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O meu prédio, o meu bairro, o meu mundo hoje despertou triste e mais pobre: a D. Lurdes morreu durante a noite no hospital. Vi-a sair uma destas manhãs frias para uma ambulância, pequenina e enregelada, levada numa cadeira de rodas. Não cuidei que fosse muito grave, algum tratamento quem sabe. Há pessoas que se instalam na nossa vida e que julgamos eternas.
Quase centenária, a minha vizinha morava no rés-do-chão, num esconso de arrecadação adaptado a residência. Chegada em 1975 na ponte aérea das ex-colónias instalou-se aqui em S. João com o marido, nove filhos e uma indómita força de viver. O seu homem não se refez do choque duma vida perdida do outro lado do oceano. Desistente, por entre as entregas de chamuças que a mulher fazia às centenas, passava o tempo à porta de casa a fumar com os olhos fixos em lado nenhum, conta quem o conheceu. Sem vontade, morreu cedo, e a D. Lurdes continuou obstinadamente a fazer chamuças e a criar os filhos que aos poucos foram indo às suas vidas.
A D. Lurdes vivia pouco mais do que sozinha com a modéstia que lhe permitia uma magra pensão de sobrevivência e um filho problemático, que só não conseguiu consumir a determinação e o amor da sua mãe. Ela era uma senhora muito, mesmo muito pequena mas só no tamanho, com pele escura e enrugada, muito curvada pelo peso duma vida arrancada a ferros. Inspirada numa resoluta Fé cristã, exibia com generosidade um dos sorrisos mais francos e bonitos aqui do bairro.
Quando nos encontrávamos logo me perguntava pelo “seu amigo”, referindo-se ao meu miúdo pequeno, com quem mantinha uma viva relação: a D. Lurdes era das poucas pessoas a quem o meu rebelde filhote cumprimentava de beijinho com boa vontade. Com a minha mulher, a D. Lurdes partilhava confidências, dores e contrariedades. Visitava-nos por vezes para nos dar umas chamuças, ou algum doce caseiro que teimava em manufacturar apesar das suas aflitivas limitações físicas. O seu sorriso, o seu “bom dia senhor João”, nas escadas ou à mesa do café saboreando a sua preciosa bica, vai fazer muita falta à nossa vida. A sua falta vai notar-se dramáticamente na preceta, no bairro… e na humanidade. Porque são estas pessoas que dão uma coluna vertebral e um sentido de rotação certo ao nosso mundo insano.
D. Lurdes hoje juntou-se ao seu marido e aos filhos que viu partir, algures onde com a infinita misericórdia de Deus finalmente descansará em paz.
* D. Lurdes é um nome fictício que utilizo para testemunhar uma pessoa e factos reais.
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