menor ideia de como funciona a economia e as finanças, razões pelas quais acham normal insultar um tipo que, no caso da TAP "lhe abriu novas rotas, a modernizou e reforçou o seu valor estratégico de ponte entre a Europa, as Américas e a África", escudando-se no orgulhoso estatuto que consideram uma dádiva divina inquestionável: serem grandes "aventureiros dos perdócios".
Na campanha que a esquerda e o jornalismo (repito-me, eu sei) resolveu fazer a partir da indicação de Maria Luís Albuquerque, Miguel Pinto Luz tem apanhado por tabela com o argumento de que fez um negócio na 25ª hora, "pela calada da noite", como escreveu Pedro Adão e Silva.
Trata-se de uma calúnia que, para ser eficaz, precisa de duas coisas: 1) ser repetida mil vezes, o que tem sido conseguido com o esforço militante da imprensa; 2) ter um fundo de verdade.
O fundo de verdade é que há um contrato assinado por Miguel Pinto Luz, já com o governo em gestão.
Pode discutir-se se um governo de gestão tem legitimidade para assinar esse contrato e se Miguel Pinto Luz assinou, assume a responsabilidade por essa assinatura, claro.
O certo é que isso se passou há nove anos, que essa privatização foi amplamente escrutinada antes e depois dessa assinatura, incluindo queixas ao Ministério Público que deram como resultado o arquivamento do processo por ausência de indícios de ilegalidade, mas repete-se que foi tudo feito "pela calada da noite", na 25ª hora.
É uma mentira clara.
A privatização da TAP foi muito difícil, por duas razões diferentes.
A primeira e mais importante, porque a TAP estava falida, não valia um tostão, não apareceram interessados relevantes com excepção de Neeleman, havia um compromisso de venda da companhia assumido por Sócrates em diversas ocasiões, incluindo no Memorando de Entendimento com a troica, mas que repetia compromissos anteriores de privatização e o Estado estava impossibilitado pelas regras europeias de lá meter dinheiro para resolver, mesmo que temporariamente, o gravíssimo problema de liquidez e endividamento.
A segunda porque havia uma oposição interna à privatização da TAP que o principal partido da oposição, o mesmo que sendo governo se tinha comprometido a privatizar a companhia, resolveu cavalgar por puras razões de tática eleitoral (as mesmas razões que levaram o Chega, mais tarde, a cavalgar a mesma ideia de que é muito importante um país ter uma companhia aérea estatal, ideia essa que a imprensa abraça militantemente e parece ter algum valor eleitoral).
Por esta segunda razão, o processo foi intensamente escrutinado, e pela primeira razão, a proposta de privatização incluía um plano de recapitalização urgente para evitar a ruptura de pagamentos, dando tempo a que o novo dono reformulasse o modelo de negócio da TAP, tornando-a rentável, a prazo (consequentemente, remunerando o capital próprio e garantindo o serviço da dívida, incluindo a que tinha sido criada com o plano de capitalização urgente).
A privatização foi, portanto, um processo longo, cheio de obstáculos, incluindo de contestação legal a muitas decisões, que culminou com a decisão final de privatização em Junho de 2015.
Nessa altura, ficou tudo fechado e acordado, mas era preciso que os reguladores se pronunciassem sobre as minutas dos contratos, antes da sua assinatura final.
Os reguladores demoraram uns meses a dar luz verde, o que aconteceu penso que já em Novembro, razão pela qual só nessa altura foi possível assinar definitivamente os contratos associados à privatização que tinham sido fechados em Junho.
Volto a dizer que é discutível se um governo em gestão tem legitimidade para formalizar a assinatura dos contratos que tinham sido fechados antes, percebo que a opção era difícil porque a TAP estava sem dinheiro para pagar salários sequer e qualquer novo percalço poderia ter consequências muito graves, incluindo a falência da companhia, com o que isso significaria de desemprego.
Pessoalmente, tendo a achar que uma empresa falir é uma chatice, mas não é um drama, mas isso sou eu a escrever aqui escrever num teclado, sem nenhuma pressão de responsabilidade real pelos efeitos que as minhas decisões têm na vida de pessoas concretas.
O que conta, no entanto, é que falar em privatização da TAP, na 25ª hora, pela calada da noite (a que se acrescenta a treta da TAP ter sido comprada com dinheiro da TAP) é pura desonestidade, nada mais.
Um relatório diz:
"Daqui pode inferir-se que as prestações suplementares de capital efetuadas pela Atlantic Gateway à TAP, SGPS resultaram de fundos da AIRBUS que a própria TAP, SGPS, através dos contratos celebrados posteriormente com aquela empresa, se comprometeu a pagar, não decorrendo, por isso, diretamente da acionista Atlantic Gateway, mas sim de um terceiro com interesses diretos nos negócios da empresa e através de fundos que posteriormente viria a recuperar mediante pagamentos a que a TAP, SA se vinculou contratualmente (efetuados por via da aquisição das aeronaves ou decorrentes de penalizações por eventuais incumprimentos).
Esta operação complexa afigura-se suscetível de contornar a proibição imposta pelo n.º 1 do artigo 322.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), o qual impede que uma sociedade conceda empréstimos ou forneça fundos a um terceiro para que este adquira ações do seu próprio capital, cuja penalidade consiste na nulidade dos contratos ou atos unilaterais que lhe estão subjacentes (vd. n.º 3 do artigo 322.º do CSC).
Cremos, pois, que os negócios em causa, aquisição dos 61% do capital da TAP, SGPS e a sua capitalização pela Atlantic Gateway, preenchem, ainda que de forma indireta, os requisitos exigidos neste normativo do CSC."
Mais à frente, o próprio relatório, refere o contraditório (que a mim, que não sou jurista, me parece evidente e que os auditores contornam com a interpretação criativa da lei que citei) a esta conclusão: "a Parpública destaca que importa distinguir juridicamente a aquisição de acões e a realização de prestações suplementares, uma vez que obedecem a regras e procedimentos distintos, realçando ainda que não é parte no Framework Agreement."
Resumindo, o famoso relatório da IGF diz claramente que a capitalização da TAP é feita com fundos da Airbus, e não com os recursos da TAP, mas que sendo essa capitalização condição sine qua non para a decisão de vender a companhia a Neeleman, e tendo Neeleman negociado esses fundos com a Airbus relacionando-os com compras de aviões que a TAP tinha contratado antes (estando em risco de não cumprir os contratos de compra, se falisse, deixando a Airbus pendurada em relação às encomendas), e que Neeleman renegoceia para alterar o modelo de negócio da TAP, em pré-falência, então deve aplicar-se uma norma legal que diz respeito ao financiamento de acções, pelo que talvez esta operação complexa tenha contornado a lei ("é susceptível de", diz a IGF), mesmo sendo claro que o financiamento da Airbus não diga respeito à aquisição de acções da TAP.
O que faz a imprensa a partir daqui?
Primeiro, na generalidade, repete acriticamente uma mentira, a de que a TAP foi comprada com os recursos da TAP (ver, por exemplo, o inacreditável começo do artigo do Público de hoje sobre o assunto: "A privatização da TAP foi paga com o dinheiro da própria companhia aérea", uma mentira absoluta sem qualquer suporte no relatório da IGF).
A partir desta mentira, e para a tornar mais suculenta, é preciso ir mais longe e deixar claro que há ilegalidade "um esquema "complexo" que "contornou" a lei", diz o mesmo artigo, esquecendo o "é susceptível de".
Não se sabe se as aspas estão em "contornou" para vincar que é a IGF que o diz (o que não é, de todo, verdade, o que a IGF diz é que talvez tenha contornado se se admitir que o facto da capitalização ser uma condição sine qua non da privatização, implicar poder aplicar-se a esta operação a norma legal que se aplica à aquisição de acções e não às prestações suplementares em que se baseia a capitalização da empresa), ou para amenizar a transformação do "é susceptível de", a hipótese da IGF que vai ser preciso que o Ministério Público avalie, no "contornou" que o jornal conclui sem margem para dúvidas, o certo é que do texto e título da peça, para a manchete da primeira página, o Público faz desaparecer as aspas e transforma uma conclusão hipotética, a validar posteriormente, na conclusão inequívoca de que a IGF diz que a privatização contornou a lei.
Assente a ilegalidade criada pela imprensa, e sendo os alvos deste esquema de desinformação Maria Luís Albuquerque e o actual governo, é preciso implicar Miguel Pinto Luz, que não tem nada com isto, excepto a circunstância de ser o efémero secretário de estado que está em funções no momento em que os reguladores dão luz verde à operação decidida em Junho, quando Miguel Pinto Luz não estava nas funções que vai ter durante umas semanas de Outubro/ Novembro.
E pronto, omitindo esta circunstância de Miguel Pinto Luz ter apenas o papel de assinar o contrato negociado em Junho, a que os reguladores dão luz verde em Novembro, está feito o canalha.
Pelas suas acções?
De maneira nenhuma, o canalha é feito pela calúnia dos seus adversários políticos, a que a imprensa dá livre curso, vergonhosamente.
Não deixo de ficar comovido, e achar mesmo enternecedor, a quantidade de boas pessoas cuja credibilidade vai ao ponto de acreditar que toda a gente que diz asneiras sobre a privatização da TAP desconhece os factos que descrevo, transcrevendo ipsis verbis o que escreveu Carlos Guimarães Pinto (antecedida, a transcrição, de outro facto: Miguel Pinto Luz chega ao processo de privatização em 30 de Outubro de 2015, quando toma posse o governo que formaliza o que já tinha sido decidido em Junho desse ano, sem a sua intervenção):
"Não, a TAP não foi “comprada com o seu próprio dinheiro”.
Algo que se percebe facilmente porque:
1) A TAP não tinha dinheiro nem para as suas despesas correntes quanto mais para financiar a sua própria compra.
2) O montante que se diz ser da própria TAP não ecistia antes do processo de compra e nunca existiria se não tivesse havido processo de compra
3) Esse montante não foi usado para pagar o preço de compra da TAP, mas para injetar diretamente na TAP para a TAP poder responder aos seus compromissos.
De onde é que surgiu esta narrativa então? De forma simplificada (mas longa):
1. Em 2015 a TAP estava com grandes dificuldades financeiras. O seu valor era próximo de zero (provavelmente negativo) e no processo de privatização não apareceram muitos compradores.
2. O principal fornecedor a quem a TAP tinha dificuldades em pagar era a Airbus a quem tinha feito uma grande encomenda de aviões 10 anos antes.
3. Em 2015, foi feito o acordo de venda de 61% TAP a David Neeleman pelo valor de 10 milhões de euros, tendo David Neeleman assumido o compromisso de injetar mais 217 milhões de euros na TAP para que a TAP pudesse continuar a pagar salários e aos fornecedores. Ou seja, a TAP foi vendida por 10 milhões de euros.
4. Os 217 milhões de euros (o montante de que se fala) foi uma injeção feita na própria TAP porque, lá está, a TAP não tinha dinheiro.
5. Onde é que David Neeleman foi buscar 217 milhões de euros para injetar na TAP?
Ele levou o seu projeto para a TAP à AIRBUS que tinha, obviamente, interesse que um cliente como a TAP continuasse a funcionar. A AIRBUS acreditou no projeto e aceitou trocar a encomenda de grandes aviões que tinha na altura por uma encomendas de aviões mais pequenos (parte da estratégia de Neeleman) e ainda disponibilizar imediatamente os tais 217 milhões de euros (“fundos AIRBUS”) para viabilizar financeiramente a TAP.
6. Estes “fundos AIRBUS” foram disponibilizados a David Neeleman para que ele pudesse injetá-los na TAP e não à TAP diretamente. Ou seja, nunca existiriam se não houvesse processo de compra.
6. O interesse da AIRBUS era, obviamente, que a TAP continuasse a funcionar e a pagar encomendas. A AIRBUS protegeu-se colocando como penalização caso a TAP não pagasse as encomendas no futuro os tais 217 milhões de euros (“fundos AIRBUS”).
7. David Neeleman comprou a TAP por 10 milhões e meteu os 217 milhões de “fundos AIRBUS” na TAP para que a TAP pudesse pagar a fornecedores e trabalhadores.
Ou seja, os 217 milhões de euros que dizem ser “dinheiro da própria TAP” era dinheiro que
- a TAP não tinha (daí precisar que o injetassem)
- não foi usado para comprar as ações da TAP
- entrou na TAP apenas porque Neeleman negociou com a AIRBUS essa entrada.
A única ponta de verdade nesta história é que a AIRBUS só aceitou ceder os 217 milhões de euros porque acreditou que com o projeto de Neeleman, a TAP iria ser capaz de pagar as encomendas. Ou seja, indiretamente, o dinheiro que a TAP iria gerar no futuro compensaria a tal injeção de 217 milhões de euros. É a isto que chamam "dinheiro da própria TAP": dinheiro que não existia, que não estava na TAP, mas que a AIRBUS acreditou que pudesse gerar no futuro com o projeto Neeleman."
"Uma imagem assustadora da mancha florestal (exótica e densa) que envolve o Mondego -Oliveira do Mondego".
Penso que a fotografia, mas seguramente a legenda, é de Helena Freitas, uma conhecida e reconhecida académica que há anos tem uma posição relevante no movimento ambientalista (foi presidente da Liga para a Protecção da Natureza), participa em numerosos projectos de conservação pelo mundo (penso que através da Universidade de Coimbra tem apoiado a gestão da Gorongosa, por exemplo), foi deputada (eleita pelas listas do PS), foi a coordenadora da estrutura de missão para o interior (de que se demitiu queixando-se amargamente da falta de vontade política de António Costa), escreve frequentemente em jornais, fala episodicamente em programas de debate televisivo, enfim, manifestamente uma participante clara das elites intelectuais relacionadas com a gestão do património natural.
Sobre a imagem acima, no entanto, o que tem a dizer é que é uma imagem assustadora.
Sobre a questão leninistas essencial "Que fazer?", aos costumes disse nada.
Não se pense que é de Helena Freitas que falo, é dessa elite como um todo, em que os mais prudentes, como Helena Freitas, se limitam a fazer comentários emocionais sobre a fotografia e os mais verborreicos falarão da estrutura de propriedade, de ganhar escala, da falta de vontade política, da necessidade de ordenamento, da imprescindibilidade de limitar a produção de eucalipto, dos recursos que o Estado tem de alocar no controlo de invasoras, das centrais de biomassa, dos interesses, nos negócios e dos lucros fabulosos dos que lucram com o que está na imagem, da cativação do Estado pelas empresas de celulose, da necessidade de repovoar e atrair pessoas para o interior, da relevância de prender incendiários, da importância da lei do restauro da natureza, da necessidade de coimar os responsáveis, da necessidade de regular o mercado da madeira, etc., etc., etc..
São poucos, muito poucos, os que escrevem, não por amor, mas por interesse, sobre o que está aqui em causa: a reconstrução de economias que permitam a gestão deste território.
O que está na fotografia é o resultado de sessenta a setenta anos de progressivo abandono ou extensificação de gestão, à medida que as pessoas que geriam a paisagem anterior se cansaram da miséria e este partiu, aquele partiu e todos, todos se foram, terras que ficaram sem homens que pudessem cortar seu pão.
Esse processo de progressivo abandono permitiu que a natureza, na qual se inclui o fogo, um processo natural filho do seu contexto, reclamasse o que era seu, ocupando o vazio que foi sendo deixado para trás.
Voltando à pergunta clássica de Lenine: "Que fazer?".
Há, essencialmente, dois caminhos de resposta eficiente, e um terceiro completamente ineficiente que tem sido apoiado, por acção ou omissão, pela esmagadora maioria da elite bloqueada que bloqueia o país, metralhando tudo o que mexe e pode ter sucesso.
A produção de eucalipto em algumas circunstâncias tem sucesso? Abate.
O turismo em algumas circunstâncias tem sucesso? Abate.
A grande distribuição tem sucesso? Abate.
O regadio em algumas circunstâncias tem sucesso? Abate.
Mais genericamente, alguém fica rico a criar riqueza para todos? Abate.
Esquecendo esta terceira via que a elite propagandeia intercalando manifestações emocionais de superioridade moral com indignações seleccionadas a gosto, existem, como dizia, dois caminhos essenciais: 1) Renaturalização (alguns acham mais vendável dizer rewilding), o que significa aceitar a evolução que está a ocorrer, incluindo o padrão de fogo resultante (tudo o que se vê ardeu em 2017 e está a caminho de arder, de forma mais intensa e mais extensa, por volta de 2030) e procurando gerir o que se considerar socialmente inaceitável, como a expansão das invasoras (embora eu tenha dúvidas de como isso se fará, há quem ache que é com bisontes que se dá cabo das mimosas); 2) Aproveitar as oportunidades de gestão que são economicamente viáveis e trabalhar para aumentar essas oportunidades de gestão com recursos que possam vir do Estado ou da filantropia.
A minha opção base (digo base porque há vantagem em que as diferentes soluções se adaptem a cada circunstância que lhes é mais favorável) é claramente a de aproveitar oportunidades de gestão e aumentar os recursos disponíveis para essa gestão com dinheiro dos contribuintes, esperando que essas oportunidades de gestão criem descontinuidades de combustíveis finos na paisagem, que a mobilização do dinheiro dos contribuintes contribua para orientar melhor a filantropia (quase chorei quando ouvi a actual Ministra do Ambiente falar de plantar muitas árvores a propósito de incêndios, de tal forma fica demonstrado como a contínua propaganda da elite bloqueada e bloqueadora tem mantido a discussão sobre a matéria num nível inacreditavelmente pueril).
Para isso o que defendo são soluções simples, directas e que garantam que a iniciativa de gestão fica do lado das pessoas comuns, evitando tudo o que seja entregar recursos a terceiros, por mais bem intencionados que sejam, que não gerem directamente terrenos (como autarquias, empresas que vendem unicórnios pela manhã, universidades, laboratórios de investigação, etc.).
Olhando directamente para a fotografia, um monte de sucata florestal sem grande interesse, não é fácil perceber quem poderá estar interessado em estoirar dinheiro na criação de uma paisagem socialmente mais útil que esta espécie de antecâmara de gás que se vê.
O que vejo tem uma oportunidade clara: a produção profissional de eucalipto.
Não vou perder tempo a argumentar com quem diz que o que está na fotografia é preferível a ter produção intensiva de eucalipto, comercialmente viável, com gestão de combustíveis e uns 15 a 20% de áreas dedicadas à conservação da biodiversidade porque não há argumentação possível contra o pensamento mágico.
E como me parece triste render-me a uma paisagem feia e inóspita como a da produção comercial de eucalipto, volto à minha proposta base: 100 euros por hectare a quem mantiver menos de 50 cm de altura de combustíveis finos na sua propriedade.
Esta proposta não se destina a fazer com que os que não querem gerir mudem de opinião, porque, evidentemente, não paga a totalidade dos custos de gestão de combustíveis, mesmo que com métodos mais racionais que andar a pagar a sapadores para fazer cortes moto-manuais, esta proposta é apenas um incentivo à gestão por parte de quem tem algum interesse nessa gestão: produtores florestais, pastores, conservacionistas, caçadores, resineiros, produtores de medronho, apicultores, não me interessa, qualquer pessoa que resolva ter uma actividade que permita a gestão de combustíveis sabe que pode contar com 100 euros por hectare como pagamento pelo serviço público que está a fazer.
Uma das minhas netas também passa a vida a dizer que tem uns monstros assutadores no quarto que lhe querem comer o pé, mas isso não altera a realidade das noites tal como elas são, e publicar fotografias de paisagens assustadoras não serve para grande coisa sem propostas concretas de como diminuir os riscos associados ao que se vê.
Infelizmente, a generalidade das elites que se dedicam a pensar e discutir sobre este assunto não se afastam muito da racionalidade da descrição da minha neta sobre o que se passa no seu quarto à noite.
A frase do título, com as respectivas aspas, não é minha, roubei-a descaradamente.
Tal como uso, agradecendo, o boneco abaixo, a partir de um comentário ao meu post anterior.
Comecemos por olhar para o boneco que mostra a dívida pública em percentagem do PIB.
O que é evidente é um crescimento rápido entre o 25 de Abril e 1987 (passou de 12,1% em 1973 para 61,6% em 1987), depois um período que anda aos altos e baixos entre 1987 e 2000 (54,2%), um terceiro período entre 2000 e 2014 (em que chega aos 132,9%) e por fim período de contenção que vai acabar nos 99,qualquercoisa% de 2023.
2000, como sabemos, é quando o euro entra em circulação e a percentagem da dívida do país deixa de ser tão relevante para a definição das taxas de juro, no pressuposto de que a União Europeia nos iria defender de problemas no financiamento público (acho eu, parece-me lógico, mas eu não sei muito do assunto).
Sócrates ganha as eleições em 2005 e entre 2008 e 2012 comete a proeza de aumentar a dívida de cerca de 75% em 2008 para 129% em 2012, em quatro anos, portanto (não me incomodem com peguilhices por entretanto ter deixado de ser governo em 2011, grande parte do aumento da dívida de 2011 e 2012 corresponde ao socorro que a troica presta ao país, portanto, resultado das políticas de Sócrates combinadas com uma crise internacional e de dívidas soberanas).
Como diz Sérgio Sousa Pinto, com razão, este assunto não se consegue discutir racionalmente, dizendo, com razão, que nem é possível discutir a inevitabilidade das políticas de austeridade do tempo da troica, dado o contexto, nem é possível discutir racionalmente a responsabilidade do PS na crise anterior.
Só que o problema do PS não está na responsabilidade na crise financeira e das dívidas soberanas, que é nenhuma, evidentemente, a responsabilidade do PS está nas políticas internas que aumentaram brutalmente a fragilidade do país face a eventuais mudanças de contexto, essa é a responsabilidade de Sócrates e do PS que, com a ajuda militante das redacções de jornais, rádios, TV, disco e cassette pirata, a esquerda evita discutir seriamente, contando histórias da carochinha sobre os mauzões de que roubaram pensões e salários.
Não, não foi por ninguém poder prever o futuro, em 2005 um conjunto de estimáveis economistas alertavam para a política errada de Sócrates e do PS, dado o contexto, pode ler-se aqui integralmente, mas eu cito um parágrafo: "Este preocupante cenário requer uma urgente e dedicada concentração de esforços visando apropriadas medidas de contenção orçamental (com uma estrita selectividade das despesas públicas), de incentivo económico a favor dos sectores produtores de bens transaccionáveis, de promoção da eficiência económica (nomeadamente através da redução das ineficiências geradas pelo próprio Estado) e de uma moderação da despesa colectiva. Mas face a tal cenário parece ter emergido uma corrente de pensamento que acredita que a superação da crise pode estar no investimento em obras públicas, sobretudo se envolvendo grandiosos projectos convenientemente apelidados de estruturantes".
Em 2005, senhores, em 2005 havia quem, de forma clara, alertasse para a possibilidade de Sócrates ter o azar de levar com uma crise em cima para a qual não teria contribuído com nada de relevante.
Mas a sorte é uma coisa que dá muito trabalho e o problema foi que Sócrates resolveu promover uma economia de casino (sim, sim, caros estatistas, política de casino é fazer investimento público cujo retorno depende da sorte ou do azar) que teve o "azar" de chocar de frente com contextos financeiros com os quais essa política de casino era incompatível.
E isso obrigou-o a chamar a troica (não, não foi Teixeira dos Santos que o obrigou, foi o contexto, se Teixeira dos Santos tivesse aceitado continuar a caminhar para o abismo até cair, como pretendia Sócrates, Sócrates acabaria a pedir ajuda financeira na mesma).
O Facebook hoje, por grande coincidência, lembra-me de que publiquei esta capa do Público, há nove anos (em 2015, portanto), dois anos depois de ela ter aparecido (em Setembro de 2013).
A tese de quase toda a esquerda, e parte da direita, era a de que o memorando de entendimento que permitiu manter os pagamentos do Estado nos anos de 2011, 2012, 2013 e, em parte, seguintes, se traduzia numa espiral recessiva bem espelhada naquele "já" desta manchete.
A questão de fundo era a demonstração que Sócrates tinha feito do velho aforismo de Warren Buffett: quando a maré vaza é que se vê quem anda a nadar sem calções.
Sócrates tinha gasto dinheiro dos contribuintes de uma forma pouco sensata (o grande problema de Sócrates não é eventualmente ter metido ao bolso uns milhões indevidamente, é ter promovido políticas erradas que resultaram numa pré-bancarrota, impondo a todo o país, mas em especial aos mais pobres, uma política de austeridade inevitável para evitar a bancarrota), uma crise financeira mais ou menos inesperada obrigou a uma contracção brusca do financiamento disponível e, de repente, o Estado português não se conseguia financiar nos mercados financeiros (por causa dos especuladores, dizia ele e os seus muitos apoiantes, mas os especuladores, a existirem, apenas aproveitavam as fragilidades que ele próprio tinha criado, irresponsavelmente).
Por causa dessas circunstâncias, Sócrates teve de pedir socorro a quem tinha sido mais prudente e tinha dinheiro disponível.
Os ricos não são ricos por gastarem dinheiro sem pensar, é exactamente o inverso, é por serem prudentes com o que fazem ao seu dinheiro que se mantêm ricos, de maneira que as instituições que estavam disponíveis para emprestar dinheiro que permitisse ao Estado português não entrar em incumprimento disseram que sim, que emprestavam dinheiro, mas com garantias de que o país mudava de vida.
Essas garantias estavam no memorando de entendimento que previa aumentar receitas e diminuir despesas, ou seja, um programa manifestamente recessivo, como era inevitável (vejo muita gente a dizer que se podem pagar dívidas gastando mais e melhor o dinheiro, para ter recursos para pagar a dívida, mas nunca vi nenhuma demonstração prática dessa teoria, os que pagam dívidas é sempre por reduzirem despesas e aumentarem receitas, quando podem).
A esquerda e o jornalismo (eu sei, eu sei, desculpem) depois da primeira desorientação, passaram a adoptar um ponto de vista claro: o efeito recessivo ia baixar os recursos disponíveis, isso ia diminuir a colecta de impostos, o que agravaria o défice e, consequentemente, aumentava o problema em vez de o resolver (o défice andava pelos 11%), ideia que foi condensada na expressão "espiral recessiva", que é o que está na base daquele "já" da manchete do Público.
Durante três anos (no quarto ano as evidências fizeram desaparecer a expressão, não porque houvesse alguma alteração das evidências, mas porque se tornaram tão esmagadoras que era impossível manter a teoria) esta conversa foi martelada, martelada e martelada, apesar de todos os anos, todos os meses, ser evidente que, paulatinamente, o défice estava a baixar, as necessidades de financiamento estavam a baixar e, progressivamente, o efeito recessivo inicial estava a dissipar-se: o PIB passou a aumentar e o desemprego, depois de um pico ainda em 2012, diminuía, ao fim de algum tempo, em paralelo com a melhoria das contas públicas.
Esquecer tudo isto, que a esquerda e o jornalismo, viram sempre mal o filme e foram derrotados no campo das ideias (e, já agora, no das eleições, obrigando à coligação de derrotados que apanhou a boleia dos bons ventos criados internamente, mas também a soprar externamente), pretendendo que o efeito recessivo das medidas de austeridade negociadas por Sócrates, e absolutamente necessárias, foi uma opção do governo de Passos e de uma União Europeia menos solidária é estúpido, mas eu acho que é muito pior, é pura desonestidade.
Fizeram-me notar que o que o Observador escreveu sobre Maria Luís Albuquerque não pode ser comparado com a estrumeira do Público, o que é verdade, tornando injusto o meu post de ontem, o que em parte também é verdade, mas o sentido geral da imprensa (não necessariamente do comentário, o relevante é o que as redacções escreveram e que é inqualificável, independentemente de haver alguma gradação entre a estrumeira do Público e o lixo reciclado e arrumado de outros) tem um tal viés que não consigo de deixar de ficar furioso com isto a que chamam jornalismo.
"Maria Luís Albuquerque não é de boa memória".
David Pontes, o director do Público, tem esta opinião e não tem dúvidas, eu, e por acaso a boa parte dos eleitores que deram a vitória a Passos Coelho em 2015 (a legitimidade da coligação de derrotados para formar governo é inquestionável, mas isso não altera o facto de Passos ter ganho as eleições e Costa as ter perdido), temos a opinião contrária.
Até aqui, são meras opiniões, eu não sei em que se baseia o director do Público para não ter dúvidas na afirmação que faz, eu baseio a minha opinião no resultado das eleições que julgaram o governo de que fazia parte Maria Luís Albuquerque.
Mais grave, muito mais grave, é a manchete do mesmo Público ("A "senhora swap" e a cara da troika a caminho de Bruxelas", uma manchete imensamente menos rigorosa que "O "senhor bancarrota" e a cara da troika vive na Ericeira"), a peça em que se baseia e a generalidade do li e ouvi na imprensa.
O rigor teórico do senhor director do Público é notável: "Alguém que fez parte do seu percurso profissional em gestoras de créditos, como a Arrow Global, ou num gigante de serviços financeiros como o Morgan Stanley personifica aquilo que muitos vêem como um governante "liberal" sem problemas em passar pelas portas giratórias".
Lê-se e não se acredita, é como eu agora escrever que alguém que é director de um jornal que vive da caridade de uma família que vive da grande distribuição e outros negócios cotados em bolsa é o que muitos vêem como um jornalista "liberal" sem problemas com conflitos de interesses, parágrafo que, evidentemente, não faz sentido nenhum.
"Hoje a União é bem mais solidária e bem mais respeitadora dos desníveis entre países do que no período da troika", escreve David Pontes, sugerindo que o período da troika só existiu porque a União era pouco solidária e isso resulta das opções de Maria Luís Albuquerque, não tem nenhuma relação com o facto da imprensa ter levado o "senhor bancarrota" ao colo, ao ponto de atrasar semanas a divulgação de informações confirmadas sobre as trafulhices do seu percurso académico para não o incomodar, tal como evitava incomodá-lo perante o evidente desvario da sua governação que o levou a chamar a troika.
Há dias o Provedor do Público fez duas peças a bramar contra uma notícia sobre um excelente livro, porque a notícia era bastante boa e factual, mas tinha passado entre os pingos da chuva do férreo controlo ideológico do jornal.
O argumento usado pelo provedor foi o de que não se poderia falar do desempenho económico dos principais grupos económicos do fim do Estado Novo, em especial do grupo CUF, sem referir o contexto social negativo do Estado Novo.
O argumento, no caso, era muito pouco razoável, mas espero agora ver o Provedor do Público zurzir as senhoras Liliana Borges e Rafaela Burd Relvas (com David Santiago) por terem feito uma peça, em destaque, sobre Maria Luís Albuquerque, sem uma linha de contexto sobre o que motivou a entrada da troika e a forma como foi gerida a crise da dívida nacional, que deu origem a uma recuperação notável da economia e das finanças, depois do desastre governativo de José Sócrates (eleito secretário geral do PS, já depois da chamada da troica, como mais noventa por cento dos votos).
O Observador, e muitos outros, demonstra, nesta matéria, fazer parte da carneirada cujas redacções não se distinguem das do Público, balindo alegremente atrás das tretas que a esquerda insiste em repetir sobre as razões para a entrada da troica, o contexto do governo que teve de lidar com a troica e a surpresa de como, depois de todas as professias da esquerda (e do jornalismo, desculpem-me o pleonasmo) a garantir que o governo ia falhar, o país conseguiu mandar a troica de volta por causa dos bons resultados obtidos.
Ide pastar e irem à falência é mais que justo, a forma como reagiram à indicação de Maria Luís Albuquerque demonstra que a esquerda e o jornalismo (isto hoje está cheio de pleonasmos) são como os outros: não esqueceram nada, e não aprenderam nada.
A Iniciativa Liberal resolveu desenvolver politicamente a velha, velhíssima, ideia de que são todos iguais, menos eu.
Escrevi aqui bastantes vezes que sou liberal, que apoiei a Iniciativa Liberal (de que nunca fui membro), tendo colaborado com o grupo de estudos na elaboração dos primeiros programas eleitorais, nos assuntos em que quis, sobretudo naqueles em que tenho alguma competência específica.
A verdade é que desde a facção leninista tomou de assalto o poder no partido, tenho vindo a ter uma distância progressivamente maior, não do liberalismo, mas da Iniciativa Liberal.
Aproveito para esclarecer que a linha leninista não diz respeito ao substrato marxista da actuação e pensamento de Lenine, mas sim ao principal contributo que trouxe à prática política marxista que consistiu em substituir a ideia marxista original de que a libertação dos trabalhadores seria obra dos próprios trabalhadores, pela ideia leninista de que isso se faria com uma vanguarda partidária que representaria os trabalhadores.
Esta ideia de uma vanguarda partidária, que segue a linha justa e, pela sua profissionalização e centralismo (ele dizia que era democrático, mas enfim), seria imensamente mais eficaz na tomada do poder que esperar que todos os trabalhadores do mundo se unissem.
Por isso, porque os partidos são máquinas de tomada do poder, é uma ideia largamente praticada no mundo partidário, há mesmo quem diga que é da natureza dos partidos serem assim.
É neste sentido que chamo leninista à linha dominante da IL, cujos resultados, na minha opinião, foram especialmente luminosos em Lisboa, em que a linha partidária dominante achou mais seguro pôr quatro, cinco ou seis pessoas à frente de Carla Castro, para deixar claro que era mais importante a fidelidade à direcção que ter pensamento próprio.
Nesta lógica, o ideal é ter militantes e dirigentes sem densidade intelectual suficiente para ter pensamento próprio (pensar é uma actividade potencialmente subversiva) e o resultado é que em vez de ter um partido liberal que considera mais importante fazer crescer o liberalismo na sociedade, propondo ideias novas, temos hoje um partido a desenterrar velhas ideias populistas que, pensam eles, lhes vai trazer votos.
De maneira geral não faço muitos comentários sobre a Iniciativa Liberal porque na verdade não tenho interesse nenhum na mercearia do poder e a maioria dos seus militantes são manifestamente liberais e espero que sejam cada vez mais.
O que não entendo é a opção política de dizer que é indiferente ter Costa ou Montenegro como primeiro ministro, quer porque é uma evidente aldrabice, quer porque na prática é pôr a Iniciativa Liberal a apoiar o PS e o governo de António Costa (ou outro igual).
É aliás curioso que, tendo eu escrito uma coisa qualquer neste sentido, os argumentos dos que têm uma opinião diferente não foram no sentido de demonstrar que de facto os governos eram iguais, mas apenas que o governo da AD tem esta ou aquela deficiência, ou não faz o que essas pessoas acham adequado.
Dizer que não é indiferente mudar de governo não é o mesmo que dizer que o governo da AD é bom, é apenas reconhecer que, independentemente de tudo o que seja mal feito, não é indiferente que tenha mudado o pessoal político associado a um ou outro governo.
Uma das coisas interessantes (para mim e talvez mais outras três pessoas) dos comentários à volta do fogo na Madeira é a reacção de uma parte relevante da elite da botânica nacional.
Naturalmente, uma das linhas mestras é a ideia de que estamos à beira (ou para lá da beira) de uma tragédia do ponto de vista da conservação da flora e da vegetação (à boleia ainda temos uns outros a falar da extinção da freira da madeira, mas enfim, sobre isso nem vale a pena perder tempo, está ao nível do outro que veio falar da primeira extinção documentada que resultava das alterações climáticas, porque numa visita viu um troço de um ribeiro temporário seco e concluiu que uma espécie que vive nesse ribeiro há milhares de anos desta vez se tinha extinguido).
Por causa desta ideia, uma parte da comunidade dos botânicos partiu à desfilada para o ataque à ecologia do fogo, partindo, como é habitual nestas coisas, da deturpação do ponto de vista de que não gostam, o de que a ecologia do fogo se baseia na ideia ingénua de que tudo recupera depois do fogo.
Outra parte (pode haver sobreposição), resolveu defender uma ideia que demorou décadas a ser destruída no continente, mas que agora, com as décadas de atraso da discussão sobre a gestão do fogo na Madeira, é retomada como se fosse uma grande coisa: Portugal sem fogos depende de todos, que é como quem diz, somos um povo de pirómanos e o que temos é de reduzir ignições e extinguir todos os fogos no ataque inicial, que a gestão do fogo fica resolvida.
Que a laurissilva evoluiu sem o padrão de fogo do continente, estando por isso muito menos adaptada e sendo muito mais afectada por fogos, penso que é uma ideia que ninguém contesta (muito menos as pessoas que sabem alguma coisa de ecologia do fogo).
Que um fogo como o que houve na Madeira levanta problemas sérios de gestão à conservação da laurissilva, é também uma ideia que ninguém contesta (muito menos as pessoas que sabem alguma coisa da ecologia do fogo).
Que a forma como se olha para a herbivoria na Madeira, como instrumento de gestão do fogo, não pode ser igual à forma como se olha no continente, penso que é uma ideia que também ninguém contesta (muito menos as pessoas que sabem alguma coisa da ecologia do fogo).
O problema é que, somando isto tudo, a resposta genérica da elite da botânica tem sido claramente inconsistente e largamente anti-darwinista.
Na verdade, como é frequente na conservação, a comunidade da botânica pretende conservar um valor (a laurissilva) mas, não tendo soluções a propor para a gestão do fogo, adere ao pensamento mágico e propõe evitar que o fogo atinja a laurissilva, argumentando que as perdas são incalculáveis.
Para isso referem o facto da laurissilva não co-evoluiu com a herbivoria (o que é verdade), mas esquecem que o fogo (que é um processo natural, com um papel ecológico determinante) sempre terá estado presente.
Os que são mais sensatos, reconhecem a presença do fogo (como poderia ser de outra maneira e manter a credibilidade científica?), mas chamam a atenção para a extinção de numerosas espécies com a humanização da paisagem das ilhas, assente no fogo e na herbivoria.
Sim, isso é verdade, mas acontece que essa humanização tem 500 anos, tempo mais que suficiente para que tenham sido provocadas alterações profundas na paisagem, das quais resultaram extinções de muitas espécies, sem dúvida, mas a sobrevivência das mais aptas a essas novas condições.
Eu sei que se argumenta que as evoluções biológicas são processos lentos de milhares ou milhões de anos, mas acontece que essa ideia, bastante intuitiva, está demonstradamente errada (ler "o bico do tentilhão", por exemplo, para deixar de ter qualquer dúvida sobre como as adaptações podem ser rapidíssimas).
Argumentar com o que sucedeu há quinhentos anos para tirar conclusões sobre o que acontece com um fogo como o que existiu este ano na Madeira, não tem qualquer base científica.
Não sei o suficiente sobre a história da Madeira para saber se há alterações relevantes do padrão de fogo nas últimas décadas, mas sei o suficiente sobre evolução biológica para saber que nos últimos 500 anos o fogo e a herbivoria estiveram presentes na Madeira.
Parece-me lógico que o processo de abandono agrícola tenha chegado à Madeira, o que significa um aumento de disponibilidade de combustíveis (e, já agora, uma diminuição das ignições), portanto parece-me lógico que na Madeira se assista a um processo com semelhanças (e diferenças) com o do continente, com a progressiva diminuição da frequência dos fogos, mas com aumento de dimensão e intensidade dos fogos.
E chegamos à questão central, para a qual é útil contar com a ecologia do fogo em vez de utilizar episódios dramáticos para puxar pelas emoções que fazem com que um país inteiro ache normal mandar dois canadairs inúteis para resolver a gestão de uma situação complicada: se assim é, e se a laurissilva se dá mal com o fogo, o que fazer?, como perguntaria Lenine.
É nesse ponto que me parece estranho ver tantos botânicos que têm "um coração muito grande, cheio de fúria e de amor" a contribuir para agudizar as dificuldades de gestão do problema, excluindo da equação a ecologia do fogo e aderindo soluções que são filhas de pensamento mágico, quando bastaria voltar a Darwin para perceber que, sendo verdade que existem dificuldades grandes de gestão, não é possível pretender que o resultado final não seja a sobrevivência dos mais aptos.
Não, não estou a defender uma atitude passiva face ao gravíssimo problema das invasoras, o que estou a dizer é que soluções cujo objectivo seja a exclusão do fogo, são soluções que nunca serão soluções válidas (aqui aplica-se o princípio de que para qualquer problema complexo há sempre inúmeras soluções simples e evidentes, mas têm o problema de normalmente serem profundamente erradas).
Admitindo que todos concordamos que nem o fogo frequente, nem a herbivoria nos ajudam na gestão da laurissilva (não sei o suficiente para entrar nesta discussão e portanto tomo como boa a informação que vou coligindo), só resta concentrarmo-nos na gestão do interface entre a laurissilva e as áreas com 500 anos de humanização assente em fogo e herbivoria.
Rasgar as vestes e pintar como uma tragédia que nunca existiu, fruto da incompetência dos outros, garante tempo nos jornais e televisões, palmadinhas nas costas dos amigos, mas não resolve nada sobre a necessária discussão sobre a especificidade da gestão do fogo na Madeira.
Na verdade, o único resultado visível desta estratégia é liquidar qualquer racionalidade na discussão das soluções para a gestão da laurissilva e do fogo, e acabar tudo a discutir formas de combate e meios aéreos, sem qualquer efeito positivo real na conservação da laurissilva, embora com efeitos reais na sinalização de virtude de muitos conservacionistas.
"Sim, estou convencido que o fogo não gosta que molhem sua base de sustentação. Combustível molhado não arde ou arde muito mal. O fogo não gosta que molhem aquilo que ele irá comer/devorar nos próximos segundos".
Com base em raciocínios simples deste tipo, e na ideia de que o terreno era impossível para o combate a pé, o que implicava a imprescindibilidade de meios aéreos, a resposta técnica pode ser um bocadinho mais complexa.
"Que tempo permanecem no ar (e já agora em terra também) sem efetuar qualquer descarga por não haver condições mínimas de segurança ou tão somente de visibilidade? Onde é que os meios aéreos efetuam as descargas (provavelmente a densidade de descargas coincide com locais onde todos os outros recursos também chegam - o que até é relevante porque sem consolidação em terra as descargas de pouco valem, mas cai por terra o argumento da necessidade dos meios aéreos para os espaços inacessíveis por meios terrestres)? Qual a eficácia dessas descargas nestas condições? E mais, em territórios acidentados como aqueles, é muito improvável que os aviões tenham mais chances de sucesso que os helis. Servem para apaziguar almas atormentadas, mas com uma relação custo/ benefício excessivamente desfavorável. Em Portugal insiste-se num combate com a cabeça enfiada nas chamas, direto, com água. Nestas condições havia que ter sido estabelecido o perímetro máximo que o incêndio poderia alcançar com base na progressão potencial, nas oportunidades existentes para combate direto, nos locais onde pudessem ser criadas novas oportunidades (para combate direto e indireto) diferenciando os recursos a utilizar (mecânicos ou manuais, com e sem o apoio de pinga-lume), e nos valores em presença (humanos, materiais, ecológicos). O meio aéreo quanto muito procuraria retardar a progressão onde fosse possível e/ou onde fosse mais necessário ganhar tempo para que as equipas implementassem as estratégias de ataque indireto ou trabalhassem no sentido de criar essas condições para ataque direto. O resto é folclore".
E pode ainda aumentar-se a complexidade da resposta.
"Em Espanha, não há qualquer limitacao de utilizar água salgada, nem nas Baleares, nas Canarias ou Galiza! Porque é que ca fizeram essa limitações? Onde há esta evidência técnica ou cientifica? Usar água doce limita a operação, já de si pouco eficaz e nada eficiente, pois as largada de água, pela orografia da Madeira, têm que ser muiot altas. ... O Canadair não é o meio aéreo adequado para a complexa orografia da Madeira. Tivesse havido planeamento adequado e por protocolo com Governo das Canarias, podiam usar outros meios (helicópteros medios, por exemplo)".
Eu escrevo pouco sobre combate a fogos porque sei pouco do assunto.
Partindo do que vou ouvindo a terceiros, no entanto, gostaria de fazer um comentário sobre doutrina de combate ao fogo florestal, para o que o fogo da Madeira me é útil como ilustração.
A ideia com que começo o post é uma ideia de senso comum: a água é um bom instrumento de combate aos fogos florestais.
Sendo inegavelmente senso comum, não é necessariamente bom senso.
O fogo urbano, de maneira geral, ocorre num espaço relativamente curto, consome combustíveis disponíveis de forma concentrada e tem um tempo de residência muito elevado, progredindo com relativa lentidão em extensão.
Por outro lado, por causa dos inúmeros fogos urbanos ao longo da história, com consequências terríveis, as cidades passaram a ter bocas de incêndio por todo o lado.
Ou seja, há fogos concentrados e água disponível, quase sem limitação, no ponto em que o fogo ocorre.
Um fogo florestal não é nada disto, é uma chama em movimento rápido (os fogos florestais ocorrem mais complicados ocorrem com ventos fortes) num território em que a disponibilidade de água para o combate é quase inexistente.
Isto significa que combater um fogo florestal com água implica andar de um lado para o outro atrás do fogo com depósitos de água que serão sempre insuficientes.
Não admira, por isso, que bombeiros urbanos acabem a fazer o que fazem em Portugal: esperam pelo fogo junto a origens de água relativamente abundantes.
E confiam em meios aéreos para transportar rapidamente água para onde anda o fogo.
O problema é que os meios aéreos, no combate a um fogo florestal, podem ser úteis, mas raramente isso acontece quando são usados como meios de transporte de volumes brutais de água que seriam necessários para ter um efeito real num fogo (um canadair pode transportar seis mil litros de água, dizia um jornalista entusiasmado, sem perceber bem, acho eu, que isso é um depósito de 3 metros de comprido, por dois de largo e um de altura, o que, evidentemente, não é suficiente para ter um efeito decisivo e duradouro numa frente de fogo, mesmo que seja possível despejar nas melhores condições, coisa que raramente acontece na Madeira).
Os meios aéreos são muito úteis para deslocar pessoas de um sítio para outro rapidamente, e podem ser úteis como apoio complementar a combate terrestre, mas não apagam fogos, por si só, isto é, sem ser em complementaridade com combate terrestre por sapadores.
Enquanto não for claro, em Portugal, que o trabalho de bombeiros urbanos e o de bombeiros florestais é radicalmente diferente, ao ponto da água ser um instrumento ineficientíssimo no combate a incêndios florestais e, consequentemente, estas funções não derem origem a uma separação institucional, com profissionalização dos bombeiros sapadores florestais, a doutrina de combate ao fogo florestal continuará a ser paupérrima, assente em pensamento mágico sobre a eficácia dos meios aéreos, como exemplarmente ilustrado pelo fogo da Madeira.
E os meios aéreos continuarão a ter o papel que hoje têm no combate ao fogo florestal em Portugal: tranquilizar as pessoas e desresponsabilizar os responsáveis pelo combate, sem que tenham grande efeito real no combate aos fogos florestais.
Pediram-me, duas vezes e com alguma insistência, que fosse comentar o fogo na Madeira mas eu recusei terminantemente (o que me custa, eu percebo que quem tem de preencher os notíciários intermináveis das televisões tem um problema sério e não é justo eu criticar asperamente a qualidade da informação, ao mesmo tempo que me recuso a expor-me tentando fazer melhor, quando me pedem).
As minhas razões são fáceis de explicar: não conheço praticamente nada da Madeira (objectivamente, sou um saloio pouco viajado), não sei o suficiente do contexto para sequer interpretar a informação que vai sendo produzida e o fogo é um filho do seu contexto, logo, o que eu disser sobre o assunto, incluindo neste post, tem fortes probabilidades de não ter grande utilidade.
Dito isto, ao fim de uma semana, em que fui acompanhando o assunto com alguma distância mas lendo algumas coisas escritas por pessoas que sabem mais do assunto (Paulo Fernandes e Jorge Capelo, por exemplo), acabei por decidir fazer este post.
A motivação mais imediata foi um pequeno comentário de Paulo Fernandes, qualquer coisa como, cinco mil hectares ardidos numa semana de 2024 na Madeira, cinco mil hectares ardidos no pinhal de Leiria em três horas e meia de 2017.
A motivação menos imediata é a novela dos meios aéreos, quando confrontada com os vídeos que fui vendo do fogo e que me parecem ilustrar bem o erro de doutrina que persiste em Portugal no que diz respeito ao combate aos fogos.
Não pretendo desvalorizar a preocupação manifestada por Jorge Capelo no que diz respeito à conservação da laurissilva e concordo com ele no que me parece ser uma linha de raciocínio fundamental: a conservação da laurissilva deveria estar no processo de decisão de combate ao fogo praticamente ao mesmo nível que as outras preocupações fundamentais: não perder vidas, não perder casas, não perder infraestruturas essenciais.
Nesse ponto, não podia estar mais de acordo com Jorge Capelo: é inaceitável a desvalorização que é feita da conservação da laurissilva.
Onde tenho dúvidas é na visão mais catastrofista que a minha que tem Jorge Capelo, a laurissilva é uma menina dos olhos do Jorge, é dos maiores conhecedores do assunto, mas conheço-o o suficiente para saber que tem uma visão pessimista e catastrofista sobre a conservação da flora e a sua relação com o fogo.
É verdade que a laurissilva, ao contrário da generalidade das formações vegetais do continente (com raras excepções, como os zimbrais), não tem a longa relação com o fogo que nos permite ter alguma tranquilidade em relação à recuperação da esmagadora maioria das formações vegetais com interesse de conservação que existem no continente.
Mas também não faz o menor sentido pensar que nas últimas centenas de anos o fogo não esteve presente na Madeira, sendo muito pouco provável que não haja capacidade de recuperação da vegetação autóctone no pós fogo.
Também é verdade que hoje existem um conjunto de invasoras (algumas autóctones no continente) que podem estar mais bem adaptadas a um padrão de fogo que entretanto poderá ter mudado (como disse acima, não conheço o suficiente da Madeira para ter alguma ideia de como tem evoluído o padrão de fogo nas últimas centenas de anos), é verdade que há alterações de uso que podem ter tornado mais complicada essa recuperação, é verdade que os tempos de recuperação podem ser demasiado lentos para o padrão de fogo que hoje existe, tudo isso são riscos reais (que não sei avaliar) que talvez pudessem ter sido diminuídos com um combate mais inteligente, mas o que não me parece razoável é pensar que a Madeira não teve episódios de fogo anteriores bem mais complicados que este.
O que consigo perceber (dentro dos limites da minha ignorância, insisto) é que o fogo tem andado por ali com alguma lentidão (compare-se o tempo de uma semana com o tempo de três horas e meia para atingir os mesmos cinco mil hectares de área ardida), com elevada piro-diversidade, ardendo em mosaicos com bastante variação de intensidade de fogo (isto é, de energia libertada) e, provavelmente, severidade (isto é, efeito na vegetação, é preciso mais uns dias para saber).
Parece também ser claro que a doutrina dominante de combate aos fogos em Portugal - concentração dos meios à volta das casas e pessoas, combate baseado em água e utilização de meios aéreos em substituição do trabalho de sapadores, em vez da sua utilização como mero suporte ao trabalho dos sapadores - poderá ser responsável por se ter deixado o fogo andar por áreas que teria sido desejável evitar, se a conservação da laurissilva fosse uma prioridade e se a visão estratégica do combate incluísse a identificação das oportunidades de êxito do trabalho de sapadores (com os pés no chão, ferramentas de cabo de madeira nas mãos e o uso do pinga-lume bem treinado).
Agora discutem aviões e números de helicópteros, como se fosse possível andar a regar fogos à espera que a água seja suficiente para abafar as chamas.
Francamente não tenho nenhuma certeza de que o que escrevi tenha alguma base sólida, o que me impressiona mesmo é que o conjunto de questões que me coloco a mim mesmo, ao olhar para a situação, esteja quase completamente ausente do debate sobre o que fazer quando tudo arde.
"Diga amigo Miguel
Como está você?
Em todo o Xipamanine
Já ninguém o vê
Vou dar-lhe a minha viola
Para tocar outra vez
O seu valor um dia
Você mostrou
Todo o mainato o ouvia
E até dançou
Miguel só você sabia
Tocar como já tocou
Vinha maningue gente
Para aprender
Moda lá da sua terra
Bonita a valer
O Jaime e o Etekinse
Amigos não volt´haver
Quando a noite se ouvia
Miguel tocar
Também havia a marimba
Para acompanhar
A noite
Na Ponta Geia
Amigos hei-de recordar
O barco foi andando
E a Nanga vi
Foi a saudade aumentando
Longe daí
A gente
Na minha terra
Não canta assim
Como eu ouvi"
O colono José Afonso - de acordo com as especulações de Cláudia Castelo, "As oportunidades acrescidas de promoção social, a abundância de mão-de-obra barata e subjugada, a certeza de um estatuto inquestionável perante o conjunto da população africana – largamente maioritária – terão influenciado na decisão de migrar" - viveu várias vezes nas colónias portuguesas, tendo dois irmãos a viver em Moçambique até depois da independência, um na Beira, e outra em Lourenço Marques.
Esta letra de uma das suas músicas está longe de ser a única sobre a sua experiência colonial, escolhi-a por ser, de acordo com a grelha de análise woke, uma visão paternalista tipicamente colonial do seu criado Miguel Djedje (já agora, a letra é tirada da Associação José Afonso, mas tenho as maiores dúvidas de que a transcrição "o barco foi andando e a Nanga vi" esteja certa. Para mim, faz muito mais sentido "o barco foi andando e a Manga vi", quer porque a Nanga parece ser uma pessoa e do barco não se vêem pessoas, quer porque a letra mistura referências de Lourenço Marques (Xipamanine e o uso de vocábulos de uma das línguas moçambicanas dessa região) e da Beira (como seria o caso da Manga, essa sim, visível do barco), os dois sítios onde o colono José Afonso viveu.
É também, mantendo a mesma grelha de análise, uma visão luso-tropicalista das sociedades coloniais, em que se descreve um ambiente de miscigenação que não passa da lenga-lenga habitual dos retornados que são incapazes de ler o mundo que os rodeia, nomeadamente a injustiça em que assenta o seu privilégio, incapacidade que parece evidente no colono José Afonso.
Já agora, para quem tenha interesse, deixo aqui quatro ligações para mais testemunhos que pretendem dulcificar os aspectos pesados do regime colonial, que se relacionam com este discurso luso-tropicalista do colono José Afonso.
Podem ver-se, em três partes, um vídeo de mais dois colonos imersos numa visão cor de rosa do colonialismo e das sociedades coloniais, e uma referência a um livro de memórias de outro colono que afirma, sem rebuço: "O debate anti-colonial é uma coisa que remonta quase ao início dos descobrimentos. A circunstância de eu ter estado em Moçambique não altera a minha posição anticolonial, anti-exploração colonial. Não tenho grandes complexos em relação ao meu passado, a não ser a circunstância de ser uma pessoa que pertenceu ao setor colonizador, à administração colonial, à soberania exercida por um país sobre os outros. Foi uma coisa que teve o seu tempo e que demorou a acabar entre nós. Mas a questão da anticolonização não surgiu só agora, existe há muito tempo. Mesmo entre os que viveram em África, havia alguns anticolonialistas, que se puseram ao lado da possibilidade de um regime negro. Havia colonos — poucos, é certo — que percebiam perfeitamente que o regime colonial, que se baseava na exploração do negro, nunca levaria África a um desenvolvimento minimamente aceitável para a população".
Ou então, não, não é nada disso, é só a demonstração de que o mundo a preto e branco que nos pretendem vender nunca existiu e as sociedades humanas são bem mais variadas e complexas do que nos querem fazer crer.
Joana Gorjão Henriques lá prossegue o seu objectivo de vida, o de ser uma espécie de Simon Wiesenthal dos racistas.
Não vou perder tempo com pormenores sobre se havia Coca-cola em Angola antes do 25 de Abril (acho que não, que era só em Moçambique), nem sobre a opção de ter mais testemunhos de pessoas que explicam que testemunhos deveriam os retornados dar, que testemunhos directos dos próprios.
O que verdadeiramente me interessa neste post é um aspecto muito curioso que consiste na sistemática desvalorização, ao ponto do silenciamento (silenciamento relativo, nestas coisas mais institucionais, o que não falta é literatura memorialista com esse tipo de testemunhos), dos testemunhos de quem viveu nos anos sessenta e setenta nessas colónias, sem ser originário.
Não vou perder tempo com a distinção entre colono e originário, mas gostaria de fazer uma breve referência à natureza evidentemente racista com que essa distinção é usada, frequentemente, em textos institucionais e académicos. A peça de Joana Gorjão Henriques tem um exemplo magnífico na expressão, usada por Dulce Maria Cardoso "eu, pequena colona". O que distingue um pequeno colono de um originário, se não a cor da pele? A que propósito se atribui a qualificação de colono a um filho de um colono, haverá um ferrete hereditário que será preciso carregar, faça cada um o que faça da sua vida? Quem usa esta expressão é uma romancista, uma pessoa que trabalha com palavras e a expressão é magnífica "eu, pequena colona", mas tem um problema: socialmente não quer dizer nada e remete para um vazio, porque não existem pequenos colonos, quando cada pessoa é olhada por si mesma.
A resposta a estas perguntas procurarei enquadrá-la mais à frente, em torno do meu argumento central: quando se olha para pessoas, em vez de se olhar para estruturas sociais, o mundo parece diferente, por mais que se reconheça que as pessoas existem em contextos sociais e são as pessoas que fazem os contextos sociais.
Talvez consiga explicar melhor o que pretendo dizer fazendo uma citação cuja origem não identifico por ser irrelevante, o que me interessa é a ideia base que explica a mais que estafada opção de não ouvir uma parte da sociedade porque já "ouvi centenas de vezes a ladaínha da mundivivência colona (ou retornada) que insistentemente remete para experiências pessoais que dulcificam os traços "pesados" no regime colonial".
"O regime europeu em África foi bastante diversificado.... Ainda assim tinha duas características básicas:
a) racismo: a crença na legitimidade da tutela exercida sobre os locais, pretos. ... na década de 60 ... as barreiras raciais administrativas foram muito aliviadas, as sociais algo matizadas, nesgas de assimilacionismo urbano medraram. São essas nesgas que sempre surgem convocadas no memorialismo dos ex-colonos....
b) opressão e sobreexploração".
Que isto é assim, não me parece que haja dúvidas, pelo menos a mim, o que está escrito apenas suscita dúvidas sobre a dimensão dessas nesgas na primeira metade dos anos 70 do século XX, dúvidas que só podem dar origem a discussões produtivas se forem assentes em investigação assente em números e factos (o que é muito raro, nestas matérias, se é raro na história económica, ainda mais é nas dimensões sociais da história, tanto quanto me parece).
O que me interessa aqui é tentar perceber como havendo um grupo social enorme (a tal mundivivência retornada), cujo discurso sobre a realidade é bastante consistente, apesar da sua diversidade (a tal ladaínha), pessoas experimentadas na investigação do discurso de terceiros achem aceitável ignorá-lo porque não bate certo com o modelo, com o tal "regime colonial".
Não me interessam nada cabotinos como Álvaro Vasconcelos que entendem que cada pessoa branca era uma peça do sistema colonial e deveria fazer uma espécie auto-crítica à maneira da revolução cultural maoista, como forma de se purificar desse pecado.
Também não me interessam académicos que produzem trabalho científico onde escrevem isto " Em meados da década de 1940, em Moçambique havia 15.641 mestiços registados, representando 57 por cada 100 brancos; já em Angola havia 61 mestiços por cada 100 brancos, num total de 31.564 mestiços (Lemos, 1947: 17). Estes dados adquirem particular interesse quando comparados com a realidade de regiões vizinhas: nessa altura havia mais de dois milhões de brancos na África do Sul, quando em Moçambique, com 5,7 milhões de habitantes, havia 48.000 brancos (Anderson, 1962: 100). De facto, apesar de o carácter supostamente aberto à mestiçagem por parte dos portugueses ter sido a principal bandeira do luso-tropicalismo em contextos africanos, estes números falam por si. O suposto humanismo e a natureza mestiça da colonização portuguesa eram desmascarados por estes números", sem que percam um minuto do seu tempo a explicar o que é os números dizem sobre mestiçagem ou o que quer que seja que desmascare qualquer humanismo, nem sequer expliquem o interesse da comparação feita com o África do Sul nessa matéria.
Mas há outros, bem melhores, com quem nascem conflitos de ideias que eu não esperaria e que não compreendo facilmente.
A hipótese que tenho, que ajuda a explicar as razões para descartar os testemunhos de uma parte substancial da sociedade, substituídos por prédicas de terceiros sobre as razões pelas quais se pode dizer que o que os outros viram, não era o que viram, tem uma raíz ideológica funda: uns olham para regimes e organizações sociais, determinadas pelas estruturas de poder, outros, como eu, olham para pessoas e para uma mão invisível que "que ergue e destroi coisas belas", para citar o Caetano Veloso.
Daí a resistência dos primeiros em aceitar que o colonialismo da primeira metade dos anos setenta do século XX estava muito longe do "regime colonial" da primeira metade do século XX, e a resistência dos segundos em aceitar que mesmo estando muito longe, subsistiam nele muitos aspectos que se vêem melhor à luz das suas raízes racistas e opressivas.
Joana Gorjão Henriques, noutro contexto que não o dos artigos que fez agora, diz que questiona a “perspectiva de brandura de olhar sobre nós próprios, portugueses”.
O que me distingue dela é que só estou de acordo com a frase até à vírgula, a perspectiva de brandura de olhar sobre nós próprios é da natureza humana e atinge-nos todos por igual, é um assunto com o qual o racismo tem muito pouca relação.
E é por isso que, para mim, todos os testemunhos são iguais no sentido em que todos precisam de ser verificados com informação tão objectiva quanto possível, porque ninguém é bom juiz em causa própria.
O que, infelizmente, tem sido difícil aceitar em matérias controversas, como a relação entre colonialismo e racismo (que está longe de ser uma relação linear).
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