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Afogueado pela correria, cheguei uns minutos atrasado à missa dominical. E como eu detesto chegar tarde, sujeito a ficar de pé ao fundo da igreja a abarrotar, e sem tempo para me concentrar comodamente lá à frente, bem perto do altar, bem perto de Jesus!
Tomo então um recanto junto às pesadas portas, que teimam em abrir e fechar com os outros retardatários. Aí permaneço de espírito inquieto, tentando encontrar-me com os cânticos e as orações, mas logo me distraio com o sotaque destoante do meu vizinho do lado: de pele escura e cabelo crespo, um homem baixo de cabeça inclinada e mãos postas, reza com fervor. Pela roupa e traços de expressão, adivinho-lhe condição humilde, uma vida dura e solitária.
No outro canto deparo-me com uma adolescente de roupa atrevida e piercing no nariz: ela não esconde o ar contrariado, de quem dormiu muito pouco e está ali por obrigação. Na sua natural ambiguidade, na busca de si próprios, os jovens por sua vontade quase sempre se arrumam na extremidade do templo, não entram, não se entregam – penso eu com os meus botões. Depois, quando chega o Aleluia, chama-me à atenção um casal de negros que com voz forte e desinibida dão graças com uma invejável convicção, com uma franqueza que só pertence aos justos. Também estrategicamente colocado perto da porta, acomoda-se um pedinte de unhas sujas e ar miserável. Pergunto-me se é a fé que o move ou apenas se protege do frio cortante lá de fora?
Ao fundo da igreja juntam-se também as mães e os pais com as crianças travessas. Noto um casal que em desespero tenta entreter o seu irrequieto petiz a todo o custo. É pela altura da Consagração, momento de inusitada intensidade espiritual, que o miúdo atinge o auge da impaciência, desatando aos guinchos, obrigando o acabrunhado progenitor a uma saída de emergência para o adro. Na sua saída, ainda tenho tempo de lhe acenar um cumprimento solidário.
No fim acabo reconciliado com o meu destino, com esta experiência que me arrebatou aos meus hábitos e cómodos protocolos. O povo de Deus descobre-se mais claramente nas franjas desta Igreja errante e peregrina a que eu pertenço. E desta maneira ganham mais sentido as palavras de Jesus Cristo que tanto nos alerta serem os últimos os primeiros.
Texto reeditado
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